Nos últimos anos, a prevalência de doenças inflamatórias intestinais (DIIs) no Brasil vem aumentando significativamente. Um estudo realizado com pacientes brasileiros do sistema público de saúde, publicado na revista internacional The Lancet Regional Health – Americas, aponta que esse índice saltou de 30 casos por 100 mil habitantes em 2012 para 100,1 por 100 mil em 2020. O dado acende um alerta e reforça a importância da campanha Maio Roxo, que busca conscientizar a população sobre as características dessas enfermidades, as medidas de prevenção e a necessidade de um diagnóstico precoce.
Conforme a Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBCP), cerca de 5 milhões de pessoas no mundo são acometidas pelas DIIs, que se caracterizam pela inflamação do trato gastrointestinal, podendo atingir da boca ao ânus. O grupo abrange basicamente duas condições: a doença de Crohn e a retocolite ulcerativa. Embora sejam crônicas, ambas podem ser prevenidas a partir da adoção de uma rotina de hábitos saudáveis, com uma dieta rica em fibras, evitando alimentos ultraprocessados, e prática regular de atividades físicas.
— Cerca de 80% dos casos são de doença de Crohn ou retocolite ulcerativa. E essas duas podem ser de grau leve, moderado ou grave. Os outros 20% são de colites indeterminadas —pontua Ornella Sari Cassol, coloproctologista do Hospital de Clínicas de Passo Fundo e presidente da Associação Gaúcha de Coloproctologia.
Ambas as doenças são imunomediadas, ou seja, há um desequilíbrio no sistema imunológico, que agride o próprio aparelho digestivo, causando úlceras, inflamações e sangramentos. Uma das principais diferenças entre Crohn e retocolite ulcerativa é que a primeira pode comprometer qualquer parte do tubo digestivo e afetar todas as suas camadas (mucosa, submucosa, muscular e serosa), da boca ao ânus, enquanto a segunda acomete exclusivamente as camadas mais superficiais do intestino grosso e do reto, explica o gastroenterologista Richard Magalhães, preceptor do Núcleo de DIIs da Santa Casa de Porto Alegre e diretor clínico do Centro de Doenças Intestinais Inflamatórias e Imunomediadas (@DIImuno).
Os sintomas são parecidos. Na doença de Crohn, envolvem sobretudo diarreia e dor abdominal crônicas (por mais de 30 dias), anemia, perda de peso e fístulas perianais. Na retocolite, a diarreia crônica é o principal sinal, podendo ter sangue e muco.
— Na doença de Crohn, os sintomas têm padrão intermitente, com crise e melhora. A pessoa é medicada e os sintomas aliviam, o que acaba atrasando o diagnóstico. Além disso, quando está com inflamação intestinal, a pessoa tem intolerância a vários alimentos, então acha que está virando intolerante a lactose ou a glúten. É importante investigar, não deduzir — diz Ornella, alertando que pode haver manifestações fora do intestino, como artrite, psoríase e uveíte.
Sem causa definida
A retocolite afeta mais pessoas entre 20 e 40 anos. Já na Crohn, há maior frequência dos 15 aos 30 e a partir dos 60. Quanto mais cedo a doença surgir, mais grave pode se tornar, diz Rafael Picon, médico do Serviço de Gastroenterologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da Faculdade de Medicina da UFRGS.
Picon diz que ambas as doenças são idiopáticas, ou seja, não há total conhecimento sobre causas e origens. Magalhães acrescenta, contudo, que fatores genéticos e ambientais – como dietas ultraprocessadas, poluição e tabagismo – estão associados.
De acordo com ele, países mais industrializados, como EUA, Inglaterra, Itália e França, têm as maiores prevalências. No Brasil, a coleta de dados não é tão fidedigna, mas alguns trabalhos mostram que há uma prevalência cada vez maior:
Nos últimos anos, com a industrialização, temos observado um aumento cada vez maior de novos casos. Entende-se que isso tenha relação com o fato dos pacientes estarem nesses ambientes, seguindo dietas ultraprocessadas.
RAFAEL PICON
Médico do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da UFRGS
— Nos últimos anos, com a industrialização, temos observado um aumento cada vez maior de novos casos. Entende-se que isso tenha relação com o fato dos pacientes estarem nesses ambientes, seguindo dietas ultraprocessadas. Então, o aumento da incidência está relacionado à ingestão de alimentos ultraprocessados.
Ornella destaca que há gatilhos que podem desencadear as DIIs, como ansiedade, depressão e insônia. Essas condições têm relação com a microbiota – a flora intestinal, onde transitam os microrganismos do trato digestivo responsáveis pela digestão de alimentos, pela produção de vitaminas e pelo sistema imunológico.
Tema de documentário na Netflix
A possível associação das DIIs com demais problemas de saúde é tema de um documentário lançado neste ano pela Netflix. Os Segredos da Alimentação tem o objetivo de desmistificar a função da saúde intestinal no bem-estar do ser humano. Afirma que doenças como depressão, ansiedade, autismo, câncer e Parkinson podem estar relacionadas com o intestino, e que é possível alterar a microbiota por meio de mudanças na dieta e nos hábitos de vida.
