Paula Pfeifer*
Dorothy Marder ficou profundamente surda por causa de um antibiótico ototóxico. A perda do acesso ao cinema foi devastadora para ela, que lutou por legendas pelo resto da sua vida. O filme O Som do Silêncio (Sound of Metal, disponível no Amazon Prime Video) é dedicado a Dorothy – não à toa, afinal, ela era avó de Darius Marder, corroteirista e diretor da obra indicada a seis Oscar: em 25 de abril, concorre nas categorias melhor filme, ator (Riz Ahmed), roteiro original, ator coadjuvante (Paul Raci), edição e som.
No dia 3 de março de 2021, a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou o World Hearing Report, com números globais atualizados sobre a surdez. Temos hoje, no mundo, nada menos do que 1,5 bilhão de pessoas com algum grau de surdez – o que significa que uma a cada cinco pessoas tem algum grau de perda auditiva. Um montante de US$ 980 bilhões é gasto por ano para cobrir os prejuízos da perda auditiva não tratada – a cifra é equivalente ao que Brasil e China gastam juntos em saúde anualmente. Maior do que esse número, apenas o desconhecimento generalizado da população sobre o assunto.
É aí que O Som do Silêncio entra. O personagem principal, Ruben, é um músico que trabalha sem proteger a sua audição. Como resultado, ele fica completamente surdo. A perda repentina da habilidade de ouvir traz desafios gigantes: ele não consegue mais se comunicar, não pode falar ao telefone, não ouve música, não ouve sua voz nem as vozes das pessoas ao redor. Como sua surdez foi súbita, Ruben não sabe fazer leitura labial, afinal, nunca precisou dessa ferramenta antes. Preso numa bolha do mais absoluto silêncio, ele se desespera.
O baterista é ex-viciado em drogas e acaba indo parar num centro de reabilitação para pessoas surdas que se comunicam através de língua de sinais. Ruben, como a maioria dos ouvintes, não sabia absolutamente nada sobre surdez até ficar surdo. Com a passagem pelo centro de reabilitação, ele aprende sobre a diversidade da surdez. Com exceção de Joe, que perdeu a audição por causa de uma bomba no Vietnã, os outros residentes do local usam exclusivamente a língua de sinais como modo de comunicação.
Ruben quer voltar a ouvir, e numa ida ao fonoaudiólogo, fica sabendo sobre a existência do implante coclear. A partir daí, enquanto aprende a sinalizar e se entrosa com os colegas, ele traça sua estratégia para conseguir fazer a cirurgia.
O Som do Silêncio é cirúrgico em mostrar o preconceito que as pessoas surdas que usam aparelho auditivo ou decidem fazer um implante coclear sofrem por parte da comunidade surda usuária de Libras. Infelizmente, o filme peca ao mostrar o implante coclear (IC) como uma solução mágica e à jato para a surdez. Existem, sim, casos em que o resultado logo após a ativação dos eletrodos é espetacular (me incluo entre eles), mas, na maioria das vezes, o processo é lento e gradual, além de requerer muita terapia fonoaudiológica e dedicação por parte do paciente. As acusações de cripface (quando uma pessoa sem deficiência interpreta o papel de uma pessoa com deficiência no cinema ou na TV), por sua vez, não procedem, uma vez que tanto Ruben quanto Joe eram ouvintes que tiveram surdez súbita. Já os atores que interpretam os residentes do centro de reabilitação são todos surdos na vida real.
O final é aberto à interpretação de cada um. Enquanto uns acham que Ruben desistiu de ouvir e preferiu continuar no silêncio, outros, que como eu têm implantes, sabem que ele apenas retirou os ICs para relaxar com um pouco de silêncio. Esse é um privilégio que milhões de pessoas conhecem: transitar pelos dois mundos, o do som e o do silêncio, quando bem entendem. Ter um botão “OFF” e poder desligar seu aparelho auditivo ou seu implante coclear é um verdadeiro luxo nesse mundo cheio de poluição sonora no qual vivemos.
*Escritora e criadora do movimento #surdosqueouvem