Ela é filha de José Lutzenberger (1926-2002), o gaúcho que fez da Porto Alegre do século passado um centro de grandes discussões sobre meio ambiente. Absorveu o conhecimento do pai, mas não seguiu o mesmo caminho de combatividade. Lara Lutzenberger é mais reservada. Formada em Biologia pela UFRGS, discorre sobre qualquer questão ambiental, inclusive as mais delicadas, como a bandeira do consumo sustentável em um mundo em que a fome e a pobreza sequer foram superados. Tem um olhar crítico para a sociedade, que vê cada vez mais distante da simplicidade da natureza, refém da necessidade de ostentação. Mas preferiu dedicar-se à família a liderar protestos. Foi sentada em um banco do Parque Marinha do Brasil, perto de onde mora com marido e dois filhos, que deu a seguinte entrevista a GZH. É ali que admira árvores e pássaros enquanto cria um menino e uma menina na cidade. Também vai para a sede da Fundação Gaia, sítio fundado pelo pai em Pantano Grande, onde recebe pessoas que buscam se desconectar das pressões sociais para alcançar momentos de paz.
Em maio vão se completar 20 anos da morte de seu pai, um símbolo da luta ambientalista no Brasil. você acha que ele estaria triste ou esperançoso com os dias atuais?
Mais triste do que esperançoso. Infelizmente, praticamente tudo o que ele previu se confirmou. Meu pai teve um comportamento quase quixotesco para a época. Poucas eram as pessoas que percebiam o que ele percebia. Hoje, a consciência ambiental da população aumentou. É senso comum que vivemos crises ambiental, social e econômica, que o planeta e nossa espécie estão em risco. Mas a gente vive um momento muito crítico da história da humanidade. Acredito que temos que nos manter esperançosos, investir nosso tempo em dar a melhor contribuição possível, mas vivemos sob ameaça. Desde a época do meu pai, as crises pioraram.
Ele atuou em uma época em que ambientalistas alertaram sobre o perigo do desenvolvimentismo em detrimento da natureza. Essa luta ainda faz sentido ou já passou?
Não é uma causa perdida. Pelo contrário, essa luta é mais necessária do que nunca. O movimento ambientalista mudou. Começou focado em algumas personalidades e agora já é coletivo. Não é mais tanto o reconhecimento de uma ou outra referência personificada. Há uma multidão de pessoas que militam, de diferentes maneiras, de forma difusa. Nem sempre passando esclarecimentos para a sociedade, mas fazendo a diferença no mundo, mudando a forma de fazer negócios, de criar os filhos. É mais silencioso. Tem um ditado budista que diz: a árvore que tomba é mais ruidosa do que a floresta que cresce. Há muita coisa mudando, apesar de estar longe de ser suficiente. Ainda vivemos sob ameaça, maior do que a que tínhamos nos anos 1980 e 1990.
O que é essa grande ameaça de hoje?
A crise climática já não é suspeita; é realidade. Basta agravar um pouco mais que passaremos a nos perceber tão frágeis quanto uma formiga atravessando a estrada. Não somos nada quando a força da natureza se mostra em toda a sua potência. Olha os temporais, o aumento de temperatura. Cada vez mais, nos acostumamos com verões de 40ºC. Em partes do planeta, há registros de 50ºC. Como aguentar isso? Quem nega as mudanças climáticas ou é ignorante ou não quer abrir mão do seu estilo de vida.
O Rio Grande do Sul acabou de viver um verão extremamente quente e seco, com uma estiagem severa e inclusive queimadas. falou-se na ajuda imediata, em aliviar o problema dos municípios, mas pouco se ligou tudo isso ao aquecimento global.
Até se ligou, mas de forma lateral. Tudo isso é resultado do aquecimento global, do desmatamento vertiginoso que está acontecendo na Amazônia, responsável por regular o clima, especialmente na região Centro-Sul. No momento em que aumenta o desmatamento na Amazônia, aumenta a estiagem no Sul, reduz nosso regime pluviométrico. Isso, somado ao aquecimento global, faz com que nossos verões fiquem secos e tórridos. Esse contexto até é comentado, mas sempre de forma muito lateral. E isso faz com que algumas pessoas não se deem conta da gravidade do que vivemos.
Há quem defenda mudanças no consumo, optando por produtos mais sustentáveis, mas que no entanto são mais caros. É um impasse.
Primeira coisa: temos que reduzir o consumo, não apenas substituir por um produto menos poluente. Precisamos reduzir bruscamente o consumo de tudo. Outra coisa: o orgânico que está no supermercado, por exemplo, é realmente mais caro do que o produto envenenado – prefiro o termo “envenenado” do que “convencional” porque é envenenado mesmo. Agora, se você vai na feira orgânica, onde há uma rede colaborativa entre os produtores, onde o próprio agricultor entrega o produto fresco, essa diferença de preço não é tão grande. Temos que nos organizar para comprar direto do produtor, na feira. Requer esse esforço. Em relação a outros produtos, precisamos priorizar aquilo que dura. Sair do descartável. O descartável pode ser barato na hora, mas, quando você compra de novo, e de novo, não fica barato. E gera uma montanha de lixo. É um desperdício. Implica em custos sociais e ambientais que as próximas gerações terão de pagar.
