O país do Carnaval e do futebol agora também é o país dos ansiosos. Relatório divulgado em fevereiro pela Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre depressão e distúrbios de ansiedade colocou o Brasil no topo da lista de nações com maior percentual de pessoas com algum tipo de transtorno de ansiedade: 9,3%, índice três vezes maior do que a média mundial registrada no documento, baseado em dados de 2015. Mulheres sofrem mais com o problema, seguindo uma tendência mundial, assim como questões socioeconômicas também têm participação nesse cenário. Mas por que o Brasil, tão conhecido lá fora pela alegria e cordialidade de seu povo, é campeão no levantamento global desses distúrbios?
Entendendo os principais fatores de risco da ansiedade, pode-se ter uma pista de como o país se tornou um território fértil para esse problema. Como o relatório não apresenta as causas em detalhe, médicos e especialistas apontam hipóteses na tentativa de explicar a desconfortável e preocupante posição do Brasil no ranking, que ainda deixa a nação em quinto lugar no mundo quando o assunto é depressão.
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Professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, Giovanni Abrahão Salum Júnior relembra que desigualdade social, pobreza e traumas na infância são apontados como fatores de risco para transtornos de ansiedade, assim como o estresse – ainda que não necessariamente uma pessoa estressada ou que tenha sido exposta a uma situação estressante vá desenvolver algum transtorno desse tipo.
– Não quer dizer que estresse gere ansiedade ou depressão, mas é importante saber que pessoas vulneráveis a esses transtornos podem reagir pior se submetidas ao que chamamos de fatores estressores – diz.
Condições para adoecer a população desse modo não têm faltado no país, e algumas delas vêm de longa data, como desigualdade social e violência na infância. A atual crise financeira e os índices de violência nas grandes cidades também têm sido considerados na avaliação de especialistas. Esses fatores se refletem na organização e na harmonia das famílias, gerando um ambiente favorável a esses transtornos, como preocupações constantes com a manutenção financeira e o medo frequente de ser vítima de assaltos, por exemplo.
As causas sociais prováveis dos transtornos de ansiedade e depressão são quase consenso e não chegam a ser surpresa para especialistas, apesar de ainda serem negligenciadas. O que psiquiatras e pesquisadores esperam é que os índices apresentados no relatório da OMS sirvam para jogar luz ao tema e motivem ações concretas quanto à saúde mental dos brasileiros.
Existe ansiedade do bem
Enquanto atendia o telefone para conversar com a reportagem, o psiquiatra Eduardo Trachtenberg, de Porto Alegre, organizava-se para deixar o carro e seguir para uma reunião que começaria em 15 minutos.
– Acho que é um pouco disso que estou fazendo agora, várias coisas ao mesmo tempo. A ansiedade está relacionada a esse número de demandas, ao excesso de tarefas que a população vem enfrentando, não só a do Brasil – diz o médico, que também é professor da Fundação Universitária Mario Martins, ao ser questionado sobre o que acredita ter alavancado os números dos transtornos de ansiedade no Brasil.
Trachtenberg aposta que essa rotina acelerada tem cobrado seu preço na saúde mental dos brasileiros, mas ressalta que é preciso distinguir a ansiedade saudável daquela de caráter patológico (leia mais abaixo). Esse sentimento, ou emoção, está ligado a nossa reação natural de luta ou fuga, a nossa preservação e prevenção diante de perigos. É natural nos sentirmos ansiosos pouco antes de uma apresentação ou de um encontro importante.
Preocupar-se com as tarefas do cotidiano também não tem nada de anormal. O problema é quando isso passa a ser excessivo e constante e começa a interferir claramente na atividade do indivíduo. A pessoa não consegue se desligar das preocupações em momento algum e amplia seus temores para além da realidade dos fatos – ou ainda se angustia por coisas que concretamente não têm possibilidade de acontecer ou sequer evidências que as coloquem na agenda de fatos inevitáveis. Não são raros sintomas físicos, como taquicardia, suor sem esforço físico e dificuldades para dormir. Esses transtornos de ansiedade podem se desdobrar em fobias, pânico e numa ansiedade generalizada.
