Meu trabalho na Rádio Gaúcha é narrar, contar histórias, descrever o que acontece nos jogos de futebol pelo país. É um desafio permanente tornar claro aquilo que eu vejo para aqueles que me escutam, especialmente para os dependem exclusivamente do rádio e da voz do narrador. Para marcar a semana em que são celebrados o Dia Nacional do Surdo (26 de setembro) e o Dia Mundial do Surdo (sempre no último domingo do mês), fui provocado a descobrir como é a vida para quem não pode escutar — nem a mim nem as outras pessoas. Como é a vida de quem nasceu surdo ou perdeu a audição ao longo dos anos?
Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 466 milhões de pessoas — o que representa 5% da população mundial — apresentam deficiência auditiva. Estudos indicam que a surdez vai atingir uma população de até 900 milhões em 2050 (10% da população). No Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 9,7 milhões de indivíduos apresentam perda auditiva (5,6% da população projetada). Desses, 2,6 milhões têm surdez considerada de grau profundo. Esse aumento no número de casos, segundo o diretor científico da Associação Gaúcha de Otorrinolaringologia, o médico Joel Lavinski, está relacionada à crescente exposição ao ruído, especialmente entre os jovens. Na faixa etária pediátrica, a surdez é considerada a condição congênita mais comum em recém-nascidos.
Segundo o professor Celso Dall’lgna, médico do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, se a perda da audição não for recuperável, a criança não irá desenvolver a linguagem e, por isso, precisará ser educada com a linguagem de sinais. Assim, os pais também precisarão aprender.
— É muito importante o diagnóstico precoce, até os seis meses de idade, para que se faça a cirurgia com um ano e meio de vida, considerado o ponto zero da linguagem — diz Dall’Igna.
Implante coclear
Lavinski complementa apontando que a surdez pode atrapalhar muito o desenvolvimento da criança. A memória auditiva é um mecanismo que faz com que os indivíduos ouçam sons e saibam o que significam. Os estímulos sonoros passam para o processador auditivo central, gerando a construção de uma espécie de imagem sonora por um curto período de tempo. Se a criança já nasce surda ou perde a audição antes do período de desenvolvimento da fala e da linguagem, é crucial que a reabilitação auditiva seja realizada o mais rapidamente possível.
De acordo com Dall’Igna, crianças com muitas otites ou infecções no ouvido podem desenvolver perda de audição, o que já é suficiente para prejudicar o desempenho escolar, por exemplo. Em casos assim, os pais devem estabelecer contato maior com professores e orientadores, que devem adotar medidas específicas para que a criança não tenha a aprendizagem afetada.
— É preciso conversar com os educadores para saber se esse aluno vai precisar de reforço no turno oposto. Ele também deve, preferencialmente, sentar sempre na frente, para ouvir e entender de forma mais clara — explica Dall’Igna.
Para situações mais complexas, nas quais há a necessidade de procedimento cirúrgico, o Hospital de Clínicas, na Capital, é referência há mais de 20 anos no implante coclear, indicado para perdas profundas, ou seja, mais de 80% da audição.
— É um procedimento em que é colocado uma unidade interna com ímã, acoplada a um processador de fala que vai, ao invés de amplificar o som, transformá-lo em um impulso elétrico e incentivar o nervo, pulando a etapa que é feita pelo ouvido. O procedimento tem como foco principal as crianças, mas também é realizado em adultos — informa o médico da instituição.
De forma geral, a criança deve ser intensamente estimulada pela família de diferentes maneiras. Isso tudo de forma concomitante e paralela com o processo de reabilitação auditiva. Atualmente, graças aos avanços tecnológicos, a maioria dos bebês, das crianças e dos adultos com deficiência auditiva pode ser reabilitada com sucesso.
Também é importante que os pais estejam atentos ao modo como falam com as crianças que possuem problemas auditivos. O método mais eficiente de facilitar o entendimento é adotar alguns cuidados especiais na hora de fazer a comunicação.
— É preciso falar de maneira mais clara, devagar, sempre de frente para a criança e em ambientes claros, para que ela pegue o ritmo da linguagem e entenda melhor. O apoio visual sempre ajuda, até mesmo as pessoas que não são surdas. A linguagem não é só o som, tem a entonação e a expressão, que também influenciam — esclarece o professor Dall’Igna.
Henrique, o orgulho da mãe
Henrique Dorneles Pifer, 27 anos, perdeu a audição quando era um bebê de um ano e quatro meses, após contrair uma meningite bacteriana. Criado pela mãe, Edite Dorneles, 62 anos, no interior de Santa Cruz do Sul, teve o auxílio de uma fonoaudióloga uma vez por semana e estudou em uma escola especial para surdos.
— No início, foi muito difícil. Ele ficou muito revoltado com o silêncio, não entendia o que estava acontecendo, porque estava começando a falar. Até hoje se sente um pouco rejeitado e sozinho, mas ele evoluiu muito ao longo dos anos.
Gremista fanático, Henrique acompanha quase todos os jogos do time do coração pela televisão. Já esteve na Arena e até acompanhou a mãe, que é colorada, no Beira-Rio. Quando o jogo não é transmitido pela TV, acompanha o minuto a minuto pelo celular ou é informado pela mãe, que ouve a rádio e descreve os principais lances da partida. Henrique tem carteira de habilitação, trabalha e, no ano que vem, se forma em Processos Gerenciais, na Ulbra, em Canoas.
