O relógio marcava 9h05min. Uma advogada de 43 anos se preparava para deixar o carro e entrar em um evento no bairro Floresta, região central de Porto Alegre, quando subitamente foi abordada por um homem armado. Da direção do carro, acabou sendo empurrada para o banco traseiro do veículo, um Fluence. E ali começava o martírio que durou oito horas.
Do local do assalto, foi levada para um posto de combustível. Até então estava sozinha com um homem, que dirigia o carro. Para frustrar qualquer tentativa de fuga, a advogada recebeu alerta de um comparsa do homem. De dentro de outro carro, abanou para a mulher com uma arma em punho.
Mantida refém, foi obrigada a autorizar compras pelo celular em lojas de eletrodomésticos e materiais de construção. Foram gastos R$ 23 mil nesses produtos, colocados em outros três carros.
— Eles limparam minha conta. Gastaram o que nem tinha — conta.
O grupo era organizado e se comunicava via rádio. Obrigada a ficar com a cabeça baixa e as mãos para a frente, a advogada só ouvia os próximos passos dos criminosos. No posto de combustível foi colocada em novo veículo, com outros dois homens. Após circular de carro com eles, enquanto faziam as compras, foi levada a uma fábrica abandonada em Canoas.
Passadas mais de duas horas, foi novamente colocada em um carro, que seguiu pela freeway. Na estrada, os criminosos passaram a discutir o que seria feito dela.
— Eles falavam: "vamos ferrar ela" e eu nem sabia que ferrar era matar. Em seguida, falaram "a tia é boa, foi boa com a gente" — conta.
Na altura da estação Niterói do trensurb, em Canoas, a vítima foi libertada. Além dos R$ 23 mil, perdeu o carro, que nunca foi recuperado. Depois do crime, ficou seis meses praticamente sem sair do apartamento no bairro Bella Vista e engordou 15 quilos. Quando tentava sair de casa, passava mal e tinha ânsia de vômito no elevador. Para superar o trauma, fez acompanhamento psicológico e decidiu se mudar para Novo Hamburgo, no Vale do Sinos. Recentemente, voltou a dirigir, dessa vez com carro mais simples, para não chamar atenção dos ladrões. Agora, estaciona com cautela e põe a chave do carro dentro do sutiã.
— Hoje só vou em lugares que tenha alguém me esperando — relata.
O roubo de veículos não se restringe à advogada. GaúchaZH percorreu diferentes bairros de Porto Alegre em busca de histórias. E não foi difícil encontrá-las. Em cada rua, surgia relato diferente de um assalto: uma mulher que saía da academia, um homem que chegava a sua casa ou uma idosa que se preparava para visitar a filha.
Somados, segundo a Polícia Civil, foram 1.921 roubos de veículos em Porto Alegre. Os números são do começo deste ano até 10 de maio e correspondem a 22% de todos os registros de 2017 na Capital.
Os bairros Sarandi, Rubem Berta, Petrópolis, Jardim Itu-Sabará e Vila Ipiranga figuram nas primeiras posições a lista. O bairro Floresta, onde a advogada foi abordada, fica na sexta posição. Dos 10 bairros com maior incidência do crime, oito ficam na Zona Norte de Porto Alegre. Só Sarandi e Rubem Berta acumulam 32% do total de ocorrências.
De acordo com o titular da Delegacia de Furto e Roubo de Veículos (DRV), delegado Adriano Nonnenmacher, a maior incidência na Zona Norte se deve à facilidade de fuga da região:
— A região tem localização geográfica que favorece os criminosos, com autoestradas, grandes avenidas. São bairros populosos, é entrada da cidade e acaba facilitando a ação de ladrões que, às vezes, vêm de outras cidades, entram em Porto Alegre e fogem com o veículo — observa o policial.
Rubem Berta: Família foi alvo de ladrões duas vezes
Por duas vezes seguida em menos de meio ano, uma família se viu refém de ladrões de carro em Porto Alegre. Da primeira vez, mãe e filho de seis anos foram abordados por criminosos ao saírem do condomínio no bairro Rubem Berta, zona norte da Capital.
O crime ocorreu em outubro do ano passado. Os dois foram mantidos reféns no carro na mira de uma arma. A um quilômetro do prédio, foram liberados. O carro foi levado e acabou sendo recuperado em Viamão, mas o trauma do crime ainda persiste.
— Minha mulher não saí mais de carro à noite — conta um empresário, de 37 anos.
O outro caso ocorreu em fevereiro deste ano. O empresário chegava ao prédio e, quando ainda estava manobrando o carro, teve a frente do automóvel fechada subitamente por outro veículo. De dentro, desceram homens armados com pistolas.
— Eles gritaram "perdeu, perdeu". Larguei o carro no meio da rua e sai correndo com a chave. Eles não conseguiram levar o veículo — relata o homem.
