Nas últimas duas décadas, a comunidade surda foi impactada por diferentes avanços relacionados à educação, saúde e inclusão social. O principal deles ocorreu há mais de 21 anos e é considerado um divisor de águas, antecedendo uma série de outras conquistas. Trata-se do reconhecimento da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão, a partir da aprovação da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, pelo governo federal.
Seis anos depois, outra legislação brasileira instituiu o 26 de setembro como Dia Nacional dos Surdos. Celebrada anualmente, a data foi escolhida em homenagem à criação da primeira escola do país voltada a esse público: o Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), fundado em 1857, no Rio de Janeiro. A nível mundial, o mês também é marcado pela Semana Internacional das Pessoas Surdas — neste ano, a programação teve início na segunda-feira (18) e se estende até domingo (24).
Tiago Coimbra Nogueira, intérprete de Libras e professor do Departamento de Línguas Modernas do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que o reconhecimento da Libras trouxe diversos avanços para a participação efetiva dos surdos na sociedade, gerando grandes impactos no ensino e na formação, por exemplo:
— A partir disso, os cursos de fonoaudiologia e de licenciatura tiveram que ter obrigatoriamente uma disciplina de Libras em seus currículos. Então, fez com que mais pessoas aprendessem Libras dentro da universidade e dos espaços acadêmicos. Esse é um aspecto importante, porque o reconhecimento do status linguístico da Libras faz com que essa língua comece a existir em outros contextos.
O decreto 5.626, de 22 de dezembro de 2005, também tem forte impacto na área da educação, com capítulos destinados à inclusão da Libras como disciplina curricular (obrigatória na formação de professores e na fonoaudiologia, mas optativa nos demais cursos de Ensino Superior e na educação profissional), à formação do professor e do instrutor de Libras e do tradutor e intérprete de Libras — Língua Portuguesa, à garantia de outros direitos das pessoas surdas, como o acesso à saúde, e ao papel do poder público.
— Anos atrás, era muito difícil ver intérpretes, tradutores e materiais traduzidos, mas nos últimos anos é cada vez mais recorrente, devido a essas ações de políticas de linguísticas. E, em 2015, temos a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), que é uma legislação bem importante, que amplia isso, trazendo mais aspectos sociais — comenta.
Como exemplo de um dos avanços gerados pela legislação, o especialista cita a inclusão da tradução audiovisual em língua de sinais como um dos recursos de acessibilidade para surdos. Nogueira afirma que, enquanto outros países optam somente pela legenda, o Brasil tem uma lei que possibilita o chamado "princípio da redundância", em que todos os recursos estão disponíveis.
Em razão disso, os filmes exibidos nos cinemas devem ter cópias acessíveis para esse público. O problema, segundo o professor, é que nem todos os estabelecimentos já se adaptaram à obrigatoriedade — ou seja, pode ser que uma pessoa surda chegue em um cinema e ainda não tenha esse dispositivo de tradução disponível para acompanhar o filme.
Acesso às universidades e educação bilíngue
O território brasileiro também se destaca em aspectos envolvendo a própria participação dos surdos na sociedade e a formação de intérpretes, afirma Nogueira.O reconhecimento da Libras impactou desde a Educação Básica até o futuro profissional dos surdos. O professor da UFRGS e intérprete de Libras Tiago Coimbra Nogueira ressalta que não havia uma obrigatoriedade para que alunos não ouvintes fossem atendidos em Língua Brasileira de Sinais, por exemplo – ao contrário do que ocorre atualmente. Outro aspecto importante foi aprovado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em 2021.
— – Antigamente, os surdos eram destinados à Educação Especial, junto com todas as outras deficiências — relembra Nogueira:
— Atualmente, temos uma modalidade que se chama educação bilíngue para surdos, onde o ensino é feito em Libras e os alunos aprendem o português como uma segunda língua escrita.
Já em relação ao Ensino Superior, o professor aponta que os programas de graduação e de pós-graduação das universidades passaram a aceitar a Libras como língua de entrada. Também destaca que, hoje, há 91 surdos doutores e 300 mestres no Brasil.
— Os alunos surdos tiveram a oportunidade de estudar, e isso muda a história da comunidade surda. A partir de 2006, também começaram os cursos de formação de professores e de intérpretes de Libras. Então, esse reconhecimento linguístico vai aumentando essas possibilidades. Temos que avançar em muitas áreas ainda, mas essa lei é bem significativa — enfatiza.
Nogueira também explica que a Libras não é a segunda língua oficial do Brasil, obrigando que todos os documentos também sejam traduzidos para ela, como ocorre em países que têm o francês e o inglês como idiomas oficiais, por exemplo. Mas a expectativa é de que, um dia, a língua de sinais tenha esse status.
O professor e intérprete acrescenta ainda que o Brasil é uma referência em estudos e pesquisas relacionados à língua de sinais, estando muito à frente de outros países da América Latina e inclusive da Europa, por exemplo.
