"Minha filha, eu, minha mãe, a mãe da minha mãe e a mãe da mãe da minha mãe", escreveu Eduarda Ricci Perin, 27 anos, na legenda de uma foto publicada no Facebook, no último Dia das Mães. Na imagem, cinco mulheres de uma família de Passo Fundo, no norte do Rio Grande do Sul, registram o momento antes do churrasco comemorativo. Até pouco tempo atrás, a "escadinha" familiar tinha Eduarda no degrau mais baixo. Agora, a jornalista teve de dar o lugar para a filha Analua Perin Grendene, um ano e dois meses. Completam a foto: Olga Donato Zanotto, 89 anos, Araci Teresinha Ricci, 69, Silvia Regina Ricci, 48.
— É um momento que aproveitamos, esquecemos o celular, contamos as coisas da semana, todo mundo dá risada — diz Eduarda sobre as reuniões de todos os domingos, organizadas na casa de Araci, no centro da cidade.
Há cem anos, esse tipo de encontro seria pouco provável, uma vez que, em 1900, a média da expectativa de vida do brasileiro era de 33,7 anos. Hoje, a população caminha para a casa dos 80 anos em média. A situação é global: pessoas vivem cada vez mais, o número de centenários cresce. Somos testemunhas do período em que a humanidade é mais longeva.
Também chamada de esperança de vida, a expectativa vida é uma média de anos que a população de um lugar espera viver se mantidas as condições de vida no momento do nascimento do indivíduo.
Nesta reportagem, GZH conversa com especialistas para explicar os motivos do avanço, a partir de uma pergunta: o que transformou o mundo — acostumado à morte antes dos 35 anos, no início do século passado — em um lugar onde hoje não é surpresa um encontro com várias gerações da mesma família?
População mundial nunca viveu tanto
De acordo com o doutor em demografia José Eustáquio Diniz Alves, ao longo dos séculos, a média de vida das pessoas não passava de 30 anos. O cenário começou a mudar apenas nas últimas décadas do século 19, período em que a expectativa média de vida no mundo beirava os 32 anos, conforme Alves. Desde então, viver mais tornou-se um fato em países ricos e pobres, de todos os continentes, nos últimos cem anos.
A informação mais recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), de maio de 2021, diz que a expectativa de vida global aumentou de 66,8 anos em 2000 para 73,3 anos em 2019. No mesmo estudo, Japão, Austrália, Canadá, Suíça e Islândia são citados pela OMS como os lugares onde se vive mais: de 83 a 85 anos em média.
Ainda de acordo com a OMS, República Centro-Africana, com 53,1 anos, Somália, com 56 , e Moçambique, com 58,1, estão entre os países onde se vive menos hoje.
O Brasil e o RS
A expectativa de vida ao nascer do brasileiro saltou de 33,7 anos em 1900 para 76,8 em 2020, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para a população masculina, a média é 73,3 anos, e, para a feminina, de 80,3.
O último levantamento do governo estadual do Rio Grande do Sul indica que a expectativa média de vida ao nascer dos gaúchos passou de 75,59, entre 2010-12, para 77,26 anos, entre 2017-19, o que representa aumento de 1,67 ano. As gaúchas vivem mais: para elas, a estimativa é 80,88; para os homens, 73,60.
Os dados do IBGE e do governo estadual não consideram o impacto da pandemia de covid-19, mas estudiosos trabalham com a redução da expectativa de vida no país nos últimos dois anos. Segundo o IBGE, os efeitos da crise sanitária mundial serão mensurados com os dados do próximo Censo Demográfico, previsto para 2022.
A pesquisadora brasileira Márcia Castro, do Departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard, afirma que a pandemia foi responsável por encurtar a média de longevidade dos brasileiros em 1,8 ano, em 2021. A especialista em demografia Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), conduziu outra pesquisa, que constata cenário ainda pior. Baseada em dados de 2020 e 2021, a pesquisadora diz acreditar em uma redução para os 72,2 anos, o que representa queda de 4,4 anos na expectativa média de vida do brasileiro.
Se confirmados os estudos independentes, a covid-19 será responsável por ter quebrado a sequência de aumento na longevidade registrada nos últimos anos no Brasil. Mas, a longo prazo, não mudará a tendência de crescimento nas próximas décadas, acreditam especialistas ouvidos pela reportagem. O IBGE concorda e projeta que, em 2050, a média de vida da população geral chegue aos 80 anos no Brasil.
As tecnologias que contribuíram para longevidade
Porto Alegre tentava combater a varíola no ano de 1874, um problema global naquela época. O número de mortes relacionadas à doença crescia na Capital e o poder público buscava controlar a situação. Tuberculose, varíola, febre tifoide, meningite, disenteria eram outras doenças que tiravam a vida de porto-alegrenses no fim do século 19 e início do 20.
