Em 2014, após o parto domiciliar de sua segunda filha, a advogada Ruth Rodrigues precisou procurar um hospital particular para remover a placenta que havia ficado retida. Lá, permaneceu internada por cinco dias e sofreu com a hostilidade de alguns profissionais. O relato de Ruth soma-se aos de muitas outras brasileiras, famosas ou anônimas, que são vítimas de violência obstétrica em instituições de saúde privadas e públicas.
Há um mês, o termo atingiu o pico de popularidade entre as pesquisas no Google devido ao vazamento de um áudio em que a influenciadora digital Shantal Verdelho descreve os xingamentos que sofreu do médico responsável pelo parto de sua segunda filha. Em entrevista ao Fantástico, Shantal contou que, além de ter usado palavrões contra ela e exposto sua intimidade para o marido e para terceiros, o profissional teria insistido na realização de uma episiotomia – corte realizado entre o ânus e a vagina para facilitar a passagem do bebê em partos normais difíceis, que pode ser considerado uma violência quando feito sem indicação.
A influenciadora também teve a barriga pressionada por dois profissionais a mando do médico a fim de agilizar o nascimento da filha, como mostram imagens exibidas no programa. Chamada de Manobra de Kristeller, a técnica consiste em uma pressão no fundo uterino, mas não é recomendada pelo Ministério da Saúde desde 2000, ressaltou ao Fantástico o presidente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Agnaldo Lopes.
De acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, realizada entre fevereiro de 2011 e outubro de 2012 pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP), vinculada à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 30% das gestantes atendidas em hospitais privados recebem tratamento inadequado. No Sistema Único de Saúde (SUS), a taxa de mulheres que sofre esse tipo de violência é de 45%.
O estudo acompanhou mais de 23,8 mil puérperas em 266 hospitais e mostra que a maioria das mulheres que tiveram parto normal passou por situações semelhantes às descritas por Shantal. Grande parte delas foi submetida a intervenções excessivas e à episiotomia, ficou restrita ao leito, sem estímulo para caminhar e sem se alimentar durante o trabalho de parto, usou medicamentos para acelerar as contrações e deu à luz deitada de costas, “muitas vezes com alguém apertando sua barriga (manobra de Kristeller)”.
– As mulheres que sofrem violência obstétrica têm um risco maior de desenvolver depressão pós-parto e de não comparecem às consultas de puerpério e de revisão do recém-nascido. Então, acaba afastando tanto a mulher quanto o bebê do serviço de saúde em um momento em que eles estão supervulneráveis – alerta Tatiana Henriques Leite, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e membro do grupo de pesquisa Nascer no Brasil.
Afinal, o que caracteriza a violência obstétrica?
Violência obstétrica é qualquer ofensa verbal ou física praticada contra mulheres gestantes, em trabalho de parto ou no período do puerpério, seja por médico, equipe hospitalar, familiar ou acompanhante.
Em 2017, a Defensoria Pública de São Paulo usou a definição dada pelas leis venezuelana e argentina para explicar que esse tipo de violência se caracteriza “pela apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelos profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres”.
Ruth Rodrigues, advogada que decidiu se especializar no assunto após ser vítima, ressalta que o parto é um evento fisiológico, mas alguns profissionais o encaram como algo que necessariamente precisa de intervenção médica. Por isso, define a violência como “todo aquele procedimento que é feito sem evidência científica ou consentimento, que intervém no ciclo gravídico-puerperal da mulher como um todo, desde o positivo até o pós-parto, que retira sua autonomia, a diminui e a coloca em estado de vulnerabilidade extrema”.
– Vai desde a violência verbal e psicológica, com xingamentos e humilhações, até a física, que se refere aos procedimentos feitos no corpo da mulher que causam lesões, que são mais maléficos do que benéficos, tanto para a mãe quanto para o bebê, como a episiotomia, a manobra de Kristeller e a cesárea sem indicação – afirma a especialista, que também é presidente do coletivo nacional de enfrentamento à violência obstétrica Nascer Direito.
Feita de forma rotineira em quase todas as mulheres antigamente, a episiotomia também pode ser considerada uma mutilação genital, já que pode causar danos permanentes na vida sexual da mulher, destaca Ruth. Médica e diretora de comunicação da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), Julia Morelli defende que, em casos bem específicos, o corte no períneo é necessário para ajudar no nascimento saudável da criança.