De alguma forma, observa o psiquiatra, o aumento na violência urbana no país pode estar refletido nos resultados da OMS, porque o chamado estresse pós-traumático, que pode acometer quem é vítima de um ato violento ou ameaça grave, vem sendo notado nos consultórios. Trata-se de um distúrbio de ansiedade catalogado na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), geralmente considerada pela OMS em suas avaliações.
Num contexto social em que as ocorrências (e por consequência, as notícias) sobre assaltos e homicídios entram para a rotina da população, fica fácil suspeitar que a violência tenha deixado sua marca na saúde mental dos brasileiros que, somente em 2010, de acordo com o último Boletim do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), consumiram 10,59 milhões de unidades de Rivotril e 4,4 milhões de unidades de Lexotan, os dois ansiolíticos mais vendidos no país.
– Após um assalto, a pessoa pode ter ataques de pânico, revivências e até depressão – diz Trachtenberg.
Diferenças entre ansiedade normal e patológica
– A ansiedade faz parte do repertório de emoções do ser humano. Ela serve, assim como o medo, para nos alertar sobre algum risco iminente, por exemplo.
– É considerada saudável quando eventualmente nos coloca em situação de alerta e faz com que tomemos atitudes que possam prevenir danos.
– A ansiedade torna-se um transtorno quando ela causa limitações à vida da pessoa.
– Preocupações excessivas, que chegam a comprometer a qualidade do sono e até provocar taquicardia, podem ser sinais de distúrbios de ansiedade.
– Pensamentos negativos constantes e sensação de medo sem motivo real podem indicar que algo está mal. Uma das manifestações mais comuns dos distúrbios de ansiedade são os transtornos do pânico, nos quais a pessoa se imobiliza diante de situações que não representam risco real.
– A fobia social, que envolve dificuldade de se relacionar com as pessoas e encarar públicos, é um distúrbio de ansiedade.
Um problema cheio de disfarces
Olhando para os números do relatório da OMS, parece que os distúrbios de ansiedade estão adequadamente contemplados pelos sistemas públicos de saúde e quem é atingido pela doença está bem assistido no Brasil. Não é bem essa a percepção de quem está no dia a dia dos pacientes. Psiquiatra e pesquisador da Faculdade de Medicina da USP, Lucas Gandarela nota que essas doenças ainda são subdiagnosticadas e rodeadas de preconceitos até por quem sofre do problema.
Muitas vezes, o tratamento começa depois que o paciente passou por outros especialistas, não raro um cardiologista, que é requisitado depois que a ansiedade produziu um de seus sintomas mais comuns e assustadores, a taquicardia.
Socialmente, os distúrbios de ansiedade também são disfarçados de "traços de personalidade", como aquele comportamento irritadiço e estressado ou aquela pessoa que tem dificuldades de relacionamento social que acaba sob o guarda-chuva dos "caseiros e supertímidos". O professor da USP chama a atenção para as consequências da falta de cuidado ao problema no ambiente de trabalho e na economia.
– Esses transtornos estão hoje entre as principais causas de afastamento do trabalho – diz.
O próprio documento apresentado pela OMS dá conta das consequências econômicas dos transtornos de saúde mental. O órgão estima que a cada ano a economia mundial perca cerca de US$ 1 trilhão em razão desses problemas.
– Seria importante que esses números (do relatório) fossem analisados para políticas públicas de atenção a esse problemas – avalia.
Outro relatório da OMS, divulgado em 2016, mostrou que cada US$ 1 investido na ampliação do tratamento de depressão e ansiedade daria um retorno de US$ 4 em melhor saúde e capacidade de trabalho. O mesmo documento revela que entre 1990 e 2013, o número de pessoas que sofrem de depressão e/ou ansiedade aumentou em quase 50%, de 416 milhões para 615 milhões. Cerca de 10% da população mundial é afetada, e os transtornos mentais respondem por 30% da carga global de doenças não fatais.