Mas a história não para por aí. Dono de um trailer de lanches, o empresário amargou uma perda de 80% no faturamento do negócio devido à violência no bairro Rubem Berta. Com medo, a clientela deixou de se arriscar a ir à pé ou de carro buscar o lanche. E não era por menos: em seis meses mais de 50 pessoas foram assaltadas no entorno do trailer - alguns tiveram inclusive o carro levado. O movimento no comércio minguou e agora o ponto está com os dias contados, prestes a ser fechado.
— Hoje só paga o salário do funcionário — conta o empresário que abriu outro ponto na Avenida Assis Brasil como alternativa de negócio, considerado hoje mais lucrativo.
Após os crimes, a família pensa em deixar o bairro.
— Depois de ver ou ser assaltado acaba a tranquilidade. A gente pensa em se mudar. Vender o apartamento aqui e ir para outro lugar. Não dá mais — desabafa o homem.
Petrópolis: mulher abandona carro para fugir de assalto
— Eu podia ter sido morta.
A lembrança do assalto ainda é nítida para a bancária aposentada de 68 anos. Ela tinha acabado de deixar a academia e embarcava no carro com outras duas amigas. Era 9h30min. Uma delas, com dificuldade para caminhar, demorou mais para entrar no veículo. Foram nesses minutos que criminosos viram uma oportunidade para assaltar.
— Quando consegui entrar no automóvel, já vi o carro ao lado. Eu disse: "que isso!" e o bandido gritou: "desce vagabunda!" Daí vi o revólver.
Antes de sair do veículo, a mulher puxou a mochila do banco traseiro e começou a correr. Resolveu se abrigar na academia, a cerca de 50 metros. Chegou ali tremendo. As amigas ficaram no carro, que foi revirado pelos criminosos em busca da chave.
Uma delas teve o celular levado pelos ladrões que, em seguida, abordaram outra mulher que deixava a neta na academia. Dessa vez, conseguiram levar o veículo.
— Aqui está horrível. É toda hora — conta a bancária aposentada.
Com medo, ela parou de dirigir e não carrega mais a carteira, nem o celular. Só anda com uns trocados e alguns cartões.Próximo dali, outro morador do Petrópolis, um advogado aposentado de 68 anos, reclama da alta incidência de roubos de carros.
Em um ano e meio, já foi vítima três vezes quando chegava ao prédio em que mora com a família na Avenida Bagé.
— Na primeira vez estava saindo para levar filho para jantar e roubaram um Corolla. Na outra vez estava estacionando aqui na frente e levaram um Cruze. Por último, estava entrando na garagem e me abordaram de novo. Ando muito assustado.
Sarandi: Abordado na porta de casa
— Era uma rua tranquila. Agora é toda hora: de dia, de noite.
O desabafo é de homem de 70 anos, morador de uma rua paralela da Avenida Sertório, no bairro Sarandi. Em menos de três meses, o aposentado teve o carro levado duas vezes por criminosos na frente de casa. O primeiro registro ocorreu no final de novembro de 2017, já o outro foi em fevereiro deste ano. Uma das situações aconteceu em plena luz do dia, às 11h.
— Quando abri a porta do carro, dois me abordaram. Não tinha o que fazer.
Mesmo entregando o carro, ele acabou levando uma coronhada de um dos criminosos. Na outra situação, percebeu que ia ser assaltado e tentou avançar o carro para cima do grupo que se aproximava. Não deu tempo.
— Quando eu vi eles tinham pulado para dentro do carro — conta o idoso, que mora na região desde 2004.
A alta frequência de assaltos na região já faz com que a vizinhança preveja o crime. Ou seja, já sabem o padrão de ataque. Normalmente os criminosos chegam em dupla, com armas em punho, à pé ou de carro. Quando estão à pé, normalmente há um veículo de suporte, para fugir rapidamente.
Em muitos casos, os criminosos não se limitem a assaltar motoristas, mas também pedestres. Uma idosa de 67 anos acabava de sair de casa para ir ao médico, quando percebeu movimentação estranha na rua. Era 13h.
A sua frente notou dois homens caminhando em direção à parada de ônibus. Eles sacaram as armas e passaram a assaltar quem estava no ponto. A idosa resolveu voltar para casa quando percebeu que um carro aguardava os criminosos. Quando viu que chamou a atenção do motorista do carro, não exitou na próxima reação.
— Eu comecei a gritar e correr. Eu gritava "liga as câmeras" que estão assaltando. Eu me tremia toda.
Passado o susto, agora a aposentada se diz com medo de andar na rua. Ficou 15 dias sem colocar a roupa que usava no dia do crime. Não queria ser reconhecida. Desde então, fica mais atenta com a movimentação da rua.
Recentemente viu quando um carro foi deixado por criminosos na rua para "esfriar", ou seja, para identificar a existência de rastreadores no veículo. Era 6h. Ela e vizinhos avisaram a polícia, mas ninguém apareceu. Mais de três horas depois, os criminosos voltaram e levaram o carro.
— A gente não acreditou nisso.
Em uma rua próxima, os relatos de roubo de carro se repetem.
— Aqui é um atrás do outro. Nessa semana teve três assaltos no mesmo dia. Aqui nem meia dúzia se safou de ser roubado. Minha mãe ficou com uma arma na cabeça — conta um idosa de 64 anos.
