Procedimento médico autorizado por lei, a interrupção da gestação para vítimas de estupro no Rio Grande do Sul foi feita 35 vezes nos últimos 10 anos em meninas entre 10 e 14 anos. Os dados são da Secretaria Estadual de Saúde (SES) e mostram que casos como a da menina grávida após ser estuprada pelo tio no Espírito Santo são mais comuns do que se imagina.
O ano com maior número de abortos em meninas nessa faixa etária foi 2019: foram realizados nove procedimentos do tipo. Em 2020, até o agosto, foi realizado um.
Apesar de revelar uma dura realidade, o número de abortos em hospitais não mostra o total de vezes em que meninas de até 14 anos engravidam vítimas de violência sexual. O dado não incorpora o número de abortos espontâneos ou realizados em casa. Também não leva em consideração os casos em que a vítima e a família mantiveram a gestação.
No Rio Grande do Sul, sete hospitais são considerados referência nesse tipo de procedimento (veja a lista abaixo). Quatro deles ficam em Porto Alegre e os demais em Canoas, Caxias do Sul e Rio Grande.
De acordo com a SES, os serviços podem ser acessados diretamente pela vítima através da emergência dos hospitais, ou por encaminhamento de outro serviço da rede de atenção, como postos de saúde e unidades de pronto atendimento. A pasta destaca que desde 2013 não é necessário boletim de ocorrência e nem ordem judicial para a realização do procedimento.
Ainda segundo a SES, a Lei 12.845/13 dispõe que todos os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial inicial. Se for necessário, pode, posteriormente, encaminhar para outros serviços de referência especializada, como é o caso do aborto legal.
Hospital referência e dificuldades
Uma das referências no procedimento é o Hospital Materno Infantil Presidente Vargas, na Avenida Independência, em Porto Alegre. A instituição possui o Centro de Referência no Atendimento à Infância e Juventude (Crai), com equipe multidisciplinar para atender vítimas, e também o Serviço de Atenção Integral em Saúde Sexual.
A médica ginecologista e sexóloga Sandra Scalco coordena a área responsável pela avaliação se o aborto deve, ou não, ocorrer. O setor tem autonomia de decisão, sem necessidade de judicialização: basta a vítima procurar a instituição. Sandra explica que são exigidos alguns documentos: termo de consentimento, relato da situação do estupro, um em que o médico determina o fechamento de critérios e outro, com a assinatura de três profissionais, de diferentes áreas, que concordam com a realização do procedimento.
Esse mesmo direito que alguém tem de ter convicção religiosa e não entender a interrupção da gravidez como uma possibilidade, existe do outro lado para pessoas que sofreram violência e que têm o direito ao acesso. É preciso respeitar a tomada de decisão e autonomia de diferentes formas de pensar da população
SANDRA SCALCO
Médica ginecologista
Sandra explica que a interrupção da gestação é feita após um intervalo entre cinco a sete dias desde a avaliação inicial. Quem realiza o procedimento é o médico que estiver de plantão no centro obstétrico. O aborto pode ser feito até 22 semanas gestacionais (primeira semana do sexto mês de gravidez) ou até 500 gramas do feto, de acordo com a norma técnica do Ministério da Saúde.
Há 10 anos trabalhando no hospital, a ginecologista diz lembrar que já foi feito em Porto Alegre um aborto em uma menina de 10 anos que havia sido estuprada. Segundo Sandra, nunca aconteceu nada semelhante com o caso do Espírito Santo, em que fundamentalistas religiosos foram até a porta do hospital para impedir o aborto, mas é frequente movimentos de pressão contrários.
— Às vezes a pressão é de familiares ou de outros profissionais da saúde. Em uma ocasião, houve um debate com um promotor no Interior, em um caso de aborto legal de uma menina menor de 14 anos, o que é um direito dela. Então existe, de toda a ordem, vários tipos de resistência — diz.
No ano passado, houve um caso no hospital tratado como emblemático de resistência externa ao procedimento previsto em lei. Uma menina grávida de 21 semanas por resultado de um estupro procurou o serviço buscando interromper a gestação. Até então, só havia ocorrido em mulher com semana gestacional abaixo de 20. Toda equipe foi alvo de uma denúncia anônima ao Conselho Regional de Medicina (Cremers).
— Gerou toda uma dificuldade que necessitou que nos articulássemos. Essa articulação, em várias instâncias, com respaldo da direção do hospital e área jurídica, em reuniões até com juízes, explicou a legalidade do processo. Foi algo que tentou fragilizar o serviço, mas se resolveu após esse corpo a corpo — detalhou.
A médica prossegue:
— Esse mesmo direito que alguém tem de ter convicção religiosa e não entender a interrupção da gravidez como uma possibilidade, existe do outro lado para pessoas que sofreram violência e que têm o direito ao acesso. É preciso respeitar a tomada de decisão e autonomia de diferentes formas de pensar da população. Nós trabalhamos através da lei, que autoriza um local que mulheres violentadas podem acessar.
Violência sexual contra crianças e adolescentes
Dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP) revelam que cinco menores de até 14 anos foram estuprados por dia no Rio Grande do Sul em 2020. São 1.071 crianças e adolescentes vítimas no Estado de janeiro a julho.
Hospitais de referência e como buscar atendimento
Os serviços podem ser acessados diretamente pela vítima através da emergência dos hospitais ou por encaminhamento de qualquer outro serviço de rede de atenção. Não é necessário boletim de ocorrência ou qualquer autorização judicial.
- Hospital de Clínicas – Porto Alegre
- Hospital Geral – Caxias do Sul
- Hospital Materno Infantil Presidente Vargas – Porto Alegre
- Hospital Nossa Senhora da Conceição – Porto Alegre
- Hospital Fêmina – Porto Alegre
- Hospital Universitário - Canoas
- Hospital Universitário Miguel Riet - Rio Grande