Carros, carcaças e peças de veículos espalhados em pátios de residências e depósitos irregulares tomam conta de pelo menos duas quadras na região central de Aceguá, município distante 430 quilômetros de Porto Alegre, na fronteira com o Uruguai. A cidade, de pouco mais de 4 mil habitantes, é destino de centenas de veículos que desaparecem no Estado e até em outras regiões do país. Uma quadrilha gaúcha movimenta o comércio clandestino de carros brasileiros no país vizinho, como mostrou a reportagem do Grupo de Investigação (GDI) da RBS veiculada no Fantástico.
Na mira da Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas de Bagé, uma quadrilha foi desarticulada em operação na terça-feira (8). O grupo comprava os carros ilegais para desmanchá-los em ferros-velhos clandestinos ou levá-los para o Uruguai.
Em páginas no Facebook ou em grupos no WhatsApp, os criminosos ofereciam dinheiro por veículos com multas e impostos atrasados, problemas judiciais e com busca e apreensão. Ou seja, automóveis que não podem transitar no Brasil sem resolver as pendências. O problema é que o custo para regularizar as situações chega a superar o real preço dos veículos que, na maioria dos casos, têm mais de 10 anos de uso. Por isso, eram comprados pela quadrilha por quantias abaixo do valor de mercado. Segundo apuração, o bando também adquiria carros roubados. Nestes casos, o contato era feito com grupos da Região Metropolitana.
— Parte da quadrilha negocia os carros, outros vendem. Alguns são responsáveis por desmanchar os veículos e comercializar peças. Mas o forte realmente é o envio de veículos com problemas aqui no Brasil para o Uruguai. São quase todos irmãos e primos — explica o delegado Cristiano Ritta, que comandou a investigação.
Durante a apuração da delegacia de Bagé, que começou em setembro de 2017, a quadrilha teria levado para a fronteira com o Uruguai cerca de 500 carros e movimentado mais de R$ 5 milhões. Os veículos, comprados por cerca de R$ 3 mil na Região Metropolitana, eram revendidos no país vizinho por valores que variavam de R$ 5 mil a R$ 20 mil. Em Porto Alegre e Canoas, a polícia investigou motoristas de guinchos responsáveis por pagar os vendedores dos automóveis e levá-los para Aceguá.
Parte dos carros comprados pela quadrilha vai para cidades uruguaias próximas da fronteira. Uma delas é dividida por uma rua e recebe o mesmo nome do município brasileiro, Aceguá. Mas o principal destino é Melo, a cerca de 60 quilômetros do Brasil. O GDI esteve no local em três oportunidades e anotou placas de 200 veículos brasileiros. Vários são carros com busca e apreensão, alienação fiduciária, licenciamentos vencidos, roubados e clonados.
Um deles, um Logan, 2008, foi furtado em outubro de 2018, em Canoas. O proprietário Robson Dubiel Vieira estacionou o veículo em frente de casa. Quando voltou, havia desaparecido. Ao ser avisado pela reportagem sobre a situação, demonstrou surpresa:
—Até então, eu não tinha mais esperança de localizar esse veículo.
Vieira está em contato com a polícia para recuperar o carro.
Esperança para evitar situações como essa são as placas do Mercosul, que já começaram a ser implantadas no país, inclusive no Rio Grande do Sul. Em nota, o Departamento Nacional de Trânsito diz que um dos objetivos da adoção do novo modelo é coibir furtos e roubos de veículos.
Há expectativa da diminuição da circulação de carros em situações irregulares entre os países, já que deve haver compartilhamento de dados.
Negociação
A reportagem negociou com a quadrilha a venda de três veículos populares. Sem saber que falava com um repórter, o homem, que o seria líder do grupo, Samir Izzat, diz que paga à vista pelos carros. Oferece R$ 8 mil por um Corsa, ano 2004, um Palio 2008 e uma Saveiro 1998, além do transporte para levá-los de Porto Alegre para a fronteira.
Repórter – Esses carros estão enrolados! Não vai ter problema pra mim?
Izzat – Depois que eu pego os carros, nenhum anda no Brasil. Só circulam no lado uruguaio, entendeste? Não tem mais problema. Tu pode ficar tranquilo. Não vai entrar multa, não vai entrar nada. É um carro que vai lá pra dentro do Uruguai e nunca mais anda no Brasil.
Repórter – Os carros não estão no meu nome, tu compra igual?
Izzat – Não tem problema, só tem que ter o papel. E não te incomoda mais. Meu guincheiro vai aí (Porto Alegre), olha as condições e se tiver tudo certinho, te paga na hora.
Depois, a reportagem encontrou um dono de caminhão investigado por fazer parte do esquema, Rafael Prestes dos Santos.
Repórter – São três carros. Mas estão enrolados. Estão com busca e apreensão da Justiça e impostos atrasados, tudo enrolado. Não estão no meu nome.
Santos – Só trabalho com carro enrolado. Estou quase toda a semana na fronteira, tem os caras que compram carro enrolado. Dá pra fazer R$ 550 cada um (preço do transporte).
Repórter - Mas a polícia não pega?
Santos – Busca e apreensão a polícia não pega. Só com IPVA atrasado mandam baixar do caminhão. Mas é difícil, só lá em Bagé mesmo, às vezes. Mas passo de madrugada.
Operação Los Hermanos
A operação que desarticulou a quadrilha de Aceguá contou com 50 policiais. Sete mandados de buscas nas casas dos suspeitos e nos desmanches clandestinos foram cumpridos. Cinco pessoas, identificadas como Sadam Mohamed Izzat Rops, Yussef Izzat Yussef, Marufi Izzat Yussef, Mustafá Ali Mohamed Ali e Rafael Thums Bandeira, foram presas em flagrante. Samir Izzat, apontado como líder do esquema, não foi encontrado. Ele foi indiciado pela Polícia Civil. Donos de guinchos da Região Metropolitana, Diego Presser e Rafael Prestes dos Santos, também foram indiciados por organização criminosa, receptação qualificada e adulteração de veículos.
Contrapontos
O que diz a polícia uruguaia
Segundo o chefe de polícia de Cerro Largo, comissário-geral Wilfredo Rodriguez, há falta de fiscalização nas fronteiras. Ele diz que não há acesso aos dados dos veículos no Brasil para saber se são roubados ou clonados.
O que diz a defesa dos indiciados
O advogado Alex Barreto Vaz, que representa os investigados, diz que aguarda ter acesso ao inquérito para se manifestar.
A respeito dos crimes de receptação e adulteração de veículos, ressalta que dos cinco presos em flagrante, dois já foram liberados – Rafael Thums Bandeira e Yussef Izzat Yussef. Sobre a venda dos carros alienados, com busca e apreensão, multas ou restrições, disse que, apesar de não ser correto, é uma prática comum na fronteira.