Uma investigação que teve como ponto de partida furtos que vinham sendo praticados no bairro Floresta, na região central da Capital, levou a Polícia Civil a identificar outras irregularidades no funcionamento de alguns estabelecimentos de reciclagem na Avenida Voluntários da Pátria, como a falta de plano de prevenção e combate a incêndio (PPCI).
A ofensiva ocorreu em abril e resultou em oito prisões em flagrante por receptação qualificada — eles já foram soltos. Mas o que mais impressionou os agentes foi a descoberta da exploração da mão de obra dos carrinheiros.
Segundo o titular da 3ª Delegacia de Polícia da Capital, Hilton Muller, a prática é comum a boa parte dos proprietários dos estabelecimentos. De acordo com o delegado, uma parcela significativa dos carrinhos pertence aos donos das reciclagens, que os emprestam aos catadores. As condições e as relações de trabalho entre os estabelecimentos de reciclagem e os carrinheiros surpreenderam o delegado.
— Essas pessoas trabalham em condições análogas às de trabalho escravo. Passam um dia inteiro puxando carrinho, juntando latas, pets e papelão. Depois, o comerciante, que também é dono do carrinho, paga o que quiser — diz o delegado.
Nas investigações, os policiais concluíram que é comum que o proprietário do estabelecimento de reciclagem e do carrinho pague apenas 20% do valor equivalente ao obtido pelo catador com o material reciclável.
— Quando muito, os catadores conseguem cerca de R$ 70 e aí ficam só com R$ 15, no máximo.
O pessoal que trabalha no interior das reciclagens, de acordo com a polícia, na maioria dos casos, atua como diarista, sem carteira assinada ou qualquer outro direito trabalhista.
Ação encontrou cobre de fiação elétrica
A operação policial foi planejada a partir de registros de arrombamentos, furtos de fios, tubulações, partes de ar-condicionados, materiais hidráulicos e até de hidrômetros. As ocorrências vinham se acumulando na 3ª DP.
Com o apoio do Corpo de Bombeiros e de um técnico da CEEE, foram cumpridos mandados de busca em 13 estabelecimentos de reciclagem. Em oito locais, foram encontrados materiais cuja procedência não foi comprovada. Principalmente cobre retirado de fiação elétrica.
— O técnico da CEEE identificou fios próprios de transmissão de alta tensão que, pela característica, só podem ter sido tirados da iluminação pública — explica o delegado.
Nesses estabelecimentos, proprietários ou gerentes foram autuados em flagrante por receptação qualificada, cuja pena prevista varia de três a oito anos de reclusão e multa.
— Eles afirmaram que compraram o material de catadores, mas o comerciante tem a obrigação de saber a origem do material que vende. Caso contrário, não pode comprar e muito menos colocar à venda — diz Muller.
Em relação às condições físicas dos estabelecimentos, seis foram interditados pelos bombeiros por falta de PPCI, dois foram notificados, um recebeu auto de infração, dois estavam fechados e outros dois estavam em situação regular.
"Os carrinhos são deles, não são nossos"
Aos 50 anos e morador da Vila dos Papeleiros, no bairro Floresta, um dos tantos catadores que são vistos diariamente na região confirma que o carrinho que utiliza não é seu. Nega que o proprietário fique com uma parcela do valor obtido com seu trabalho, mas admite que é o dono do depósito que decide o que pagar.
Confuso, chega ora a afirmar que recebe R$ 15 por dia, ora R$ 40 por semana. Depois, diz que chega a dar R$ 30 por dia (mas se contradiz ao afirmar que só leva o material à reciclagem uma vez por semana, aos sábados).
O carrinheiro afirma que trabalha de segundas a sextas recolhendo material reciclável. Pelo valor estimado pelo delegado Hilton Muller e citado pelo catador (R$ 15 por dia), a situação o deixa abaixo da linha da pobreza estipulada pelo Banco Mundial: US$ 5,5 (R$ 22,11) por dia. No caso de R$ 40 semanais também mencionados, a situação o classifica abaixo da linha da extrema pobreza: US$ 1,90 (R$ 7,60) por dia.
Este carrinho é teu?
Não. Este carrinho é do depósito. Eu só tenho que carregar agora.
Quanto tu faturas por dia?
Eu só vou acumulando em casa. Eu faturava uns 15 contos, 40 contos. Só vou acumulando em casa. Depois eu vendo no sábado, aí dá uns R$ 40.
E o dono do depósito fica com quanto?
Ele não fica com nada. Ele só me empresta o carrinho para eu trabalhar. Eu só vendo o material para ele. Os carrinhos são deles, não são nossos.
Quanto ele te paga por quilo?
Ele não diz o preço. É um depósito grande. Tem que perguntar no depósito. Se tiver bastante alumínio na tua casa eles vão lá e buscam. Latinha, pet, tudo, mandam um caminhão ir buscar.
Mas quanto mesmo tu consegue ganhar por dia?
Ah, não, por dia dá uns 30 contos.