Após quase dois anos alertando sobre os impactos da pandemia na saúde mental da população, especialistas concordam: será necessário lidar com as sequelas emocionais dessa experiência por um longo tempo. Um estudo publicado na revista Chronic Stress em novembro reforça essa previsão ao apontar que, em média, 25,8% da população apresenta sintomas de transtorno de estresse pós-traumático relacionados à crise sanitária de covid-19. O levantamento foi realizado por pesquisadores do Departamento de Psiquiatria do Women’s Health Research, em Yale, da Universidade de Bordeaux, na França, e de Centros Nacionais de Transtorno de Estresse Pós-Traumático dos Estados Unidos.
Rita Gigliola Gomes Prieb, chefe do Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), enfatiza que a pandemia é um evento traumático, sobretudo para quem perdeu entes queridos ou ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Ela comenta que existe a chamada PICS (post intensive care syndrome), ou “síndrome de pós-UTI”, e que esses pacientes e seus familiares têm até 50% de chance de desenvolver sinais de ansiedade, depressão e estresse pós-traumático.
— Sem dúvida, é um evento traumático e, para algumas pessoas, isso é potencializado pela proximidade da morte. Então, é um trauma que vai atingindo os que estão próximos também, não só quem está vivendo a doença diretamente — afirma.
— Quando a pandemia acabar, teremos de lidar com as pessoas que ficarão com sequelas emocionais, como o estresse pós-traumático e o burnout dos profissionais de saúde, que também sofrem muito em função da crise desse período — acrescenta.
Por esses motivos, a atenção à saúde mental se faz ainda mais necessária neste cenário. Criada em 2014, a campanha Janeiro Branco dedica-se a colocar o assunto em evidência e conscientizar a sociedade. Neste ano, a ação idealizada pelo professor e psicólogo mineiro Leonardo Abrahão está em sua nona edição e traz como tema um alerta de necessidade universal: “O mundo pede saúde mental!”.
Abrahão comenta que essa necessidade está relacionada aos diferentes problemas que a humanidade tem enfrentado ultimamente e que, apesar de terem acrescentado novos desafios às antigas demandas da saúde mental, os dois anos de pandemia também ressaltaram a importância do tema para a população. Portanto, para contribuir com a construção de uma cultura de saúde mental, a campanha promove palestras, rodas de conversa, workshops, panfletagens, tira-dúvidas, plantões psicológicos e eventos virtuais para todo o país ao longo de janeiro.
— Estamos conseguindo fazer circular discursos pedagógicos sobre qualidade emocional de vida e quebrando tabus sobre saúde mental e emocional, além de chamar a atenção social e política para o tema, o que já está trazendo frutos em forma de políticas públicas de atenção à saúde em cada canto do país — pontua a psicóloga Valéria Ribeiro, esposa de Abrahão e vice-presidente do Instituto Janeiro Branco.
Aumento dos índices da pandemia se reflete no consultório
Entre as festas de fim de ano e a primeira semana de janeiro, a psicóloga clínica Samantha Sittart notou uma mudança em seus pacientes: se, antes do Natal eles estavam empolgados com a possibilidade de logo poderem abrir mão das máscaras, agora já estão receosos de precisar retornar às consultas online. Para a especialista em psicoterapia psicanalítica e membro do Grupo de Pesquisa Envelhecimento e Saúde Mental (GPESM-CNPq) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), a alteração está relacionada ao aumento dos casos de covid-19 registrado recentemente, com variante Ômicron do coronavírus.
— Temos de novo aquela situação de não se saber qual é o cenário de fato e o não saber pode gerar insegurança, angústia, raiva e ansiedade. Não saber o que vai acontecer pode causar certa instabilidade emocional, podendo levar ao adoecimento — alerta.
De forma geral, a pandemia também refletiu na quantidade de pessoas que procuraram atendimento com profissionais da saúde mental. Em 2020, uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) com associados mostrou que 47,9% dos psiquiatras já haviam percebido aumento em seus atendimentos só nos primeiros meses após a chegada do vírus no país. No caso de Samantha, o acréscimo foi em torno de 25%. No primeiro ano de pandemia, casos de depressão e ansiedade tiveram altas 27,6% e 25,6%, respectivamente, segundo um estudo publicado no The Lancet em outubro de 2021.
Rita Gigliola Gomes Prieb, chefe do Serviço de Psicologia do HCPA, relata que, mesmo não trabalhando em consultório há alguns anos, precisou retomar os atendimentos particulares em função da crise sanitária.
— Ex-pacientes me contataram e queriam muito voltar para o tratamento. Além disso, colegas e amigos passaram a solicitar a indicação de terapeutas para realizarem tratamento psicoterápico — afirma, ressaltando que a demanda não aumentou somente nos consultórios, mas também nos serviços de saúde ocupacional, devido aos profissionais que buscaram os recursos de saúde mental no trabalho.