A capital gaúcha não enfrentava sozinha o problema. Estudo sobre a mortalidade de doenças infecciosas na cidade de São Paulo mostra que diarreia e enterite foram responsáveis por 20% das mortes naquela cidade em 1901. No Rio de Janeiro, a febre amarela apavorou moradores por décadas.
Todas essas enfermidades têm algo em comum: hoje estão sob controle ou foram erradicadas no país. A mudança levanta a pergunta: o que possibilitou o controle das chagas, e deu início ao período no qual a população passou a viver cada vez mais?
O autor norte-americano Steven Johnson, no livro Longevidade, elenca e divide os motivos em três grupos: inovações que salvaram milhões de vidas, inovações que salvaram centenas de milhões de vidas e inovações que salvaram bilhões de vidas.
No primeiro, estão tecnologias como o coquetel para a aids, a anestesia, a angioplastia, os medicamentos contra a malária, a radiologia, os cintos de segurança, entre outros. No segundo, o autor inclui antibióticos, agulhas bifurcadas, transfusões de sangue, cloração e pasteurização.
No último, definido como os "verdadeiros gigantes do prolongamento da nossa vida", Johnson destaca o fertilizante artificial, os sanitários/esgotos e as vacinas. "Os avanços dos últimos três ou quatro séculos nos proporcionaram cerca de 20 mil dias extras de vida em média. E bilhões de pessoas que nunca teriam vivido para chegar à idade adulta ou ter filhos foram agraciadas com esse valoroso presente", escreve no livro.
Antibióticos e vacinas
Ivete Berkenbrock, presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), destaca a década de 1940, período de crescimento populacional, embora muitas pessoas ainda morressem jovens. De acordo com o IBGE, naquela década - quando teve início a série história de estudos sobre o tema - a expectativa de vida do brasileiro ao nascer era de 42,9 anos para homens e de 48,3 para mullheres.
De acordo com a presidente da SBGG, naquele período, a medicina começou a utilizar uma das tecnologias responsáveis por controlar as doenças que acometiam a humanidade: os antibióticos.
— Foi a grande diferença no controle das doenças infecciosas. A população deixou de morrer em uma idade tenra. Tivemos crescimento no número de habitantes, que sobreviveram e tiveram mais acesso à medicina moderna — lembra Ivete, que destaca, ainda, a melhora nas condições sanitárias e o desenvolvimento econômico do período como fatores importantes.
Temos certeza de que o aumento da longevidade se deve ao uso das vacinas, prevenindo as doenças que matavam. Isso é um fato incontestável.
IVETE BERKENBROCK
Presidente da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG)
O "divisor de águas", contudo, pontua a presidente da SBGG, foi a criação e popularização das vacinas:
— Passamos a dar atenção a condições que levavam à morte e impediam que as pessoas vivessem por mais tempo. Temos certeza de que o aumento da longevidade se deve ao uso das vacinas, prevenindo as doenças que matavam. Isso é um fato incontestável.
Doenças cardíacas e cânceres, dois dos desafios do mundo moderno na área de saúde, hoje têm mais recursos e condições de tratamento graças ao desenvolvimento das tecnologias na medicina, completa Ivete. Pacientes ganharam não só prolongamento como qualidade de vida com o refinamento de diagnósticos por imagens, dos procedimentos cirúrgicos cada vez menos invasivos e de rápida recuperação, por exemplo.
Estilo de vida é o mais importante
O geriatra Emilio Moriguchi, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e chefe do Serviço de Medicina Interna do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), baseia-se em estudo publicado na revista Nature, que elenca quatro fatores responsáveis por estender a vida humana, para definir o "estilo de vida" como fator mais importante para a longevidade.
Estão incluídos no item, que representa 53% da fatia de componentes da longevidade, alimentação, atividade física, repouso, lazer, vida social e espiritual. Outros motivos incluem "ambiente" (com quem a pessoa vive, o ambiente social, as companhias, a família, os amigos), "genética" (o que herdamos dos pais e ancestrais) e a tecnologia médica.
Moriguchi se mostra cauteloso quanto à contribuição da tecnologia médica no cenário vivido no momento (os avanços da medicina representariam apenas 10% do montante, segundo consta na Nature). Para o geriatra, a maioria das pessoas não vai ao médico, ainda que tenha todo o acesso possível a profissionais, remédios e tecnologias, e procura ajuda apenas "quando precisa".
— A conscientização do estilo de vida saudável é o mais importante para a longevidade. Não somente o estilo de vida, mas também a convivência com pessoas que se gosta, ter momentos agradáveis — diz o geriatra, que ainda destaca a importância da melhora da situação socioeconômica em diversos países como decisivos.
A conscientização do estilo de vida saudável é o mais importante para a longevidade. Não somente o estilo de vida, mas também a convivência com pessoas que se gosta, ter momentos agradáveis.