Assim, nem todas as mulheres que passam pelo procedimento sofrem violência – o que também vale para a cesariana, que pode salvar vidas de mães e bebês. Mas, no geral, a especialista considera que a episiotomia causa danos muito maiores ao canal do parto do que qualquer laceração natural, portanto, deve ser evitada.
Uso do termo não é consenso
A classificação de alguns procedimentos médicos como violência obstétrica faz com que o uso do termo não seja consenso entre entidades e profissionais da área. Para a Febrasgo, trata-se de uma expressão “criada com evidente conotação preconceituosa que, sob o falso manto de proteger a parturiente, criminaliza o trabalho de médicos e enfermeiros na nobre e difícil tarefa de atendimento ao parto”. O maior erro do conceito, segundo a entidade, “é tentar transformar em regra a exceção, dando a impressão de que médicos e enfermeiros habitualmente tratam parturientes de modo violento”.
Segundo o ginecologista e obstetra Sérgio Martins-Costa, membro da Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Rio Grande do Sul (Sogirgs) e professor titular de Ginecologia e Obstetrícia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), há discordância quanto ao uso do termo porque ele coloca no mesmo contexto coisas que são muito diferentes:
– Uma coisa é violência de gênero, violência contra a mulher, violência contra a gestante, isso é algo absolutamente inadmissível e a gente concorda que seja tratado no contexto de atitude violenta. Outra coisa, que não deve ser misturada, são as condutas médicas, que podem ser corretas ou erradas. A medicina está sempre evoluindo, o que hoje é considerado uma boa prática, amanhã ou depois pode não ser mais. A episiotomia é um exemplo muito claro disso.
Martins-Costa defende que casos em que o obstetra opta por procedimentos como a episiotomia ou a cesárea, com o objetivo de apressar o parto por vontade própria, devem ser tratados como erro médico. Isso porque, na sua visão, quando se fala de violência obstétrica, está subentendendo que existe uma categoria profissional que é violenta, o que não seria verdade, já que, ele ressalta, a maioria trata bem seus pacientes.
Como instituições de saúde do RS lidam com o tema
Para evitar casos de violência obstétrica, as instituições de saúde do Rio Grande do Sul adotam uma série de medidas. Veja os procedimentos de algumas das principais delas:
Hospital Escola da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
A equipe passou por uma reestruturação – com a chegada de enfermeiras obstétricas, médicos novos, educadores físicos e fisioterapeutas — que ajudou a reduzir em 45% o índice de episiotomias durante partos normais, de 2019 a 2021.
Hospital de Clínicas de Porto Alegre
A instituição também apresentou reduções em suas taxas de cortes no períneo. Maria Lúcia da Rocha Oppermann, médica ginecologista e obstetra professora da Faculdade de Medicina da UFRGS e chefe médica do Centro Obstétrico do Clínicas, cita que o índice era de 35,6% em 2017, sendo reduzido para 22,5% até novembro do ano passado. Para chegar nessa redução, o hospital tem interferido menos nos partos e esperado mais tempo para determinar a necessidade de procedimento.
A especialista destaca que, por ser o hospital-escola da Faculdade de Medicina da UFRGS, a instituição trabalha com necessidade constante de atualização cientifica, o que leva à “qualificação da assistência com as melhores evidências disponíveis”. Em relação ao atendimento das gestantes, garante que as boas práticas de assistência ao parto são ensinadas e cobradas de todo o corpo técnico-médico e enfermagem, e que algumas práticas consagradas, como a episiotomia de rotina e manobras para acelerar o parto, foram abandonadas por conta de evidências contrárias.
– Lidamos muito seriamente com toda e qualquer denúncia de violência feita por paciente, familiar ou funcionário, e respostas são exigidas. Algumas já levaram a mudanças importantes nos protocolos de assistência do hospital, a fim de assegurar mais consistência na qualidade do serviço oferecido – afirma Maria Lúcia.
Hospital Nossa Senhora da Conceição
No Conceição, a taxa de episiotomia era de 11,33% em 2019 e, em 2021, foi de 4,23%. A enfermeira obstetra Lisete Maria Ambrosi, coordenadora da Linha de Cuidado Mãe-Bebê da instituição, que viu taxas de 70% no início da carreira, ressalta que a peça-chave para a redução dos números foi o processo de humanização da assistência médica, com sensibilização e capacitação da equipe para realizar episiotomia de forma seletiva e prevenção de intervenções desnecessárias.
