Um dos crimes mais emblemáticos da história recente do Rio Grande do Sul completa uma década na próxima quarta-feira (26) ainda cercado de perguntas sem respostas. Afinal, qual motivo para o assassinato do então secretário de Saúde de Porto Alegre Eliseu Santos, em fevereiro de 2010?
O caso sacudiu o Estado por envolver importante figura política do PTB — Eliseu, 63 anos, era médico, fora vereador, deputado estadual e vice-prefeito — e causar conflito entre Polícia Civil e Ministério Público. As duas instituições divergiram quanto aos motivos da morte, criando mal-estar incomum entre delegados e promotores.
Ao todo, 12 pessoas são acusadas de envolvimento com o crime, mas uma década depois, apenas duas delas foram condenadas por participação direta na execução de Eliseu. Outras quatro serão julgadas entre setembro e outubro.
A morte de Eliseu, executado diante da mulher e da filha caçula, na saída de um culto religioso no bairro Floresta, na Capital, exigia respostas imediatas da polícia que, exatos 77 dias antes, havia concluído um rumoroso inquérito após um ano de trabalho — a apuração do homicídio do também médico Marco Antônio Becker, então vice-presidente do Conselho Regional de Medicina. Curiosamente, Becker fora colega de faculdade de Eliseu, e o caso, até hoje, também segue sem solução na Justiça.
Responsável pela investigação, o Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic) prendeu três suspeitos, apontados como autores de um latrocínio. A tese da polícia: ocorreu tentativa de roubo do Corolla de Eliseu, por parte de uma quadrilha de ladrões de carro radicada no Vale do Sinos. A vítima reagiu, feriu um dos ladrões, mas acabou morta.
Horas após o crime, o MP já levantava outra hipótese para o caso: homicídio por vingança. Eliseu teria descoberto um esquema de corrupção dentro da secretaria comandada por ele, que envolveria servidores públicos e pessoas ligadas à prestadora de serviços de segurança Reação, terceirizada para atividade de segurança em postos de saúde.
O MP abriu investigação e, à medida que avançava no caso, crescia o número de suspeitos e de razões para o assassinato sob encomenda. De três indiciados pela polícia, o número de envolvidos pelo MP subiu para 13. Atualmente são 12 porque uma suposta participante, uma técnica em enfermagem que fez curativo em um dos criminosos ferido no confronto com Eliseu, foi excluída do caso porque o crime prescreveu.
Em meio a isso, na Justiça, prevaleceu a tese do MP.
— Tem elementos suficientes nos processos que confirmam o homicídio. A Justiça aceitou as denúncias e o TJ (Tribunal de Justiça do Estado) as manteve — afirma a promotora Lúcia Helena de Lima Callegari.
Divergências
Heliomar Franco, um dos delegados da Polícia Civil que atuaram no caso, tem outro entendimento.
— Sigo com convicção absoluta de que aconteceu um assalto frustrado. Prendi dois envolvidos e gravei em vídeo com a confissão do latrocínio. Por que alguém faria isso, se a pena para esse crime (entre 20 e 30 anos) é muito maior do que a punição para um homicídio (entre 12 e 30 anos)? — pondera Heliomar, hoje delegado regional em Gramado.
Nesses 10 anos, a inclusão de novos suspeitos pelo MP gerou acusações separadas e aditamentos de denúncias, levando a divisão de processos — são cinco ao todo. Aliado a isso, recursos a tribunais superiores e adiamentos de júris contribuíram para ainda não haver desfecho. Um dos processos, aberto em março de 2010, nem sequer tem audiência marcada.
A demora ajudou, também, a manter nas ruas um dos acusados da morte, Eliseu Pompeu Gomes, 32 anos. Ele foi preso preventivamente, mas depois, solto. Entre idas e vindas da cadeia, Gomes foi condenado em outros três crimes — assalto em Porto Alegre, em 2011, porte ilegal de arma em Tramandaí, em 2012, e roubo e tentativa de homicídio em São Leopoldo, em 2014.
Em maio de 2016, Gomes foi condenado pelo assassinato de Eliseu Santos a 27 anos de prisão. Pena semelhante foi aplicada a Fernando Júnior Trein Krol, 31 anos, também acusado da execução. No julgamento, os dois alegaram inocência — um deles disse que roubava pneus nas proximidades do local do crime, e foi vítima de um tiro. Todos os demais 10 réus rejeitam participação no crime, alimentando a dúvida: qual motivo para o assassinato de Eliseu Santos?
A vítima
Eliseu Felippe dos Santos, 63 anos, era traumatologista e ortopedista. Foi vereador e vice-prefeito de Porto Alegre, sua cidade natal, e deputado estadual pelo PTB. Exercia o cargo de secretário de saúde da Capital quando foi assassinado.