EMILIO MORIGUCHI
Professor da Faculdade de Medicina da UFRGS e chefe do Serviço de Medicina Interna do HCPA
O exemplo de Passo Fundo
O estilo de vida defendido pelo geriatra Emilio Moriguchi como responsável pela longevidade é adotado por Olga Donato Zanotto, de 89 anos, a matriarca da família de Passo Fundo. De acordo com a bisneta Eduarda Ricci Perin, Olga preza por uma alimentação saudável, faz atividades e busca interação com a família e amigos.
— Optamos por "comida de verdade", coisas mais naturais e menos industrializadas. Ela (Olga) sempre trabalhou muito em casa. Ela, minha vó e minha mãe sempre participam de ações na paróquia, na comunidade, participam de eventos, encontros e missas — explica.
A rotina mantida na família faz com que Olga mantenha-se ativa. Eduarda diz que a idosa está atenta aos cuidados diários com a saúde e que não sai de casa sem "fazer chapinha" no cabelo, por exemplo.
— A minha bisavó acha que nunca vai morrer, ela sempre se considera mais nova do que é. Quando alguém morre aos 80 e poucos anos, ela diz: "Nossa, mas tão nova!", como se a pessoa tivesse toda a vida pela frente — comenta a bisneta.
Podemos viver quantos anos?
Não há consenso entre especialistas a respeito de quantos anos uma pessoa pode viver. Um recorde serve de parâmetro na discussão: a francesa Jeanne Louise Calmen, considerada a pessoa mais velha da história, morreu aos 122 anos e 164 dias, em 1997. Essa idade é entendida como o limite para a humanidade em pesquisa publicada em 2016 na Nature. Outro estudo, da Universidade de Roma, publicado na revista Science, diz que, se há um limite para a vida humana, ele ainda não foi atingido.
Cientistas da Gero, empresa de biotecnologia de Cingapura, indicam a possibilidade de o ser humano viver entre 120 e 150 anos. O estudo, publicado na Nature Communications em 2021, desconsidera, entretanto, doenças cardiovasculares, câncer e acidentes.
O pesquisador norte-americano Sergey Young, no livro The Science and Technology of Growing Young (sem tradução para o português), vai mais longe: para ele, em "um futuro não muito distante", as pessoas poderão viver "100, 150 ou 200 anos, e até mais do que isso, mantendo-se saudável, vigoroso e mentalmente apto". Diz que isso será possível a partir de tecnologias usadas hoje e do aperfeiçoamento delas nos próximos anos: inteligência artificial, engenharia genética, regeneração e transplante de órgãos e tecidos, ferramentas de diagnóstico e medicamentos são alguns dos exemplos.
O geriatra Emilio Moriguchi está no grupo de pesquisadores que vê os 120 anos como "limite biológico", mas admite a dificuldade de ter certeza sobre o assunto neste momento. E acrescenta que, mesmo em populações nas quais há muitos centenários - cita o exemplo do Japão, onde há 86 mil pessoas com mais de cem anos, segundo dados de 2021 - não é esperado que todos cheguem a essa idade.
— Qual a qualidade de vida, a saúde, que teríamos? Não acho importante saber quanto viveremos, mas viver essa média bem, com a família e os amigos, e partir sem sofrimento — finaliza.
Manutenção da saúde
Professora do mestrado em Psicologia da Universidade Feevale, Geraldine Alves dos Santos defende a relação entre longevidade e saúde. Cita a necessidade de uma rotina com atividade física e boa alimentação, mas chama atenção para o fator psicológico enfrentado pela humanidade com a extensão da vida. Para ela, há uma clara mudança no discurso das pessoas que passam dos 60 anos, motivada, em especial, pela alta possibilidade de se viver décadas a mais.
— Era triste ver uma geração mais antiga de idosos dizer que não tinha motivação para viver, que não tinha mais o que fazer da vida. Na década de 1970, as pessoas pensavam que se aposentariam e morreriam em seguida. Isso ocorria porque os pais e avós desses idosos morriam aos 50 anos, se chegassem aos 60 era muito. Então, esperavam aproveitar pouco a vida — afirma.
Por isso, o aumento da expectativa de vida indica que não é incomum uma pessoa idosa viver 15 ou mais anos depois de se aposentar, e, em muitos casos, de forma saudável, apta uma rotina ativa. Assim, acrescenta a professora, a longevidade tem forçado uma visão de longo prazo não apenas nos mais velhos, mas também em jovens e adultos:
— Antes, vivia-se 40, 50 anos. Hoje, "corremos o risco" de chegar aos 80, 90. É um grande salto. Eles (os idosos) sabem que podem viver muito e que precisam aproveitar esses anos a mais de vida. Vivemos uma mudança de paradigma sobre o desenvolvimento humano.