Para explicar à filha Maria Eduarda, oito anos, que o primo Gabriel Vilas Boas Minossi, 19 anos, não vai voltar, Márcia Minossi, 45 anos, usou forma lúdica. Disse que ele virou estrela. À noite, a menina busca o jovem no céu e cobra a promessa de que brincariam juntos. A mãe tenta preservar a pequena da tragédia que presenciou em 9 de novembro. Aos pés do afilhado, viu ele ser executado na cama, no Hospital Centenário, em São Leopoldo, por engano.
A luz do corredor que entrava na enfermaria impedia Márcia de descansar junto ao leito de Gabriel, que dormia, após ser medicado. Por diversas vezes, a dona de casa levantou e encostou a porta. Voltava e secava o suor que escorria pela testa do sobrinho. Ele estava internado após ter fraturado as pernas em acidente de moto, no retorno do trabalho.
Sem conseguir dormir, a madrinha decidiu trocar de posição. Empurrou a cadeira até os pés da cama, cobriu o rosto com casaco e fechou os olhos. Minutos depois, às 4h16min, acordou ao som dos disparos. Dois criminosos encapuzados atiravam na direção do jovem. As balas reluziam na escuridão.
— Só ouvi "pã, pã, pã". Disse: "Meu Deus, o que é isso?". Olhei para cima e vi uns negócios de fogo saindo. Pensei "está pegando fogo no hospital" — recorda.
Foi uma tragédia anunciada. Perdi meu filho. E até hoje ninguém me procurou. Não recebemos apoio nenhum do Estado. É uma negligência, que continua
MARCELO MINOSSI
Pai de Gabriel
Assim que os tiros cessaram, Márcia escutou uma jovem gritando. Havia sido baleada no pé. O paciente que a garota cuidava, no leito do lado, foi atingido na perna. Rodeada de projéteis, a dona de casa viu o sobrinho e entendeu o que havia acontecido:
— Vou para cima do Gabriel, com as duas mãos no peito dele, soqueio e chamo por ele. Ele olha pra mim e suspira. E ele foi, na minha frente. O último suspiro olhando pra mim. Como se dissesse "tenho que te ver dinda, pra ver se tu está bem" — narra, entre lágrimas.
Alguns funcionários estavam escondidos e outros andavam atônitos dentro do hospital. Ao lado de Márcia, a jovem pedia socorro. Quando os criminosos partiram, a equipe passou a atender os feridos. Sem ferimentos, Márcia assistia a tudo, em choque. Vinte e nove estojos de pistola 9 milímetros foram recolhidos dentro do quarto.
— Fiquei parada olhando. Pedi: "me tira daqui, para onde eu vou?" Aí me levaram para a enfermaria — relata.
Há um mês, a dona de casa passa por tratamento psiquiátrico e toma calmantes. À noite, acorda chorando, apavorada. Gabriel era considerado como filho pela tia, irmã do pai dele, Marcelo Minossi, 39 anos. Foi para o irmão que ela ligou, avisando dos disparos dentro do hospital. Disse que Gabriel havia sido baleado, mas não contou o pior.
Quando Marcelo chegou, perguntaram se era familiar do jovem morto a tiros. O pai tinha estado na casa de saúde poucas horas antes e ouvido relatos de funcionários, que temiam que o local fosse invadido. No hospital estava um apenado, do regime semiaberto, envolvido em tiroteio. Havia burburinho de que rivais atacariam em represália.
— Imagina se tem mais gente no quarto. Se ela está sentada, com a cabeça em cima dele. Eles não pouparam a cama do lado. Foi uma tragédia anunciada. Perdi meu filho. E até hoje ninguém me procurou. Não recebemos apoio nenhum do Estado. É uma negligência, que continua — lamenta o pai.
Jovem deveria ter recebido alta
Naquela quinta-feira, horas antes dos disparos, Gabriel deveria ter recebido alta. Mas teve um episódio de pressão alta. "Pai, tô muito nervoso. Se os caras entram aqui, eu tô bem na porta", contou no fim da tarde. A enfermaria estava movimentada por conta do apenado baleado.