Hospital Moinhos de Vento
Em nota, a instituição informou que conta com protocolos específicos de segurança em relação à violência obstétrica: além de um Manual de Conduta Ética, possui um Comitê de Ética e uma Diretoria Clínica, formada por médicos sem vínculo com a instituição e com o propósito de assegurar o bom desempenho de seus profissionais e condições para uma melhor assistência aos seus pacientes. O hospital também afirma adotar “todos os padrões de intervenção segura em que o cirurgião médico sempre está acompanhado da equipe assistencial durante a realização de um procedimento”.
Santa Casa de Porto Alegre
O hospital destacou que a Maternidade Mário Motta tem foco na assistência integral e conta com um grupo de profissionais especializado no atendimento obstétrico e em constante aprimoramento. Segundo a instituição, o serviço "preza pela qualidade da assistência obstétrica, respeitando cada gestante na sua individualidade e nos seus desejos” a fim de tornar o nascimento do bebê ainda mais especial, sempre seguindo as orientações do Ministério da Saúde e da Febrasgo.
Em sua estrutura, a maternidade possui salas de pré-parto, parto e pós-parto, oferecendo medidas de alívio da dor farmacológicas e não farmacológicas e prezando pela presença do acompanhante como forma de assegurar a qualidade de atendimento da parturiente – que foi mantida mesmo durante a pandemia. A instituição disponibiliza visita guiada pelo espaço, oportunizando que paciente e acompanhante conheçam a estrutura e sintam-se seguros para escolher o local para a realização do parto. Os agendamentos podem ser realizados pelo telefone (51) 3214-8525.
Hospital Mãe de Deus
A instituição ressaltou que o Serviço Materno Infantil preza pelo acolhimento das gestantes que lá realizam seus partos e que, para evitar casos de violência obstétrica, adota procedimentos já preconizados e alguns que fazem parte do seu atendimento. A instituição segue normas e boas práticas que garantem a autonomia e o respeito à mulher, como: admissão de um plano de parto feito pela gestante, que será revisado pela equipe e respeitado sempre que não colocar em risco a vida de mãe e bebê; o direito a escolher a melhor posição para dar à luz; a escolha de música ou aromas para o ambiente onde vai dar à luz e a presença de um acompanhante por todo o período.Além disso, o hospital permite a presença de quem mais a gestante julgar importante, como doula, enfermeira obstétrica e fisioterapeuta pélvica de sua escolha.
Segundo o Mãe de Deus, este acompanhamento só foi interrompido quando a pandemia pediu protocolos mais rígidos de circulação no hospital, no começo de 2021. No momento, não há restrições. Clarice Fagundes, coordenadora do Serviço Materno Infantil, ressalta que os médicos credenciados a realizarem partos conhecem os protocolos adotados no atendimento a gestantes e que, dentro do hospital, a equipe que acompanha a gestante é empoderada para agir em casos em que acreditar que a vontade dela possa ser desrespeitada sem necessidade, contando com enfermeiras muito atuantes neste sentido.
Hospital Materno Infantil Presidente Vargas
Com a criação da Rede Cegonha, o SUS vem passando por uma mudança de paradigma do atendimento obstétrico, focada na humanização, desde a última década, explica o chefe da Obstetrícia do Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV) José Luiz Petersen Krahe. No HMIPV, assim como em outras maternidades, condutas pouco eficazes como a tricotomia e a episiotomia de rotina foram sendo abandonadas ao longo dos anos.
– Continuamos focados em dar um atendimento humanizado às pacientes. Isso significa garantir à gestante o direito de ter um acompanhante a sua escolha no pré-parto, parto e alojamento conjunto, informar sobre as condutas tomadas, ouvir suas dúvidas, evitar procedimentos e manobras desnecessárias e procurar amenizar o desconforto do parto com medicações e métodos não farmacológicos de alívio da dor – diz Krahe.
Além disso, o hospital conta com uma ouvidoria, à qual pacientes, familiares e profissionais do Centro Obstétrico e de outros setores têm acesso para relatar suas queixas, que são encaminhadas às chefias para o devido esclarecimento e ações necessárias quando for o caso. Segundo Krahe, não houve no último ano ouvidoria externa de violência obstétrica.