Os baixos índices de imunização das crianças contra a poliomielite registrados nos últimos anos têm preocupado autoridades sanitárias e especialistas, que temem o retorno da doença que pode deixar sequelas permanentes e levar à morte. O Brasil recebeu o certificado de eliminação da poliomielite em 1994, mas o risco de reintrodução da paralisia infantil no país é real.
Diante do desempenho frustrante, o Ministério da Saúde prorrogou até o final do mês a campanha inicialmente prevista para terminar em 9 de setembro. O esquema básico de vacinação contra a pólio prevê três doses injetáveis aos dois, quatro e seis meses de vida e mais dois reforços, aos 15 meses e aos quatro anos, com a vacina via oral. As mobilizações anuais promovidas pelo governo federal têm o objetivo de incrementar a proteção com as gotinhas.
A doença é endêmica em países como Afeganistão e Paquistão. Neste ano, Israel e Malauí registraram diagnósticos de pólio. O estado de Nova York, nos Estados Unidos, declarou emergência há duas semanas após constatar o retorno da circulação do vírus, encontrado no esgoto. No Brasil, o caso de uma adolescente de Roraima estava em investigação no início deste mês.
Médica alergista e imunologista, Mariele Morandin Lopes alerta que é muito fácil a pólio reaparecer devido à intensa circulação de pessoas. Basta a presença de alguém contaminado para disseminar o vírus. O grupo sob maior risco é o da faixa etária até cinco anos.
— Criança coloca muito a mão na boca. De repente, ela pode ter contato direto com o vírus ou comer algo contaminado. O vírus vai para o intestino e é expelido nas fezes. Quem manipula as fezes da criança pode acabar se contaminando e passando adiante. As crianças infectadas podem ter casos bem variados, desde quadros mais leves como virose simples até os graves, que levam à paralisia — comenta Mariele.
Para a pediatra Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (Sbim) e presidente da Comissão de Revisão dos Calendários Vacinais da entidade, o risco da volta do pesadelo da pólio não é teórico, mas real, a exemplo do que ocorreu com o sarampo. A pandemia de coronavírus, que mobilizou o setor de saúde por completo, impactou as coberturas vacinais para outras doenças em diversos países. A disseminação de fake news também contribuiu para as baixas adesões.
— A vacinação contra a pólio está muito aquém do necessário. Por mais que a gente esteja cansado de falar, eu diria que a maioria da população não tem a menor ideia de que os filhos correm o risco de ter paralisia infantil. Os pais dessa geração nunca viram pólio, perna mecânica, respirador para manter o paciente vivo. É falha na conscientização da população sobre a importância de manter altas coberturas vacinais — reflete Mônica.
Faltam também campanhas educativas efetivas, ressalta a pediatra, como as que deram fama ao personagem Zé Gotinha nos anos 1990.
— O mundo mudou, as formas de comunicar precisam mudar. Precisamos de mídias que atinjam a população. No passado, em todo lugar tinha gotinha. As crianças queriam ir tomar gotinha. A Xuxa falava nisso. Era muito importante a forma de comunicar — diz Mônica.
Não se deve, adverte a diretora da Sbim, esperar o “susto” da confirmação de um registro de poliomielite no Brasil, o que certamente levaria muitas famílias às unidades de saúde.
— Quando tem notícia de febre amarela, os postos e as clínicas lotam, são horas de fila. As pessoas funcionam com o medo, mas é errado ter que correr atrás do prejuízo. Será muito triste ter um caso noticiado de paralisia infantil e daí “corra quem puder”. Agora é a hora. Dá tempo de a gente se proteger. Tem que ter alguma maneira assertiva de conscientização agora — diz a pediatra.
Todo caso de paralisia de membros deve ser notificado e encaminhado para investigação, informa Mônica. Além disso, é fundamental manter uma boa vigilância ambiental, com coleta e análise de amostras de esgotos.
— Temos que procurar o vírus da pólio. Fora isso, é vacinar, vacinar, vacinar — afirma a pediatra.