Avanços na área da saúde
Na área da saúde, os principais avanços estão ligados à maior possibilidade de diagnóstico precoce e às opções de tratamento disponíveis pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Joel Lavinsky, otorrinolaringologista da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre e professor da UFRGS, aponta que a surdez profunda afeta de duas a três crianças a cada mil nascidos vivos. Essa condição pode ter causas ambientais, referentes à vírus como a rubéola e o citomegalovírus, e genéticas. Ele afirma:
— Essas crianças terão dificuldades ao longo dos primeiros anos de vida, pois vão apresentar maior dificuldade de desenvolver a linguagem oral e para se comunicar com os pais e outras pessoas. Isso pode levar a uma situação triste, que é o isolamento. Compromete o desenvolvimento e dificulta a inclusão na sociedade e o aprendizado.
O mesmo isolamento também pode ocorrer com quem nasce escutando e perde a audição ao longo da vida — nesses casos, a saúde mental e a cognição também podem ser afetadas.
De acordo com Lavinsky, hoje é possível reabilitar a audição em quase todos os casos de surdez, em especial quando o tratamento é feito de forma precoce. Implantes cocleares, aparelhos auditivos e outras cirurgias estão entre os recursos de reabilitação auditiva fornecidos pelo SUS — essa definição depende da causa e da gravidade da perda:
— O SUS disponibiliza a maior parte desses tratamentos. Existem algumas filas e certas dificuldades, que variam de Estado para Estado e cidade para cidade, mas o sistema público de saúde consegue encaminhar para os centros de referência que conduzem as questões auditivas e disponibilizar tecnologias apropriadas para cada caso. O implante coclear é uma das maiores revoluções do século 20 e é indicado quando há surdez severa a profunda, com o aparelho auditivo não sendo suficiente para ajudar a criança, adulto ou idoso.
Lavinsky explica que existe um período crítico para a reabilitação auditiva e que o ideal é não passar dos dois anos de idade da criança. Isso porque os resultados são melhores quando os procedimentos são realizados o mais precocemente possível. A dificuldade, muitas vezes, está na identificação precoce das crianças surdas e na demora do encaminhamento dos postos de saúde para os centros de referência.
— Todos os bebês, antes de ter alta da maternidade, devem realizar o teste da orelhinha, que é um exame simples em que se faz uma triagem auditiva. É obrigatório em todo o território nacional e tem ajudado no diagnóstico precoce. Temos uma conscientização maior, mas o problema é que, se o diagnóstico ocorre de forma tardia, atrasa o processo de reabilitação — aponta o especialista.
Ainda há preconceito
Segundo o professor da UFRGS Tiago Coimbra Nogueira, a Libras é vista por muita gente como uma língua menor:
— As pessoas costumam falar que surdos não falam, mas eles falam, só que a língua é visual espacial, não oral auditiva. Ainda enfrentamos preconceito sobre a língua de sinais. Infelizmente, também é muito comum vermos pessoas se referido ao surdo como “surdo-mudo” ou “mudinho”. A pessoa surda tem uma deficiência para ouvir, não para falar. Com terapias de fala, ela pode vir a falar em língua oral, mas pode optar por só usar Libras.
As pessoas costumam falar que surdos não falam, mas eles falam, só que a língua é visual espacial, não oral auditiva. Ainda enfrentamos preconceito sobre a língua de sinais.
TIAGO COIMBRA NOGUEIRA
Intérprete de Libras e professor do Departamento de Línguas Modernas do Instituto de Letras da UFRGS
A coordenadora do Setor Social da Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), Laís Drumond, diz que a comunicação ainda é um desafio para a comunidade surda, que luta muito para ter autonomia perante a sociedade, seja em relação à família, ao trabalho ou à faculdade. Em entrevista por chamada de vídeo com a participação da intérprete Nathaly Rocha, Laís contou:
— A pessoa surda gosta muito de usar a Libras, é mais clara e rápida a comunicação. A segunda língua é a escrita, o português. Se ensinar só português, alguns surdos ficam mais sozinhos na sala de aula com os ouvintes. Eles olham para o texto, para aquelas palavras, e ficam sem saber o significado. Se tiver imagem, é muito melhor.
A difusão da língua de sinais é muito importante para a inclusão social das pessoas surdas, mas não invalida a necessidade da presença de tradutores e intérpretes. E em diferentes esferas, aponta Nogueira:
— Quando pensamos em inclusão e em acessibilidade, estamos pensando em oferecer recursos antes que a pessoa surda chegue. Sempre falamos dos surdos na escola, no médico, na família, mas eles precisam de lazer também, de entretenimento. Precisamos pensar em outras formas de inclusão e de participação social.
Para o professor e intérprete, o Brasil também precisa avançar no tratamento dado aos bebês nascidos com problemas auditivos. Nogueira diz que a única opção ofertada é o implante coclear, excluindo a Libras — que, em sua visão, deveria ser indicada desde a infância, juntamente ao uso do dispositivo, como uma alternativa de comunicação e de desenvolvimento.
Laís cita o mercado de trabalho como outro espaço de dificuldade para a comunidade surda, afirmando que muitas pessoas acham que os surdos são dependentes de suporte e incapazes de ingressar em um emprego:
— O único problema é a audição, mas isso não nos impede de trabalhar. Aqui na Feneis, nós temos a área social que faz esse aconselhamento para que os surdos possam se profissionalizar, temos o RH e assistente social para dar o suporte.