— A formatura é um orgulho de poder vencer o preconceito que tanto sofremos por sermos deficientes — resume, por WhatsApp, Henrique, que não possui nenhuma memória auditiva e não usa regularmente o aparelho no ouvido, devido ao incômodo que lhe causa.
Na reta final da faculdade, ele está prestes a concluir o trabalho de conclusão sobre acessibilidade e inclusão para surdos.
A mãe também se orgulha:
— Ele é muito inteligente, e eu estou colhendo o que plantei. Sou uma mãe feliz, pois estou vendo que meu filho está no caminho certo. É preciso ter fé e esperança que sempre tudo vai dar certo.
Em defesa da educação bilíngue
Presente em seis Estados, entre eles o Rio Grande do Sul, a Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (Feneis) atua na representação e defesa dos direitos dos surdos, na articulação com escolas e na capacitação de professores, além de empregar cerca de 180 surdos por meio de convênios com órgãos públicos. As escolas bilíngues, com a Língua Brasileira de Sinais (Libras), são uma das bandeiras da Fenei e foram tema de audiência pública na Assembleia Legislativa no último dia 17.
Segundo a diretora administrativa da entidade, Maria Cristina Laguna, integrante da direção da Sociedade de Surdos de Porto Alegre, há uma pressão para que as crianças surdas sejam incluídas em escolas regulares como se fossem ouvintes:
— Há um desconhecimento dos pais e até dos médicos, em alguns casos. Quando os filhos têm algum problema, os pais os levam aos médicos, que orientam a colocação de aparelhos, mas não se preocupam com o desenvolvimento das crianças. Pesquisas mostram que elas têm condições de aprender em Libras.
Conforme Maria Cristina, os pais, por vezes preocupados com o padrão do que a sociedade entende como normal, matriculam os filhos em escolas ditas inclusivas (há 707 só na rede estadual do Rio Grande do Sul, segundo a Secretaria de Educação), mas que não são para surdos e onde não encontram a assistência devida.
— As crianças ficam até três anos, não adquirem conhecimento e são reprovadas. Só aí a família entende que ela precisa ir para uma escola de surdos, mesmo que elas apresentem atraso de linguagem. E aí vem a nossa defesa das escolas bilíngues. Nós entendemos que as crianças precisam compreender primeiramente a língua de sinais e depois a língua portuguesa, que deverá ser na modalidade escrita. A educação bilíngue é a construção da identidade dessas crianças.
De acordo com a Secretaria de Educação (Seduc), há cinco escolas bilíngues na rede estadual do Rio Grande do Sul (em Porto Alegre, Caxias do Sul, Novo Hamburgo, Santa Maria e Esteio). A Capital ainda conta com uma instituição da rede municipal. A Seduc orienta os pais a se informarem na Divisão de Políticas de Educação Especial da secretaria (telefone 51 3288-7606) e indica que, para matricular os filhos nessas instituições, o contato pode ser feito diretamente com as escolas.
Quatro perguntas para Joel Lavinski, diretor científico da Associação Gaúcha de Otorrinolaringologia
Como perceber a deficiência auditiva em bebês?
Atualmente, está garantida por lei a triagem auditiva neonatal universal, conhecida também como “teste da orelhinha”. Nas maternidades, antes da alta hospitalar, todos os recém-nascidos devem realizar esse teste para avaliar se existe perda de audição nos bebês. Um exame alterado deve indicar a necessidade de uma investigação médica mais detalhada. Alguns comportamentos podem fazer suspeitar de que o bebê tem algum grau de perda auditiva. Entre três e seis meses de vida, os ruídos já devem surpreender os bebês, que também começam a buscar a fonte sonora. Por exemplo, se os pais percebem que a criança não olha quando a chamam e que também não se distrai com sons, pode ser necessário recorrer a uma avaliação médica.
Quando criança, já pode usar aparelho auditivo?
Sim, sem dúvida. Quando houver indicação médica, é fundamental que seja realmente utilizado para prevenir as repercussões da surdez na infância, especialmente no desenvolvimento da linguagem e fala. E devemos todos atuar fortemente para reduzir o preconceito que ainda infelizmente existe no nosso meio quanto ao usode aparelhos auditivos.
Quais são os principais tipos de tratamento?
O tratamento da surdez vai depender do grau e da causa da perda auditiva. Por isso, é fundamental uma avaliação médica detalhada com um otorrinolaringologista. O tratamento pode ser simples como remover uma rolha de cerume. Vários medicamentos podem ser utilizados para tratar algumas causas comuns de perda auditiva. Além disso, cirurgias podem ser realizadas para tratar definitivamente a surdez. É importante saber que, hoje, existe solução para praticamente todos os tipos e graus de surdez, porém, é fundamental que o tratamento da surdez seja sempre realizado o mais precocemente possível, especialmente nas crianças.
Como é a rede de apoio no Rio Grande do Sul?
O Sistema Único de Saúde (SUS) oferece todas as formas de reabilitação auditiva disponíveis, desde aparelhos auditivos até os implantes cocleares. Os indivíduos devem recorrer à rede de atendimento básico de saúde para obter o atendimento apropriado e ser encaminhado para os centros especializados.