O crime
Eliseu Santos, a mulher Denise, e a filha do casal de sete anos, deixavam culto evangélico no bairro Floresta quando foi atacado por bandidos armados na Rua Hoffmann. Ele portava uma pistola, feriu um dos criminosos, mas, atingido por dois tiros, morreu instantes depois.
As versões
Para a Polícia Civil, Eliseu Santos foi vítima tentativa de roubo de carro seguido de morte. Após 17 dias, prendeu Eliseu Pompeu Gomes, Fernando Júnior Treib Krol e Robinson Teixeira dos Santos. Um deles teria confessado o latrocínio em vídeo
Ao ouvir depoimentos de pessoas próximas a Eliseu Santos, o MP se convenceu que ele foi vítima de plano para matá-lo, pois descobrira um esquema de corrupção na Secretaria de Saúde da Capital
Os acusados
Eliseu Pompeu Gomes, 32 anos, e Fernando Junior Treib Krol, 31 anos
Acusados de execução do crime, foram condenados a 27 anos de prisão, em maio de 2016. A defesa dele recorreu da sentença ao STJ. Os dois estão presos. Krol cumpre pena até 2.044, e Gomes, condenado em outros crimes, tem penas que somam 77 anos, até 2.091.
Robinson Teixeira dos Santos, 33 anos
Acusado de participar do ataque a Eliseu Santos, tem julgamento marcado para 21 de setembro. Condenado por crimes de roubo, receptação e porte ilegal de arma até 2.024, Em liberdade condicional.
Marcelo Dias Souza, 34 anos
Acusado pelo MP de envolvimento no crime porque apareceria em imagens de câmera de segurança próximo ao local do crime na hora do fato. Tem julgamento marcado para 21 de setembro.
Jorge Renato Hordoff de Mello, 52 anos
Era dono da empresa Reação, que prestava serviço de segurança à Secretaria de Saúde de Porto Alegre. Acusado de ser um dos mandantes do crime, revoltado por suposta descoberta de esquema de corrupção envolvendo a Reação. Recorre da pronúncia (decisão da Justiça de julgá-lo) por homicídio.
Jonatas Pompeu Gomes, 30 anos
Acusado de ter participação no crime por ser irmão de Eliseu Gomes e ter trabalhado 40 dias na empresa Reação. Cumpriu pena de sete anos de prisão por roubo. Tem julgamento marcado para 5 de outubro.
Marcelo Machado Pio, 35 anos
Era um dos sócios da Reação, é acusado de arquitetar a morte de Eliseu Santos por vingança. Em liberdade. Tem julgamento marcado para 5 de outubro.
Marco Antônio de Souza Bernardes, 50 anos
Advogado, era assessor jurídico da Secretaria da Saúde de Porto Alegre, dirigida por Eliseu Santos. Suspeito de cobrar propina a empresa Reação, é acusado de corrupção, crime que teria sido descoberto por Eliseu e que teria provocado a morte dele.
Cássio Medeiros de Abreu, 27 anos
Comerciante, enteado de Bernardes, assim como o padrasto, é acusado pelo mesmo crime de corrupção porque intermediaria recebimento de propina da Reação.
José Carlos Elmer Brack, 72 anos
É acusado de corrupção, assim como Bernardes e Abreu. Ex-presidente do diretório do PTB de Porto Alegre, trabalhou na Secretaria de Saúde da Capital, mas foi afastado por Eliseu Santos.
Adelino Ribeiro da Silveira, 41 anos
É acusado de participar da morte de Eliseu Santos, pois teria entregue R$ 15 mil para os matadores. Tem nove condenações até 2.028 por furtos e estelionatos. Está preso.
Aroldo Veriano da Silva
Tenente-coronel da reserva da BM, foi apontado por Silveira como a pessoa que teria intermediado a entrega de dinheiro para os matadores de Eliseu.
Contrapontos
O que diz a defesa de: Eliseu Pompeu Gomes, Fernando Júnior Treib Krol, Jonatas Pompeu Gomes, Robinson Teixeira dos Santos e Adelino Ribeiro da Silveira
"A Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul lamenta a demora no julgamento do caso e não se manifestará sobre cada um dos processos em específico, porque as teses defensivas serão levadas a plenário, em momento oportuno. Considerando que a Constituição Federal assegura o contraditório e a plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, todos os instrumentos legais poderão ser utilizados para garantir que o julgamento seja justo."
Marcelo Machado Pio, defendido pelo advogado Marcos Vinícius Barrios:
No entendimento do defensor, a demora para o julgamento do processo se deve ao Ministério Público que apresentou três denúncias "com mudanças profundas na descrição do delito e incluindo novos réus e mandantes." Segundo Barrios, na medida que se incluiu novos denunciados, houve reabertura da fase de instrução, do prazo de defesa e da possibilidade de indicação de novas testemunhas.