Há diversos estudos sobre o papel da microbiota e sobre a presença de populações específicas de microrganismos nos pacientes com DIIs, diz Magalhães. Por isso, há pesquisas que tentam atuar diretamente nessa área para prevenir enfermidades, mas ainda não existe nenhuma orientação baseada em evidências científicas:
— Existem evidências de pesquisas básicas sobre essas conexões, mas como vamos atuar sobre isso ainda não se sabe. O que sabemos é que a microbiota tende a ficar pouco diversificada quanto mais consumimos alimentos industrializados e dietas pobres em fibras, sem frutas, verduras e vegetais. E quanto menos diversificada, maior o risco de desenvolver doenças.
A importância do diagnóstico precoce
A principal forma de mudar o curso das doenças inflamatórias intestinais (DIIs) é por meio do diagnóstico precoce, destaca o gastroenterologista Richard Magalhães. O grande problema é que, muitas vezes, isso não ocorre porque os pacientes costumam apresentar sintomas que podem ser confundidos com patologias corriqueiras, como a gastroenterite aguda, e acabam sendo diagnosticados incorretamente nas emergências e unidades de saúde.
— Essas doenças têm evolução com dano contínuo ao aparelho digestivo. Se não forem freadas, as consequências são devastadoras e, às vezes, irreversíveis. Por isso há a necessidade de conscientização e de educação médica, para que os pacientes e profissionais estejam atentos a essa possibilidade de diagnóstico e procurem um centro de referência especializado — salienta o médico da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
O diagnóstico é feito a partir de exames laboratoriais (onde são identificados o processo inflamatório sistêmico e deficiências de vitaminas), da endoscopia digestiva alta, da colonoscopia e de exames de imagem, como tomografia, ecografia e ressonância. Ornella orienta que é preciso consultar especialistas como gastroenterologistas e coloproctologistas, que pedem esses testes e montam um “quebra-cabeça” para o diagnóstico.
— Os principais estudos falam que doenças tratadas nos primeiros 12 meses terão desfechos muito melhores — ressalta Ornella, acrescentando que o tratamento envolve equipe multidisciplinar, com gastroenterologistas, coloproctologistas, nutricionistas, farmacêuticos, psicólogos e enfermeiros.
O tratamento das DIIs envolve medicamentos orais e, em casos mais graves, cirurgias. De acordo com Magalhães, o arsenal terapêutico dessas enfermidades é muito grande, abrangendo drogas como a mesalazine e sulfassalazina, que têm ação tópica na mucosa, ou imunossupressores e imunobiológicos para aqueles que não respondem aos remédios do primeiro grupo.
— Os que mais usamos e que são mais efetivos com ambas as doenças são os imunobiológicos. São medicamentos que mudaram a história, freando a evolução das doenças. Com essas drogas, temos resultados maravilhosos, mas devem ser prescritas por especialistas, pois há efeitos adversos que não são negligenciáveis — diz Magalhães, enfatizando que o tratamento deve ser contínuo, mesmo com a melhora dos sintomas.
O câncer de intestino
Pacientes diagnosticados com doenças inflamatórias intestinais – em especial a retocolite – têm maiores chances de desenvolver câncer de intestino, sobretudo se as doenças não forem tratadas devidamente. O gastroenterologista Magalhães comenta que a patologia começa a ser mais comum a partir do oitavo ano de doença, por isso, é preciso intensificar os cuidados e fazer colonoscopias com maior frequência.
Os especialistas também alertam que, cada vez mais, estão sendo observados casos de câncer em pessoas mais jovens, o que pode estar relacionado ao maior consumo de alimentos industrializados. Por isso, foi reduzida a idade mínima para que indivíduos saudáveis, sem histórico familiar, façam sua primeira colonoscopia: antigamente, era 50 anos, hoje, é 45.
— Com histórico familiar, precisa ser antes. Se pai ou mãe tiveram câncer de intestino aos 50 anos, tem que contar 10 anos para trás, ou seja, deve-se fazer aos 40 — esclarece Magalhães.
Recomendações médicas
Especialistas recomendam investir em alimentos naturais e fugir dos ultraprocessados. Picon afirma que as dietas mais saudáveis sugeridas nesses casos são as mesmas indicadas para o restante da população:
— Deve-se optar por alimentos ricos em fibras, como hortaliças, frutas, verduras e grãos integrais. Já os ultraprocessados que devem ser evitados são fast foods, comidas congeladas, algumas carnes feitas de plantas. Além de alguns aditivos químicos que são comuns em comidas muito industrializadas, como adoçantes, que parecem aumentar o risco dessas doenças.
O especialista do HCPA também comenta que, embora não seja uma recomendação oficial, há estudos que apontam a exposição ao sol e à sujeira como formas de proteção no âmbito de doenças inflamatórias:
— É um bom hábito a criança brincar na rua e se sujar, por exemplo. Além disso, pessoas que se criaram em zonas rurais têm um risco menor de doença inflamatória intestinal. E (essas enfermidades) são menos frequentes entre populações onde tem mais sol.
Ornella concorda que se deve evitar industrializados e aumentar o consumo de itens orgânicos, preparados em casa. Mas adiciona os embutidos, o excesso de carne vermelha e o tabagismo à lista do que precisa ser evitado.
A coloproctologista complementa ainda que o aleitamento materno e o contato com o meio ambiente ajudam a proteger doenças autoimunes como essas.