De acordo com a especialista do Hospital de Clínicas, pessoas que já tinham quadros de depressão e ansiedade ou pré-disposição foram ainda mais impactadas, especialmente devido à imprevisibilidade da situação. Ela explica que, em condições normais, talvez esses indivíduos não tivessem desenvolvido transtornos mais graves, no entanto, o coronavírus levou todos ao limite e fez com que cada um agisse de diferentes formas, de acordo com suas possibilidades e recursos psíquicos:
— Algumas pessoas têm maior capacidade de lidar com as adversidades, mais estrutura emocional para lidar com as perdas de familiares, de amigos, da rotina e do convívio social. Mas lidar com a incerteza é algo que exige do ser humano uma energia psíquica extra, por isso quem já tem uma estrutura emocional fragilizada vai ser muito mais suscetível a desenvolver transtornos.
A psiquiatra Martha Helena Oliveira Noal, coordenadora do Espaço Nise da Silveira na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e sócia da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção de Suicídio (Abeps), ressalta que o aumento não se refere somente aos diagnósticos psiquiátricos, mas também ao número de pessoas em sofrimento psíquico – que pode se manifestar em alterações no sono, no equilíbrio emocional e nos sentimentos de medo e ansiedade. Por esse motivo, defende que a saúde mental seja uma pauta constante, que deve estar presente ao longo de todo o ano como uma prioridade para a população.
Anos de análise pela frente
Por exigir um grande esforço individual e coletivo de representação, a pandemia deixará marcas profundas na forma como os humanos pensam, sentem e se relacionam, afirma a psicóloga, psicanalista e presidente da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul (SPRGS) Luciana Maccari Lara. Para ela, não há dúvidas de que será preciso lidar com as consequências da crise sanitária na saúde psíquica da população por muitos anos, especialmente devido ao processo de luto de entes queridos e também empregos, projetos e modos de vida.
— Passado o primeiro período de angústia e medo, precisaremos lidar com um imenso processo de luto e elaboração de todas as perdas que tivemos e que ainda teremos. Esse trabalho exigirá o comprometimento de todos os profissionais que pesquisam e trabalham com a saúde mental — enfatiza.
Martha Helena Oliveira Noal acrescenta que, segundo estudos, a repercussão de uma vivência traumática pode postergar o aparecimento ou até mesmo a manutenção de um trauma por longos períodos. Por isso, os próximos anos serão muito impactados em termos de sofrimento psíquico. Ela também usa como exemplo a questão do luto, ressaltando as 620 mil mortes no Brasil e a chance de que haja muita dificuldade na aceitação dessas perdas, que podem refletir durante muitos anos em uma família.
A sobreposição de lutos e a retraumatização de algumas pessoas são outros dois agravantes, sinaliza a chefe do Serviço de Psicologia do HCPA, Rita Gigliola Gomes Prieb. Famílias que tiveram múltiplas perdas, por exemplo, talvez ainda nem tenham conseguido elaborar o sentimento de luto por cada uma delas. E esses traumas, ela destaca, não são resolvidos de um dia para o outro, então será importante a continuidade dos tratamentos psicológicos e psiquiátricos para que as pessoas possam ir retomando suas vidas e elaborando seus lutos:
— O processo de elaboração do luto é demorado, não é algo tão simples. Leva tempo e é trabalhoso.
Sinais de alerta
As especialistas ressaltam a importância de estar atento aos sinais de alerta para os problemas de saúde mental. Samantha Sittart destaca que campanha Janeiro Branco tem como proposta a psicoeducação da sociedade, ou seja, levar informações para que as pessoas consigam detectar sintomas em si ou em entes próximos para, então, procurar ajuda.
Mas atenção: ao perceber os sinais em um colega, amigo ou familiar, é preciso ter cuidado na hora de fazer esse alerta e, principalmente, escutar sem julgamentos o que a pessoa tem a dizer.
— Algumas pessoas, mesmo sem maldade, tentam falar coisas para ajudar que, na verdade, não ajudam. Deve-se acolher — diz a psicóloga, salientando que é fundamental não minimizar os sintomas ou deixar que se agravem:
— Precisamos falar sobre as nossas emoções para não adoecermos. Quanto mais guardamos angústias, mágoas e medos, mais suscetíveis estaremos ao adoecimento emocional.
Além de condições prévias de depressão e ansiedade, Rita Gigliola Gomes Prieb destaca como fator preocupante o sentimento de desesperança, que pode fazer com que as pessoas desenvolvam quadros depressivos severos. Neste caso, o indivíduo acha que nada nunca vai dar certo e, por isso, perde a motivação, fica preso ao pessimismo e não consegue ter expectativas sobre o futuro.
Outros sinais de alerta: medo constante (de morrer, de ficar doente, de sair de casa, de faltar testes, vacinas ou leitos hospitalares); tristeza constante; sintomas de ansiedade (falta de ar, suor nas mãos e aumento da frequência cardíaca); sentimentos frequentes de angústia, frustração, raiva e irritação; dificuldade para se relacionar com amigos, familiares e colegas; alterações no sono; falta de ânimo; dificuldade para lidar com o luto e com as emoções; pensamentos catastróficos e pessimistas; mudanças abruptas de comportamento; introspeção; impulsividade; e choro excessivo.