Desenvolvido para o tratamento da artrite, o Actemra, nome comercial do tocilizumabe, tem sido explorado como recurso terapêutico para casos específicos de pacientes com covid-19. No Brasil e no mundo, estudos avaliam a utilização do medicamento para além das indicações descritas em bula, o chamado uso off label. Como o produto apresentou alguns resultados promissores, a demanda disparou, obrigando a Roche, fabricante da substância, a aumentar a capacidade de produção em nível global e usar estratégias para mitigar o desabastecimento no Brasil. Mas o que se sabe sobre ele até agora?
Antes de responder a essa questão, é preciso esclarecer o mecanismo de ação do medicamento para tratar a artrite reumatoide, doença para qual foi criado. Pacientes com essa enfermidade têm um sistema imune que ataca as próprias articulações. Em outras palavras, o organismo interpreta, equivocadamente, que alguma coisa ali é um inimigo e que precisa atacá-lo. Portanto, monta uma resposta inflamatória, que resulta nas juntas inflamadas e doloridas.
— Então, se descobriu que a interleucina 6 era superimportante nesse processo e desenvolvemos um produto que bloqueia a ação dela, diminuindo a inflamação — explica Lenio Alvarenga, diretor Médico e de Acesso da Roche Farma Brasil.
As interleucinas são substâncias que os leucócitos trocam para montar uma ação inflamatória e combater os invasores.
— São substâncias que um glóbulo branco produz para chegar em outro e, assim, eles “conversam” entre si pra montar uma resposta inflamatória — completa Alvarenga.
A partir de estudos e testes, o medicamento foi aprovado para artrite reumatoide, idiopática juvenil e, mais recentemente, para arterite de células gigantes.
O que dizem os estudos
O uso no tratamento da covid-19 surgiu ainda no começo do aparecimento dos casos na China, conta Alvarenga, quando médicos locais perceberam que, muito além de um ataque aos pulmões, o vírus provocava uma resposta exacerbada do organismo na tentativa de conter o invasor, a chamada pneumonia grave associada à covid-19. Dessa observação, os médicos viram que que esse mecanismo era muito parecido a síndrome da tempestade de citocinas.
— Por algum motivo, há uma liberação muito grande dessa “conversa” entre linfócitos e, quando isso ocorre, o pulmão é muito atacado. Já havia indício que bloqueando a interleucina 6 com o medicamento, esse cenário poderia beneficiar os pacientes. Então, eles perceberam essa similaridade e começaram a fazer o uso não aprovado do tocilizumabe e a relatar algum benefício — conta o representante da Roche.
Sem tratamento disponível para a doença, aconteceu que o tocilizumabe passou a ser uma alternativa, ainda que off label, para um grupo bem específico de pacientes, detalha a cardiologista Viviane Veiga, coordenadora da Unidade de Terapia Intensiva da BP, a Beneficência Portuguesa de São Paulo — instituição que participa do estudo Coalizão, iniciativa de vários hospitais brasileiros para investigar uma série de medicamentos no tratamento para a covid-19, incluindo o tocilizumabe. De acordo com Viviane, trabalhos pequenos, com um universo de cem a 200 pacientes, demonstraram resultados conflitantes. O próprio Coalizão 6, que investigou o uso da substância, não mostrou benefícios na administração.
— Porém, com a publicação de estudos maiores, foi possível ver um resultado benéfico para um determinado grupo de pacientes — observa a médica.
Um desses estudos foi o Recovery, encabeçado pela Universidade de Oxford, no Reino Unido, e que tem avaliado diversas substâncias, como dexametasona, hidroxicloroquina, azitromicina, entre outros. Publicada em fevereiro deste ano, a pesquisa, que teve mais de 4 mil participantes, concluiu que o tocilizumabe reduziu as mortes entre pessoas hospitalizadas com covid-19. No grupo dos pacientes que receberam o medicamento, foram registradas 596 (29%) mortes dentro de 28 dias, versus 694 (33%) no grupo que recebeu o tratamento padrão. O trabalho também concluiu que o tocilizumabe reduziu o tempo de internação e diminuiu a necessidade de ventilação mecânica.
As terapias imunomoduladoras
Outro ensaio que incluiu a substância foi o REMAP-CAP, produzido de forma independente no Reino Unido. Nele, o tocilizumabe e o sarilumabe, ambos antagonistas de interleucina 6, foram estudados como parte da classe de terapias imunomoduladoras.
O objetivo era avaliar o efeito de diferentes tratamentos imunomoduladores para pacientes internados em terapia intensiva com pneumonia associada à covid-19. Publicado em abril deste ano no The New England Journal of Medicine, o trabalho concluiu que, para pacientes graves e que recebem suporte de órgão em uma UTI, o uso das substâncias melhorou o quadro, incluindo a sobrevida.
