O som da televisão no volume máximo, mal-entendidos e repetições durante as conversas, possibilidades de interação diminuindo. Quem convive com uma pessoa que enfrenta problemas auditivos e se recusa a usar aparelho está, infelizmente, acostumado a se deparar com esse tipo de situação. Não há como não perder a paciência com quem nos força a falar mais de uma vez a mesma coisa e elevar a voz. Cansa. Se não na primeira vez, certamente nas subsequentes, quantas forem necessárias para se fazer ouvir e entender. Tão comum, essa relutância em aceitar um dispositivo que melhora a qualidade de vida encobre a dificuldade de assumir o problema e também de entender como se dá o processo da perda de audição na terceira idade.
Médico otorrinolaringologista, Fábio André Selaimen, que atua no Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), aponta uma diferença fundamental: o indivíduo de mais idade que tem abalo na capacidade auditiva enfrenta uma situação diferente daquele que, devido a causas como um tampão de cera, sofre uma perda súbita, em grau mais intenso — se a solução para este segundo conseguir restabelecer a audição fosse usar um aparelho auditivo, diz Fábio, ele certamente aceitaria.
No caso do idoso, a perda auditiva começa com as frequências agudas. Como essa redução é gradativa, ele vai criando mecanismos de adaptação, driblando o problema. Entre as formas de compensar o dano estão fazer leitura labial, prestar mais atenção em quem está falando e fugir de ambientes muito barulhentos para tentar preservar o entendimento.
— Como a pessoa não perde a audição como um todo, interpreta como "eu escuto, mas não entendo". Está percebendo as frequências graves, mas as agudas, tipo um apito, são o que dão a discriminação. O paciente ouve uma parte da palavra: dizem "vaca", ele ouve "faca". Troca os fonemas agudos. Nossa voz é composta, principalmente, por frequências graves e médias — explica Fábio.
Na convivência, os familiares sofrem, principalmente aqueles que moram na mesma casa. Para o otorrinolaringologista Sady Selaimen da Costa, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe do Serviço de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço do HCPA, instala-se, praticamente, uma situação de agressão mútua:
— A família não consegue se comunicar, e o indivíduo fica na defensiva dizendo que ouve bem e que o mundo é que fala baixo.
Os agudos também auxiliam no entendimento do ruído de fundo. Em uma festa ou churrasco, por exemplo, quando é preciso separar o som do ambiente do som da fala dos demais presentes, a pessoa começa a não entender as conversas. Sua capacidade de compreensão é muito abalada, deixando tudo embaralhado.
Como a pessoa não perde a audição como um todo, interpreta como "eu escuto, mas não entendo". Está percebendo as frequências graves, mas as agudas, tipo um apito, são o que dão a discriminação. O paciente ouve uma parte da palavra: dizem "vaca", ele ouve "faca".
FÁBIO ANDRÉ SELAIMEN
Otorrinolaringologista
— Disso aí começa a vir o isolamento social, a pessoa evita o contato com outras. É um processo muito lento, crônico, ela não se dá conta daquilo — destaca Fábio.
Em geral, o idoso não faz referência ao problema, segundo Sady.
— A desculpa é não se interessar pelas coisas por conta do vexame (pelo qual pode passar ao não ouvir). A pessoa vai para o autoisolamento, para o ostracismo social, vai se ensimesmando — descreve o docente.
Forçar a consulta com um otorrinolaringologista, sem que o paciente se convença genuinamente de que está com problemas e vai se beneficiar do acompanhamento profissional, não permite o mesmo resultado de alguém que procura ajuda por iniciativa própria.
— É nítida a diferença do grau de sucesso na adaptação quando o paciente procura o médico por conta própria, vem sozinho ao consultório, em relação àquele que vem com a família inteira. O mais importante na adaptação é a vontade de melhorar, se relacionar, se reintegrar. O maior indicador de sucesso é a vontade — garante Sady.
Necessidade do aparelho deve ser avaliada
Sobre a necessidade de usar aparelho, Fábio diz que há os casos indiscutíveis, sobre os quais não dá dúvida. Em relação a perdas moderadas de audição, em geral, não há dúvida. Quanto às leves, depende muito do perfil do paciente e de quantas frequências estão afetadas, mas com a tendência de se adotar o aparelho o mais precocemente possível. Qualquer tipo de perda precisa ser avaliada, ressalta o otorrinolaringologista. Ele fala sobre o quanto pode ser impactante a privação auditiva.