Educação para a mente
Se estamos no topo do mundo em taxas de transtornos de ansiedade, isso já seria motivo suficiente para estender aos distúrbios mentais a atenção que outros problemas de saúde foram ganhando ao longo dos anos. O Brasil melhorou sua estrutura, chegou a participar de eventos da própria OMS em que apresentou como montou sua rede pública de atendimento psicossocial e os desafios enfrentados nessa caminhada. Mas ainda é preciso melhorar a prevenção desses transtornos.
Para o psiquiatra Lucas Gandarela, da Universidade de São Paulo (USP), os dados apresentados pela OMS precisam ser usados como uma forma de "reconhecimento" da doença, ampliando ações não só na saúde, mas também em outros setores, como no ambiente de trabalho das empresas e nas escolas.
Giovanni Abrahão Salum Júnior, do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRGS, participou do estudo Conexão: Mentes do Futuro, que investigou mais de 2,5 mil crianças, entre seis e 14 anos, e pais de Porto Alegre e São Paulo. A ideia foi ampliar informações sobre os transtornos psiquiátricos na infância. A pesquisa mostrou que a prevalência de transtornos emocionais (ansiedade e depressão) nas crianças foi de cerca de 10%. Entre as mães, a prevalência de transtornos de ansiedade foi de cerca de 20%.
– Somente 20% das crianças tinham um diagnóstico e seguiam algum tratamento. Isso mostra um ponto importante, que temos de cuidar da saúde emocional na infância – diz Salum Júnior, corroborando o que Gandarela sustenta como urgência.
– O tratamento desse transtornos tem de começar mais cedo. Geralmente, o paciente chega ao especialista adequado quando já está com outros prejuízos na saúde, e isso encarece o tratamento – afirma.
A psicóloga e coach Marcia Luz reforça que esses transtornos não têm idade e, muita vezes, apresentam sintomas progressivos, que são desconsiderados na fase inicial. Segundo ela, os casos estão também relacionados a uma rotina extenuante, inclusive quando se fala de crianças, e a uma constante preocupação com o futuro.
No caso do Brasil, analisa ela, soma-se a crise econômica e a outro hábito bem brasileiro dos últimos anos: redes sociais. Somos campeões na América Latina em número de usuários ativos das redes, segundo pesquisa da eMarketer divulgada em meados do ano passado: 93,2 milhões. Isso acaba expondo as pessoas a um excesso de informações e até provocando leituras desconectadas da realidade.
As redes sociais, com seu universo de pessoas felizes e bem-sucedidas, podem induzir a uma ideia equivocada de fracasso individual, como se a vida dos outros fosse sempre mais agradável e promissora.
– Muita gente não faz outra coisa senão estar no Facebook. Estamos sempre sendo estimulados, o tempo todo. É tragédia, crise, violência, as notícias aí, e a gente passa a ver o mundo dessa forma. Eu diria que vivemos na era da ansiedade. É o mal desse século – alerta a psicóloga.
Dicas para frear a ansiedade
– Preste atenção no pensamento negativo. Escute o que ele tem a dizer e observe se está dimensionado de acordo com o que você realmente vai enfrentar. Depois, mentalmente, mande-o embora.
– Atenção à respiração. Num momento de muita ansiedade, pare e respire profundamente três vezes. Isso ajuda a aliviar tensões e a retomar o foco no presente.
– Treine a gratidão. Observe o aqui agora em vez de focar as preocupações no futuro e em fatos que sequer têm chances reais de acontecer. Agradecer a si mesmo o presente ajuda a valorizá-lo.
– Se está difícil desabafar angústias, escreva. Projetar no papel colabora para organizar o pensamento.
Fonte: Márcia Luz, psicóloga e coach