Duas vacinas diferentes
No Brasil, são utilizadas a vacina contra a pólio de vírus inativado (VIP), com previsão de três doses injetáveis durante o primeiro ano de vida (leia mais abaixo), e a vacina de vírus vivo atenuado (VOP), em gotinhas, para os reforços posteriores. O Ministério da Saúde orienta que a criança só receba a fórmula de vírus atenuado depois de receber as doses de vírus inativado. Esse esquema prepara o organismo do bebê, ainda imaturo, para que possa lidar bem com as doses de vírus atenuado.
— Crianças com imunodeficiências (problemas no sistema de defesas) têm risco de desenvolver a doença com a vacina de vírus vivo atenuado. Essas não tomam as gotinhas. Podem fazer o reforço, se for o caso, com inativa. Para a pólio, temos essa alternativa, mas, para a tríplice viral (que protege contra sarampo, caxumba e rubéola), por exemplo, ainda não temos. Aí essas crianças com imunodeficiências, dependendo do grau de comprometimento, não podem fazê-la — explica a imunologista Mariele.
Mães e pais com filhos que têm problemas que comprometam o sistema imune, geralmente diagnosticados cedo, precisam ser orientados sobre como proceder.
— Na dúvida, “não sei se meu filho pode ou não”, converse com o pediatra. Se precisar de avaliação mais específica, procure um imunologista. Se for o caso, e é na minoria dos casos, podemos fazer avaliação para ver como está o sistema imune — diz Mariele.
Há alguns anos, o Brasil introduziu a vacina de vírus inativado aos dois, quatro e seis meses.
— Entre um e quatro anos, o grupo da campanha, a criança toma a gotinha desde que tenha tomado as três doses inativadas. A nossa campanha é totalmente segura porque as gotinhas são pra crianças que já tomaram as doses injetáveis — garante Mônica, da Sbim. — A gotinha provoca imunidade de rebanho. A criança que toma vacina oral também a elimina nas fezes. O ambiente fica vacinado, digamos assim. A pólio oral é necessária pra acabar com a pólio infantil — complementa a médica.
Alguns países utilizam somente a VIP, e o tema rende discussões entre especialistas.
— Como até o primeiro ano de vida é a de vírus inativado, acho que já é bem legal. Depois do primeiro ano, já vamos saber se a criança tem alguma doença que contraindique ou não as gotinhas, que têm boa eficácia também e é fácil de ser administrada. Não é uma vacina ruim — argumenta Mariele.
O esquema vacinal contra a poliomielite no calendário básico
Vacina Poliomielite 1,2,3 inativada (VIP)
- Dose: 0,5 ml via intramuscular
- Esquema: três doses (aos dois, quatro e seis meses de vida)
Vacina Poliomielite 1,3 atenuada (VOP)
- Dose: duas gotas, por via oral
- Esquema: reforço aplicado aos 15 meses e aos quatro anos
Campanhas nacionais anuais
Crianças entre um e quatro anos devem receber reforço com a VOP (gotinhas), desde que já tenham recebido as três doses da VIP previstas no esquema básico. Um profissional de saúde pode analisar a caderneta de vacinação e verificar se o esquema está em dia, dando as orientações necessárias
A importância do PNI
- O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi formulado em 1973, ano em que o Brasil conquistou a certificação internacional de erradicação da varíola, e lançado em 1975.
- O PNI, vinculado ao Sistema Único de Saúde (SUS), coordena as ações de vacinação em todo o país.
- Nos anos 1980, foram instituídos os dias nacionais de vacinação, estratégia fundamental de prevenção contra a poliomielite. O personagem Zé Gotinha foi fundamental nas campanhas de divulgação e incentivo à imunização.
- O último caso de pólio no Brasil é de 1989. O país recebeu o certificado de eliminação da doença em 1994.
- Também foi possível eliminar outras doenças, como rubéola, síndrome da rubéola congênita, tétano materno e neonatal, e o sarampo, de forma temporária.
Fontes: Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Ministério da Saúde