— Todo mundo estava nervoso porque estavam falando que iam invadir de manhã ou de tarde o hospital — recorda Márcia.
O verdadeiro alvo dos criminosos esteve na enfermaria, em leito próximo ao de Gabriel, naquela tarde. Alex Junior Abreu Tubiana, 28 anos, chegou a conversar com o rapaz. "Boa sorte pra ti", disse antes de ser transferido de quarto. A situação causa revolta.
— No mínimo, deveriam ter esvaziado esse quarto. Há negligência do hospital e da Brigada Militar. Foi morto um inocente. Dói muito, ainda está doendo. A tragédia podia ser maior. Muitas famílias poderiam estar enlutadas também — critica o tio, Antonio Gonçalves Inocêncio, 50 anos, marido de Márcia.
Foi ela que ficou cuidando do sobrinho, enquanto o irmão foi para casa preparar a residência para receber o filho. A mãe do rapaz, que reside em Santa Catarina, estava há dois dias no hospital com ele. Para que ela pudesse descansar um pouco, a madrinha assumiu o lugar. A expectativa era de que Gabriel fosse liberado no outro dia.
— Não vejo a hora de ir para casa — dizia para a madrinha.
À noite, o jovem enviou um áudio para a pequena Maria Eduarda. Prometeu que voltaria logo para comer churrasco e jogar videogame. Desde os 15 anos, trabalhava como monitor de crianças. Adorava estar rodeado delas. Mecânico, especializado em motos, planejava montar negócio com o pai. Sonhos que ficaram apenas na memória.
— Enterrar um filho, ainda mais da forma que foi, não tem explicação — lamenta Marcelo.
No fim de novembro, o pai recebeu 230 cartas de alunos da Escola Alberto Santos Dumont, de Sapucaia do Sul, e da Escola Rio Grande do Sul, de Canoas. Por iniciativa de um professor de Português, as crianças escreveram cartas de apoio para o pai e a família. "Lembre-se que o seu filho não gostaria de te ver chorando", escreveu uma das meninas.
— A dor será eterna — diz o pai.
Alvo segue foragido
No regime semiaberto, Alex Junior Abreu Tubiana, 28 anos, recebeu liberação do hospital na tarde seguinte à morte de Gabriel. Ele foi condenado a 25 anos e seis meses de prisão pelo assassinato de dois homens, sendo obrigado a cumprir pena até 2034. Já cumpriu 10 anos da pena.
Em outubro, foi transferido para o regime semiaberto, e aguardava em casa a colocação de tornozeleira eletrônica, devido à falta de vagas nos albergues. Na quarta-feira, 7 de novembro, houve troca de tiros em uma oficina onde Samuel Lima da Rosa, 19 anos, foi morto e Tubiana ficou ferido. Por isso, foi hospitalizado. Atualmente segue foragido.
Quatro suspeitos da execução foram presos pela Polícia Civil. Jorge Gilberto da Silva Junior, 22 anos, William Gabriel Almeida Pereira, 18 anos, e Lucas Gabriel Pedroso Nunes, 21 anos, foram presos na Vila Brás, em São Leopoldo, uma semana após o crime.
O último a ser capturado foi Deivid Silva de Avila, 21 anos, localizado em Santa Catarina, em 24 de novembro. Em depoimento, o quarteto permaneceu em silêncio. A invasão da casa de saúde foi gravada pelas câmeras. O delegado Vinicius do Valle, da Delegacia de Homicídios de São Leopoldo, informou que a investigação segue, em sigilo.
Contrapontos:
A direção do Hospital Centenário apresentou ofício no qual solicitou à Brigada Militar escolta policial devido à informação de que o paciente estaria em risco. O documento cita a necessidade de proteger os outros usuários e funcionários. A instituição também informou que reforçou a segurança interna.
A Brigada Militar confirmou que recebeu informação sobre a possibilidade de ameaça a um paciente e que enviou oficial até o local. Disse que o paciente, que seria alvo, foi ouvido e se mostrou tranquilo. Diante disso, segundo o tenente-coronel Daniel Coelho, a opção foi por fazer rondas na casa de saúde. Uma guarnição esteve na casa de saúde 10 minutos antes do ocorrido.