O grave quadro de um paciente pediátrico com apenas 12% da capacidade pulmonar motivou o cirurgião torácico José Camargo a colocar em prática uma ideia sobre a qual se debruçava havia três anos. Assim, em 17 de setembro de 1999, a equipe liderada pelo especialista realizou na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre o primeiro transplante de pulmão intervivos fora dos Estados Unidos.
Passados 25 anos, o procedimento que pode garantir vida normal aos transplantados ficou ainda mais seguro, mas é visto até agora como uma “alternativa de exceção”.
Diagnosticado em 1995 com bronquiolite obliterante (doença que obstrui os bronquíolos e dificulta a expiração), Henrique Busnardo tinha 12 anos quando passou pela cirurgia. Na ocasião, o menino de Curitiba, no Paraná, teve os dois pulmões retirados por completo e substituídos por uma metade do órgão do pai, Amadeu Busnardo, e outra da mãe, Márcia Busnardo.
De acordo com Camargo, que hoje é diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa, Henrique veio para Porto Alegre para tentar um transplante convencional, com doador cadavérico. O problema é que as crianças têm uma caixa torácica pequena, tornando muito difícil encontrar um doador de tamanho compatível — característica que limita os transplantes pulmonares em pacientes pediátricos.
— O transplante convencional era uma possibilidade muito remota e ele estava muito mal, a expectativa dele era de poucos dias de vida. Ele estava usando uma concentração altíssima de oxigênio, dormindo ajoelhado porque não conseguia deitar. A situação era dramática, tanto que não ouvi a voz do Henrique antes de ele ser transplantado. Ele estava sempre com máscara e desesperado de falta de ar — explica o especialista.
Foi isso que fez Camargo cogitar pela primeira vez a possibilidade de realizar um transplante intervivos, procedimento que havia conhecido em 1996, após assistir em Los Angeles a apresentação de um médico que já havia feito cirurgias do tipo na Califórnia. O especialista comenta que a operação tem uma particularidade técnica interessante, já que usa a parte de baixo dos pulmões (o lobo) de pessoas saudáveis para substituir o pulmão inteiro da criança:
— O fato de precisar de dois pedaços é o que torna esse transplante mais difícil do que o transplante intervivo de fígado ou de rim, porque nós precisamos de dois doadores. Ninguém pode doar mais do que um lobo sem comprometer a sua própria capacidade pulmonar. O pulmão não regenera, mas a perda de um lobo não é perceptível pelo doador.
Também há um aspecto legal que estabelece que os doadores precisam ser familiares de até terceiro grau do receptor — a preferência é que seja pai e mãe, a fim de reduzir o risco de rejeição pela semelhança imunológica. Por isso, o procedimento não é muito comum: dos 761 transplantes realizados na Santa Casa, somente 40 foram com doadores vivos, conforme Camargo.
— O transplante intervivos é um procedimento para que não tem tempo para esperar e representa, sem dúvida, um acréscimo no número total de doadores disponíveis — destaca.
Avanços
Na avaliação do especialista, a cirurgia ficou ainda mais segura no decorrer desses 25 anos, principalmente porque a anestesia é um procedimento fundamental no processo e está cada vez mais qualificada. Outro acréscimo recente nos transplantes intervivos é a disponibilidade de oxigenação por membrana extracorporal (ECMO), que é popularmente conhecida como “pulmão artificial”:
— É um oxigenador de membrana artificial que permite manter o paciente oxigenado com o aparelho enquanto ele estiver usando. Coloca-se uma cânula em uma artéria, uma cânula em uma veia e o sangue do paciente circula por essa máquina e é devolvido para o corpo oxigenado. Esse é um acréscimo de segurança que aumentou ainda mais a chance de sucesso nesse tipo de transplante.
Também há avanços em relação ao número de drogas disponíveis para o tratamento do paciente após as cirurgias. Segundo Camargo, quando os transplantes de pulmão iniciaram, havia apenas três alternativas disponíveis. Hoje, existem várias, que agem por mecanismos diferentes, aumentando a sobrevida dos transplantados: a expectativa do paciente estar vivo em cinco anos saltou de 60% para quase 80%, com boa qualidade de vida.
O especialista também ressalta que os pedaços de pulmões transplantados, apesar de serem retirados de pessoas maduras e já terem completado sua evolução como órgão, retomam o crescimento quando são colocados em crianças e continuam se desenvolvendo junto ao receptor — assim, se mantêm suficientes para o desempenho durante a vida adulta.
Vida normal
Aos 37 anos, Henrique Busnardo garante que leva uma vida normal: trabalha como revisor de contratos jurídicos, estuda para concursos públicos, faz academia, sai com os amigos, vai ao shopping e ao cinema.
— Tenho uma vida saudável. Faço exercícios físicos para melhorar minha capacidade respiratória e para a saúde mental também, que é importante. Graças às mãos e à equipe do doutor Camargo foi uma cirurgia perfeita. Foi muito marcante na minha memória e eu fico muito grato por eu estar em plenas condições de levar uma vida normal — destaca.
O morador de Curitiba ainda toma medicamentos anti-rejeição, mas nunca precisou de um novo procedimento. Ele ressalta que mantém o peso ideal para não prejudicar o enxerto e lembra que, depois da cirurgia, se dedicou a fazer fisioterapia todos os dias para obter uma qualidade de vida muito melhor do que tinha antes.
Busnardo também comenta que os pais não tiveram problemas depois do transplante — a mãe tem 72 anos e, o pai, é falecido.
— Ela ficou muito bem e leva uma vida extremamente ativa. Sai com as amigas dela, gosta de ver séries junto comigo. Nós somos muito companheiros um do outro. E ela se emociona muito quando se lembra da cirurgia, porque, antes do transplante, eu tinha muita falta de ar, era dependente de oxigênio 24 horas por dia, então foi um sofrimento imenso para mim e para minha família — conta.