— Nunca nos anais do poder judiciário se viu tamanha tese esquizofrênica apresentada pelo MP, algo que não guarda qualquer conexão com a realidade.
De acordo com Barrios, não há provas de que seu cliente tenha participado do crime. Na visão dele, o caso trata-se de um latrocínio.
Marco Antônio de Souza Bernardes e Cássio Medeiros de Abreu, defendidos por Claudio Cunha:
Segundo o advogado, seus clientes "não tem conexão nenhuma com o fato." Ele afirma que o MP já havia arquivado um inquérito civil de improbidade que investigava a relação de ambos com irregularidades.
José Carlos Elmer Brack:
A denúncia é um "absurdo em todos os sentidos." Ele diz que lamenta "que tenha sido feita uma denúncia sem provas e nenhuma evidência."
Jorge Renato Hordoff de Mello, defendido por Nícolas Mendes Anéli:
A defesa irá utilizar o parecer do procurador de Justiça do MP Marcelo Roberto Ribeiro que destacou que, após ao ler o processo, não encontrou nada que "sequer indiciasse" a participação de Mello no crime.
A defesa também acrescenta, em nota:
Registre-se, pelo que consta no processo trazido à colação pela autoridade coatora e pelo impetrante, que: a) ninguém viu o paciente Marcelo Machado Pio, Jorge Renato Hardoff de Mello e Marco Antonio de Souza Bernardes desferirem tiros de arma de fogo na vítima; b) ninguém presenciou ou ouviu eles planejarem a morte da vítima; c) ninguém viu ou ouviu essas pessoas mandando os executores matarem a vítima; c) não se apurou conversa telefônica alguma dos pretensos mandantes com os executores, que tivesse por teor a determinação ou instigação das morte da vítima; e) não se constatou que os executores tivessem recebido algum dinheiro para matar a vítima; f) não se constatou que essas pessoas, reputadas mandantes do crime, pessoalmente, através de terceiros ou de qualquer outro meio de comunicação prestaram apoio moral aos executores da vítima ou assegurou-lhes certeza de qualquer auxílio para que matassem a vítima. De onde se tirou isto tudo? Do nada."
"Como se tudo isso não bastasse, nas fls. 3018/3027 do 13º violume do apenso, vê-se que o Delegado Heliomar Athaydes Franco, titular da Delegacia de Repressão ao roubo de Veículos, encaminhou à 1ª Vara do Juri, com autorização da Juiza de Direito da 1ª Vara Criminal, Dra. Vanessa Gasta de Magalhães (fls. 3026 do 13º volume do apenso, um CD, contendo audio e video de Robison Teixeira dos Santos, denunciado como um dos executores do assassinato de Eliseu Felippe dos Santos, que estava foragido, que é o resultado de uma CAPTÇÃO E INTERPRETAÇÃO AMBIENTAL DE SINAIS MAGNÉTICOS ÓTICOS OU ACÚSTICOS, ordenada pela juíza acima nomeada (fl. 3027 do 13º volume do apenso), com a opinião favorável do eminente Promotor de Justiça, Dr. Roberto Varalo Inácio (fl 43). Inquestionável a licitude da prova portanto. No termo de transcrição dessa escuta, contida no mencionado CD, Robison Gastal de Magalhães deixa claro que a morte de Eliseu Felippe dos Santos ocorreu num assalto frustrado, não tendo, portanto, havido nenhum mandato de homicídio (fls. 3022/3024).
"Desta forma está confirmado que o caso não passa de uma enorme farsa e teatrinho a suposta investigação do Ministério Público, incapaz de juntar um prova sequer, e tampouco indícios firmes, apenas presunções inúteis. E a Procuradora Geral do Ministério Público terá que vir a público para dizer o que anda acontecendo com a instituição que ela dirige. Afinal, papel de fiscal da lei, como afirma corretamente o procurador Marcelo Roberto Ribeiro, é o de observar estritamente a lei e defender os direitos dos cidadãos, e não de agredí-los".
Cabe ressalta a defesa que o Ministério Público é órgão UNO (único) e sendo a manifestação de um Procurador da instituição deve prevalecer sobre as demais e não entrar em inquestionável contradição. Assim, não há dúvida de que os jurados absolveram Jorge Renato Hordoff de Mello.
Marcelo Dias Souza, defendido pelo advogado Luiz Gustavo Puperi:
Segundo a defesa, não é seu cliente que aparece no vídeo e a gravação não condiz com o que aconteceu no momento do fato. Ele afirma que não há nenhuma comprovação da participação de Souza no crime. No entendimento de Puperi, a investigação foi um "desacerto. Foi uma confusão de motivos e acusações, muitos dos quais se perderam pelo caminho."
Tenente-coronel Aroldo Veriano da Silva, defendido por Samir Nassif:
O advogado nega "veementemente a participação do seu cliente no crime". Reforça que "não há nenhuma vinculação do tenente-coronel com o fato."