Paralelamente a esses estudos, a própria farmacêutica também investiga o tocilizumabe no tratamento para a covid-19. O Covacta, feito em todo o mundo, foi divulgado em 29 de julho do ano passado e concluiu que não houve melhora do estado clínico dos pacientes (desfecho primário), bem como os principais desfechos secundários, que incluíam a diferença na mortalidade dos pacientes após quatro semanas, também não foram atingidos. Entretanto, houve uma tendência de redução no tempo de alta hospitalar dos pacientes que receberam a substância.
O Empacta, também conduzido pela Roche, testou o uso do tocilizumabe em pessoas com covid-19 acima dos 18 anos, hospitalizadas, mas que não necessitaram de ventilação mecânica invasiva ou não invasiva. Em setembro, a companhia anunciou que o desfecho primário foi atingido: pacientes com pneumonia associada à covid-19 que receberam a substância associada ao tratamento padrão tiveram 44% menos probabilidade de precisarem de ventilação mecânica ou de morrerem na comparação com aqueles que que receberam placebo mais tratamento padrão. O percentual de pacientes que passou para ventilação mecânica ou morreu no 28º dia de internação foi de 12,2% entre aqueles que receberam tocilizumabe contra 19,3% no grupo que recebeu placebo.
Em parceria com a Gilead Sciences, a Roche também testou a eficácia e a segurança da combinação do tocilizumabe com o remdesivir em pacientes hospitalizados com pneumonia grave associada à covid-19. Porém, em março deste ano, foi anunciado que o Remdacta não atingiu seus objetivos primários.
A farmacêutica afirma que está acompanhando esses estudos feitos com o medicamento em pacientes com covid-19 e, após analisar todos os dados disponíveis, vai decidir se solicita junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) a aprovação da substância para esse fim.
— Esta é uma indicação que não consta em bula. A gente não pode recomendar e promover, ela deve ser feita na prescrição do médico, pois o uso off label tem que ser feito com base nas informações que ele tem — ressalta Alvarenga.
Uma metanálise sobre o medicamento, que reúne dados de 27 estudos, deve ser publicado neste próximo mês com a perspectiva de trazer respostas mais concretas sobre o uso da substância.
Uso restrito e desabastecimento
Fornecido pelo Sistema Único de Saúde para pacientes com artrite reumatoide, o tocilizumabe passou a ser uma das estratégias médicas para tratar a covid-19 dentro das UTIs, diz Viviane. Os pacientes mais beneficiados, diz a especialista, são aqueles que têm necessidade de oxigênio.
— Pacientes em casa, com sintomas, mas sem necessidade de oxigênio, não precisam tomar remédio nenhum. Só toma para os sintomas, como dor ou febre. Já aqueles que podem se beneficiar do tocilizumabe são os que precisam de suporte de oxigênio com cateter de alto fluxo e com rápida deterioração da condição respiratória. A vantagem, mesmo que discreta, seria, principalmente a redução de óbito. Não é um milagre — avalia a médica do BP.
Além do tocilizumabe, os pacientes também recebem, em associação, corticoides, que, atualmente, fazem parte da boa prática no tratamento da covid-19, diz Viviane.
Mesmo indisponível para a compra em farmácias — ele é comercializado apenas para instituições qualificadas como pessoas jurídicas, habilitadas e responsáveis pela distribuição aos pacientes —, o Actemra viu seus estoques baixarem em alta velocidade depois da publicação dos estudos que indicavam potenciais vantagens no uso para pacientes críticos com covid-19. Diante da demanda, a Roche emitiu, em março, um esclarecimento sobre o desabastecimento e uso racional do medicamento.
No texto, a companhia destacou que comunicou, em 23 de dezembro de 2020, a Anvisa sobre o aumento na procura e um possível desabastecimento de duas apresentações do produto como consequência. Em 31 de março deste ano, mais uma vez, a empresa informou a agência sobre a escassez do medicamento na versão subcutânea.
Nesse cenário, a Roche afirma que “está trabalhando com alta prioridade e urgência junto à sua equipe global para aumentar a capacidade de produção e mitigar o desabastecimento de Actemra® (tocilizumabe) no Brasil. Contudo, atualmente notam-se sinais crescentes de falta do produto em todas as suas apresentações (80 mg IV, 200 mg IV e 162 mg SC). Por isso, a empresa está acompanhando os pedidos recebidos de forma cautelosa e adotando alternativas para uma distribuição mais assertiva do medicamento entre os estabelecimentos de saúde”. Ademais, pede que o uso seja limitado a casos de extrema necessidade e desaconselha estocar o produto.
A Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR) também emitiu uma nota sobre o desabastecimento e deu orientações para o tratamento das doenças reumatológicas que necessitam do medicamento.