Até seus quatro anos, Isabel Cristina Silveira da Silva, hoje com 44, se aproximava do pai e da mãe para pedir, aos gritos, aquilo que queria. Na época, ela ainda não entendia a surdez de Ery e Anita. Os dois então tentavam explicar para a filha que não conseguiam ouvir e que ela teria que chamá-los com gestos para mostrar o que desejava. Quem contava a história que hoje emociona a estilista gaúcha era sua avó materna, que deu suporte ao casal durante o nascimento dos três filhos — todos ouvintes.
Mas, quando a família deixou de morar na casa da avó, a vida de Isabel mudou. Ela passou a realizar atividades como acompanhar os pais em consultas médicas e servir de intérprete e tradutora, rotina que lembra a história de Ruby Rossi, protagonista do filme No Ritmo do Coração, vencedor do Oscar de melhor filme. O drama traz à tona o dia a dia da adolescente ouvinte que tem pai, mãe e irmão mais velho surdos — ou seja, é uma “Coda”, sigla de Child of Deaf Adults (filho de pais surdos), assim como Isabel— e os problemas decorrentes da falta de acessibilidade.
Isabel tinha apenas oito anos quando passou a ser responsável não só por ela, mas também por Ery e Anita, que atualmente têm 73 e 68 anos. E, na visão da estilista, o aspecto mais forte de ser uma Coda é justamente a necessidade de abraçar grandes deveres ainda na infância.
— No início, eu tinha minha avó, que ajudava muito eles. Mas, quando nos mudamos, tive que ser muito presente, tanto na parte de levar minha mãe no ginecologista quanto de ir em banco, ler contratos e explicar o que estava sendo dito. Coisas de adulto mesmo. Então, somos crianças que ganham responsabilidades muito cedo — relata.
A gaúcha comenta que grande parte dos surdos que tem entre 60 e 80 anos, incluindo seus pais, não completou o Ensino Fundamental, devido às dificuldades de estudo na época. Assim, são os filhos que precisam ajudá-los em atividades cotidianas desde os cinco ou seis anos. Em decorrência disso, afirma ter passado por algumas situações constrangedoras durante a infância e adolescência, como no filme. Mas ela garante que soube lidar bem com episódios de preconceito, como quando pessoas ficavam olhando para Ery e Anita por causa de seus gestos e dos sons que emitem.
Atualmente, Isabel divide a agenda de consultas médicas dos pais com o irmão caçula, Tiago, porque o sistema de saúde não disponibiliza tradutores e intérpretes. Mas destaca que o casal é bastante independente para outros compromissos, como fazer compras e viajar para o Litoral.
— Hoje temos uma relação muito boa. Depois que passamos a morar sozinhos com eles, que vieram todas essas responsabilidades para serem abraçadas, também ficamos muito próximos. Até porque não existe mais vergonha, não estamos mais nem aí para os outros, só curtimos o momento com eles, diferente do que acontece quando se é criança ou adolescente — explica.
“Cansa ter que dizer para as pessoas que eles são capazes”
A tradutora e intérprete de Libras Maitê Maus da Silva de Amorim, 40 anos, aponta que filhos ouvintes de pais surdos acabam vivendo coisas do mundo adultos que outras crianças não precisam viver. Ela conta que nunca foi obrigada a interpretar para os pais, Álvaro e Lilian, mas que se sentia no dever de fazê-lo, porque há uma pressão da sociedade para tornar responsabilidade dos filhos aquilo que os pais não conseguem. Portanto, muitas vezes acabava tomando a frente de situações, mesmo sem uma necessidade real — como acontece com Ruby Rossi no filme.
— Desde muito pequena eu interpretava ligações para os meus pais, conversas entre eles e meus avós, que não usavam a língua de sinais, reuniões com professores de escolas — relata Maitê, que também é casada com um surdo.
Ela comenta que No Ritmo do Coração apresenta algumas questões de formas um pouco mais cômicas, mas que, na realidade, não são engraçadas. Até hoje, ela acompanha os pais em consultas médicas e exames — e já foi até ao urologista com o pai —, porque o sistema de saúde não conta com intérpretes ou pessoas que conheçam a língua para atendê-los. Maitê inclusive já precisou brigar para conseguir entrar em salas de procedimentos com Álvaro e Lilian, para que eles soubessem o que seria feito e como.
Entre as muitas situações boas e ruins que tem para contar, a tradutora destaca uma ocasião em que foi chamada na Câmara de Vereadores da cidade onde morava, em meados de 2005, para auxiliar um surdo que queria falar na tribuna e não conseguia, pois não havia intérpretes. Ao chegar no local, viu que o surdo em questão era seu pai:
— Não foi nenhum pouco fácil ver que meu pai estava tentando se manifestar em meio a pessoas que falavam quando bem entendiam e teve que esperar alguém chegar para prestar o serviço de forma voluntária, porque a casa do povo não estava preparada para o povo. Então, lembro desse momento como algo emblemático, porque ali eu tive que ser a intérprete e não a filha, mas meu sentimento era de filha.
