Caracterizada por qualquer ofensa verbal ou física praticada contra gestantes, em trabalho de parto ou no período do puerpério, a violência obstétrica é uma realidade para 45% das mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), conforme a pesquisa Nascer no Brasil, de 2012 – em hospitais privados, esse índice é de 30%. Casos como o da influenciadora Shantal Verdelho chamam a atenção para o assunto, mas como a mulher pode saber se realmente foi vítima? E, se foi, o que deve fazer? Como denunciar? Advogadas especialistas ouvidas pela reportagem de GZH explicam essas e outras questões. Confira:
Como saber se você foi vítima
De acordo com a advogada Ruth Rodrigues, presidente do coletivo nacional de enfrentamento à violência obstétrica Nascer Direito, normalmente as mulheres têm dificuldade para identificar a violência obstétrica porque não sabem que algumas coisas são violações dos seus direitos. Ou seja, muitas vezes elas não sabem que são vítimas porque não têm conhecimento do que caracteriza essa violência.
– A partir do momento em que a mulher vê algum relato, como esse da influenciadora Shantal Verdelho (apresentado no programa Fantástico), ela se identifica e percebe que aconteceu com ela. Falo sobre o assunto para informar essas mulheres, para que elas possam ter noção do que é e buscar seus direitos. Cortar, apertar a barriga e fazer tudo correndo não são coisas normais, as mulheres precisam saber o que pode e o que não pode, para a partir disso conseguir identificar a violência.
A advogada acrescenta que, quando a mulher tem a sensação de que o parto não foi bem da forma como ela estava imaginando, costuma ser porque ocorreu alguma assistência inadequada. Por isso, orienta que as mães tentem identificar quais são seus sentimentos em relação ao parto. Se existir mágoa, dor ou raiva, é possível que tenha ocorrido violência.
A especialista também recomenda que as mulheres pesquisem se ocorreu algum procedimento inadequado ou não recomendado durante o parto e lembrem-se de que xingamentos e humilhações se referem a um dos tipos de violência obstétrica, bem como ter o pedido de alívio da dor negado por parte dos profissionais de saúde.
Como denunciar
Para Gabriela Souza, advogada especialista em Direito das Mulheres e professora e sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres (EBDM), conhecimento jurídico é poder. Portanto, a mulher deve buscá-lo antes do parto, se preparar: apresentar seu plano de parto e conversar com profissionais que entendam do assunto.
– Se ela desconfia de que algo errado está acontecendo, provavelmente está, ela não é louca. A mulher pode chorar, gritar, pedir anestesia e sempre deve ter sua dignidade respeitada. Então, se ela desconfia que aconteceu uma violência, deve buscar seus direitos – salienta.
Gabriela e a também advogada Ruth Rodrigues orientam que, antes de tudo, as vítimas devem procurar um advogado especialista no assunto, porque, quando o profissional não tem conhecimento específico da causa, pode acabar minimizando o problema.
Cortar, apertar a barriga e fazer tudo correndo não são coisas normais, as mulheres precisam saber o que pode e o que não pode.
RUTH RODRIGUES
Advogada, presidente do coletivo Nascer Direito
– No senso comum, o parto é assim mesmo, tem que ser rápido e apertando a barriga. Isso atrapalha muito – comenta a presidente do Nascer Direito, explicando que esse coletivo surgiu justamente da necessidade de se ter advogados especializados em todos os Estados, para que todas as mulheres pudessem ter acesso aos seus direitos.
Ao identificar que foi vítima, a mulher também deve pedir ao hospital uma cópia do seu prontuário médico e fazer seu relato de parto, pois são provas importantes para fazer as denúncias. Ruth indica denunciar no Ministério Público do Estado, na ouvidoria do hospital e também no disque 180 e no 136, do Ministério da Saúde – esses dois últimos geram dados que dão origem a políticas públicas. Vídeos, áudios e fotos também podem servir como provas em uma ação judicial do tipo.
Gabriela destaca ainda a importância de buscar testemunhas e pegar o contato de outras mulheres que receberam atendimento no local, além de procurar ajuda psicológica ou médica para tratar possíveis sequelas da violência. Mas atenção: o prazo legal para entrar com uma ação desse tipo é de cinco anos, a contar da data do ocorrido.
No Rio Grande do Sul, o Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública (Nudem-DPE/RS) pode ser contatado pelo telefone (51) 3210- 9376 ou pelo e-mail nudem@ defensoria.rs.def.br. Vítimas que quiserem orientações também podem entrar em contato pelo Alô, Defensoria: (51) 3225-0777. Pelo Instagram @nascerdireito também é possível localizar um advogado especialista no assunto em sua cidade ou Estado.
Perspectivas de futuro
A advogada Gabriela Souza ressalta: a violência obstétrica é algo que sempre aconteceu, mas apenas nos últimos anos começou a ganhar notoriedade. A advogada conta que abriu seu escritório especializado no atendimento de mulheres em 2017 e, desde então, atende entre dois e quatro chamados do tipo por mês, seja de gestantes que buscam apenas consulta jurídica para planos de parto ou de mulheres que sofreram violência das mais diversas formas, não somente no momento do parto, mas também antes e depois.
No Rio Grande do Sul, ainda há uma resistência muito grande quando o assunto é o julgamento desses casos, afirma a especialista:
O Judiciário ainda engatinha quando se trata dessa violência, ainda é muito reticente e mais devagar do que se precisa.
GABRIELA SOUZA
Advogada especialista em Direito das Mulheres, professora e sócia da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres
– O Judiciário ainda engatinha quando se trata dessa violência, ainda é muito reticente e mais devagar do que se precisa. Mas, quando acontecem casos como o da influenciadora Shantal Verdelho, o cenário começa a mudar. Ela ter tornado essa situação pública facilita novas denúncias e amplia o conhecimento sobre o assunto.
A expectativa de Gabriela é de que, a partir dos debates recentes, mudanças sociais comecem a ocorrer, porque, apesar de haver mais pessoas cientes sobre o tema, muitos aspectos ainda precisam mudar. Ela destaca que o fato de o Brasil não ter uma legislação nacional sobre violência obstétrica, que veja o assunto com uma perspectiva de gênero, é algo bastante preocupante e que dificulta ainda mais o julgamento de casos.
Confira a primeira parte desta reportagem