— Não adianta só o ouvido gerar o som, o cérebro tem que interpretá-lo. O som vem do ouvido, e nosso cérebro o interpreta. Esse processamento se perde se o ouvido fica muito tempo sem mandar impulso. "Esquece" como fazer. O som que entra no cérebro é só um barulho. Veja só o perigo... Você vai perdendo os agudos sem nem perceber. Muitas vezes, quando do diagnóstico, o paciente já está há anos sem agudos — alerta Fábio.
Outro grande obstáculo a superar para tirar proveito do uso do aparelho é reaprender a interpretar os agudos e todas as demais frequências perdidas até o momento do início da reabilitação, e isso pode gerar desconforto. A duração desse período de adaptação é variável, mas não há dúvida de que os benefícios são tanto maiores quanto mais cedo o uso começar. Quanto mais no início da perda auditiva, menor é o tempo de adaptação — e, consequentemente, mais reduzido o risco de o dispositivo ser guardado e esquecido dentro de uma gaveta. Perdas moderadas e severas, aponta Fábio, também podem e precisam ser reabilitadas.
Pequenos e multifuncionais
Usar aparelho auditivo não deve ser um motivo de vergonha. A tecnologia avançou muito, e há dispositivos muito pequenos e discretos, que quase não podem ser notados.
— Esteticamente, melhoraram muito. Em segundo lugar, são absolutamente confortáveis. Em terceiro lugar, são multifuncionais, têm bluetooth. Você pode ouvir a TV e o rádio na cama, só você ouve. Acho que vamos encontrar a diminuição da resistência pela dissimulação funcional — comenta Sady.
Fábio sugere uma comparação com outro artigo que corrige uma deficiência: óculos passaram a ser um item de estilo, adotado até por quem não precisa ajustar a visão.
A deficiência auditiva no idoso não vai melhorar, não é temporária. Só vai piorar.
SADY SELAIMEN DA COSTA
Otorrinolaringologista
— Sempre existe um estigma. Acho compreensível, mas, por outro lado, tentamos de todas as maneiras combatê-lo dando orientação, desconstruindo ideias que o paciente tem. O aparelho auditivo não precisa ser aquela caixa que ficava atrás da orelha — diz o médico do São Lucas.
Estudos associam a falta de audição à aceleração de quadros de demência. Ou seja, a perda auditiva é fator de risco para o desenvolvimento e a aceleração de doenças como o Alzheimer. Assim como a via auditiva se perde, outras funções cerebrais, como raciocínio e memória, também acabam por declinar.
O caráter irreversível do problema deve ser um ponto a somar para mobilizar o paciente em busca de reabilitação, conforme Sady:
— A deficiência auditiva no idoso não vai melhorar, não é temporária. Só vai piorar.
Encare a perda auditiva
- Deficiência auditiva é um problema que deve sempre ser avaliado. Quem conduz essa avaliação, em um primeiro momento, é o médico otorrinolaringologista. Na maior parte das vezes, tem solução. Se a solução for um aparelho, isso não deve ser encarado com preconceito.
- O idoso enfrenta abalo na audição porque células da cóclea (parte do ouvido) vão se perdendo, deixando de funcionar. São elas que transformam a energia sonora (mecânica) em elétrica, que vai pelo nervo auditivo até o cérebro.
- Todas as pessoas, em determinada idade, terão algum nível de deficiência auditiva. O problema, por vezes, não impacta tanto na comunicação, mas é generalizado entre a população. Fatores genéticos e comorbidades também influenciam. Por exemplo, uma pessoa com histórico familiar e exposição a ruído pode ter esse processo acelerado. Já um indivíduo saudável, sem casos na família, tende a passar por uma evolução mais lenta.
- Quem convive com a pessoa que tem perda auditiva deve sinalizar os momentos em que isso fica evidente. Alertar e ajudar fazem parte do processo. A motivação do paciente para encarar o problema contribui muito.
- Quanto antes a perda auditiva for avaliada, melhor.
- O mesmo caráter de precocidade vale para o uso do aparelho auditivo. A duração do período de adaptação é variável, depende de cada paciente. Mas, quanto mais no início do problema o uso começar, mais curta tende a ser essa fase.
- Converse com usuários de aparelhos auditivos que têm boas experiências para compartilhar. Tire do foco os exemplos negativos.
- Os aparelhos evoluíram muito — e diminuíram de tamanho — ao longo dos anos. Procure conhecer os modelos disponíveis que estão dentro das suas possibilidades de compra.
- Há pacientes que, realmente, não se adaptam ao aparelho auditivo. Também existem perdas auditivas que podem ser manejadas com cirurgia. As orientações serão sempre repassadas pelo médico.