Ela mora há 40 anos na região. Ao longo desse tempo, viu as grades baixas se elevaram. E quem antes sentava na frente de casa para tomar chimarrão agora se esconde dentro de casa.
— Eu não tenho mais medo, tenho pânico desses assaltos.
Entre janeiro e abril de 2018 houve queda nos roubos em Porto Alegre
Conforme o último levantamento da Secretaria de Segurança Pública (SSP), divulgado nesta sexta-feira (18), houve uma redução de 1,1% nos roubos de veículo na capital gaúcha. A queda foi registrada nos quatro primeiros meses deste ano em comparação com o mesmo período de 2017.
Foram 34 casos a menos – de 3.234 para 3.200.
Na capital gaúcha ocorreu mais da metade dos roubos de veículos cometidos em solo gaúcho. Nos primeiros quatro meses deste ano foram 6.114 registros no Rio Grande do Sul. No mesmo período do ano passado foram 6.659 ocorrências, o que representa uma redução de 8,2% neste tipo de crime no estado.
Por outro lado, na análise ano a ano foi verificado aumento de 3,7% nas ocorrências em Porto Alegre. A situação ocorreu entre 2016 e 2017. De 8.129 registros passou para 8.430 - 301 ocorrências a mais. A situação de Porto Alegre acabou alavancando as estatísticas estaduais, com um aumento de 1,42%. As 17.634 passaram para 17.886 ocorrências.
Delegacia mudou estrutura para atender aumento de ocorrências
Para atender tantos registros, a delegacia especializada em furto e roubo de veículos mudou a estrutura. Desde 2016, trabalham na unidade dois delegados, que se dividem entre investigações mais complexas e outras mais corriqueiras. Antes, apenas um delegado ficava encarregado pela especializada.
Conforme o diretor da Divisão de Assessoramento Especial do Deic, Sander Cajal, a presença de mais um delegado permite coordenar melhor a equipe, composta de 26 agentes. Além disso, há mais de dois anos são praticamente os mesmos investigadores que atuam na delegacia.
— A equipe está entrosada, o que facilita o trabalho — garante Cajal.
Além da unidade especializada, ocorrências roubos de veículos também são investigados pelas delegacias espalhadas pela cidade. Com isso, a DRV acaba se concentrando em crimes organizados, de quadrilhas especializadas em roubo de veículos, mas também apura ações individuais de criminosos. Conforme Nonnenmacher, há casos de ladrões que cometem o crime no mesmo bairro em que vivem.
De 2016 para cá a delegacia conseguiu organizar dez grandes operações, entre elas a Machina Nostra, que desarticulou uma quadrilha suspeita de roubar mais de 10 veículos por dia em Porto Alegre. Mais de 30 pessoas foram denunciadas. Nos últimos dois anos, 400 pessoas foram presas pela especializada - 203 em 2016 e 197 no ano passado. Só no começo deste ano outras 66 pessoas acabaram detidas.
Credenciamento de desmanches pode ter ajudado a reduzir roubos
Para o governo, um dos fatores que podem ter contribuído para a redução dos roubos de veículos é o credenciamento de desmanches de veículos no Estado, iniciado em 2015. O processo envolve inclusive a etiquetagem das peças, que são registradas em um sistema informatizado. Os comércios de venda de peças de veículos tiveram um período de credenciamento e, quem não fez as adequações, passou a ser considerado clandestino.
Hoje há 346 Centros de Desmanches de Veículos (CDV) credenciados pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e mais de 9,6 milhões de peças catalogadas.
Além do credenciamento, também foi criada em fevereiro de 2016 uma força tarefa para atuar em desmanches irregulares, com a participação de diferentes órgãos de segurança. O coordenador da força tarefa, coronel César Augusto Pereira, entende que a fiscalização pretende enfraquecer a venda de peças de carro, fruto de roubo de veículos.
— A gente não trata eles como criminosos, mas aquele que for encontrado com peças roubadas vão responder por isso.
Até agora 63 pessoas foram presas em ações da força tarefa, realizadas em 35 cidades. Ao todo 4850 toneladas foram recolhidas, que acabaram sendo encaminhadas para reciclagem.
Patrulhas de moto pretendem diminuir ocorrência de roubos a veículos
O secretário da segurança pública, Cezar Schirmer, reconheceu que ainda é alto o número de roubos no estado. Para inibir esse tipo de crime, foi lançado na última quinta-feira uma operação da Brigada Militar, que inicialmente vai contar com 120 motociclistas para fazer rondas em pontos da cidade. A ideia é colocar os PMs em locais da cidade com maior incidência de roubos.
— A tendência é ampliar e chegar a 150 policiais. Com as novas motos, que devem chegar em 40 a 45 dias, podemos chegar a mais de 200 motociclistas engajados em uma ação, não só em Porto Alegre, mas na região metropolitana e no Delta do Jacuí — explica o comandante do Comando de Policiamento da Capital (CPC), Jefferson Jacques.