Maitê afirma que esse laço entre filhos ouvintes e pais surdos nem sempre é tão saudável e que, muitas vezes, há um conflito interno por querer estar perto o tempo todo para evitar que os familiares sofram preconceito ou injustiças, mas também estar cansado de permanecer sempre disponível. De acordo com a intérprete, estar com os pais solucionando problemas e discutindo questões é algo típico de uma relação familiar, porém, o cansativo é ter que repetir para a sociedade que eles não são incompetentes e sim usuários de uma outra língua.
— Não cansa estar com eles, cansa ter que dizer para as pessoas que eles são capazes, porque isso é óbvio. Talvez eles possam não ter a habilidade de ouvir, mas muitos de nós não temos diversas habilidades e nem por isso somos considerados incapazes — defende.
Álvaro e Lilian são alfabetizados e, por isso, conseguem resolver algumas questões sozinhos — o que não é uma realidade para todos. Por este motivo, Maitê evita romantizar o fato de ser filha de pais surdos, já que existem casos bem diferentes. Ela ressalta que já passou por situações de preconceito na escola e que, inclusive, pessoas já disseram que ela e a irmã mais nova, Maíra, eram mal educadas por serem filhas de surdos.
Mas, apesar das dificuldades enfrentadas, a tradutora garante que eles são muito unidos e que sempre tiveram um diálogo aberto sobre os mais diversos assuntos.
— Coisas que minhas amigas escondiam dos pais, os meus sabem, porque sempre conversamos muito e isso é algo que dura até hoje. Como qualquer família, tem problemas, mas vamos tentando solucionar juntos — conclui.
Cumplicidade entre mãe e filha
Uma ligação forte, com muita cumplicidade e comunicação clara. É desta forma que Carilissa Dall’Alba, 36 anos, descreve sua relação com a filha, Sofia Dall’Alba, 12. Professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ela é surda desde que nasceu e afirma que não teve medo de ser uma mãe ruim e que nunca teve dificuldades para se relacionar com a filha, que é ouvinte. O problema, segundo a gaúcha de Caxias do Sul, é fora de casa, pois não há garantia de acessibilidade para mães surdas. Casada com Helenne Sanderson, 34 anos, que também é surda, desde Sofia era pequena, Carilissa conta que diversas vezes precisou desistir de peças teatrais e filmes no cinema em função da falta de acessibilidade.
Quando engravidou, a professora seguiu morando com os pais, que lhe deram todo o apoio necessário para seguir na faculdade e criar a filha. Ela destaca que é uma privilegiada por ter a família sempre ao seu lado, especialmente quando Sofia nasceu, em 2009, e o cenário era bem mais complicado do que agora, pois não existia aplicativo de tradução ao vivo, babá eletrônica com câmera e intérpretes nos hospitais. Apesar de serem ouvintes, seus familiares sabem se comunicar em Libras, o que faz muita diferença.
Mesmo assim, já passou por situações difíceis com a filha, como em 2013, quando a menina tinha quatro anos:
— Em uma madrugada, tive que correr ao pronto socorro com ela, que estava tossindo sem parar, e um médico antes de se preocupar com a tosse perguntou se eu tinha alguém ouvinte para chamar e me disse que eu não podia vir sozinha. Foi bem revoltante esse episódio, porque minha família sabe Libras e a minha irmã mais velha é da área da saúde, mas, mesmo assim, não dependo deles e não é papel deles ser responsável pela minha filha.
Carilissa relata que já ouviu diversas vezes a frase “ainda bem que a sua filha nasceu ouvinte para te ajudar”, mas salienta que, na realidade, Sofia é apenas sua filha e não nasceu com esta função. Por isso, prefere não usá-la como intérprete de Libras, pois defende que essa não é uma responsabilidade dela e sim da sociedade, que deve buscar garantir a acessibilidade aos surdos.
Segundo a professora, a tecnologia colabora muito para que ela resolva situações cotidianas e consiga ser bem independente. Porém, pontua que teve a oportunidade de estudar em escolas de surdos bem qualificadas e, por isso, tem fluência em língua portuguesa e em leitura labial.
— Desde sempre me preocupei em deixar a Sofia ser criança como todas as outras e ter sua infância, sem ter a responsabilidade desde cedo. Hoje ela está na adolescência e nos ajuda quando é impossível recorrer aos intérpretes ou lugares que não oferecem acessibilidade. Isso é uma consciência que pais surdos da minha faixa etária estão tendo atualmente — explica.