Quem nega as mudanças climáticas ou é ignorante ou não quer abrir mão do seu estilo de vida.
Como avançar para um consumo sustentável se tanta gente é pobre?
Sei que há pessoas que mal têm como comprar o seu alimento. Mas tem a população intermediária, que, por gastar em bobagens, não tem recurso para gastar com o que importa. Até quem tem condições melhores vai ao supermercado, escolhe o que custa menos, e aí vai no shopping gastar uma fortuna em roupa com assinatura de estilista. Quer ostentar para a sociedade que tem condições. Na contramão, está poupando naquilo em que realmente deveria gastar. Já a parcela mais pobre, essas pessoas que realmente lutam para adquirir seu alimento básico, nós, como sociedade, precisamos rever as políticas públicas de apoio e como podemos melhorar suas condições de empregabilidade. Para tornar os negócios mais lucrativos, não só estamos destruindo o meio ambiente, como marginalizando cada vez mais pessoas.
Será que algum dia esses valores serão repensados?
A sociedade de consumo doutrinou a gente a se orientar pelo que temos, pelo que podemos ostentar. Fomos deixando de lado valores como responsabilidade, reciprocidade, veneração pela natureza. Passamos a viver como consumidores. Consumimos o planeta e as nossas próprias vidas. A gente se mata para conseguir mostrar para o mundo que chegamos lá, que temos uma condição da qual podemos nos orgulhar. É uma crise de valores que precisa ser encarada de frente. Além de estar destruindo o planeta, gera inúmeros distúrbios comportamentais nas pessoas. Gera infelicidade. Quem consegue adquirir mais é acometido pela sensação de insaciedade. Quem já tem tudo, quer mais. Será que vamos conseguir mudar isso? Depende do grau de consciência de cada um. Talvez as próprias crises possam nos levar a outro patamar. Tenho a felicidade de ser conectada com a natureza, que me lembra dos valores importantes, e assim consigo me contrapor a essa tentação consumista e opressiva. Mas o desafio é o equilíbrio. Jamais diria para a gente virar as costas para o consumo e viver como bicho do mato. A gente não precisa disso e nem é possível. Se todos largarmos a cidade e formos para o campo, causaremos outros impactos. Somos muitos para nos espalharmos pelas zonas rurais.
O orgânico que está no supermercado é realmente mais caro do que o produto envenenado. Agora, se você vai na feira orgânica, onde há uma rede colaborativa entre os produtores, onde o próprio agricultor entrega o produto fresco, essa diferença de preço não é tão grande.
O deslumbre está em ir para um hotel cinco estrelas, mesmo que esse gasto cause muito impacto no orçamento, porque o luxo faz a pessoa se sentir especial. O simples não tem graça.
Mas é no simples que está a graça. No simples, você tem paz. No excesso, você fica estressado, sempre acha que fez a escolha errada. No excesso, você se cansa, a mente fica poluída. A ostentação é totalmente desnecessária. O que a gente precisa é ter saúde, estar alimentado, sereno, sentir que a vida faz sentido, que temos relações que nos enaltecem. A ideia de que precisamos estar em um resort de luxo, ou vestindo roupa de grife, é ilusão. Não estou falando para abdicar de tudo. Estou falando de ser seletivo. Há os que defendem que devemos viver no mato e abdicar de tudo. Acho que o caminho do meio é mais sensato. Podemos desfrutar das coisas maravilhosas que o mercado oferece. O que precisamos é de discernimento.
O presidente Jair Bolsonaro já disse que, “cada vez mais, o índio é um ser humano igual a nós”. É uma visão de que o indígena ainda não se civilizou, que, para isso, deve estar inserido na sociedade de consumo. O que acha disso?
Essa é a ignorância das pessoas sobre a riqueza do índio. A riqueza do índio é, mais do que qualquer outra coisa, espiritual – que é justamente o que nossa sociedade mais perdeu. São lamentáveis esses pronunciamentos que o Bolsonaro faz. A forma como o presidente tem lidado com os territórios indígenas, buscando formas indecentes de tirá-los de seus próprios espaços, é criminosa. Muitas pessoas não têm noção do valor do índio, da mesma forma que não sabem o valor da natureza. E digo mais: muitas soluções para sairmos das crises que criamos vamos obter através dos índios. Já estive na Amazônia, foram poucas vezes, mas tive contatos com lideranças indígenas. No Exterior, também tive experiências com lideranças aborígenes. A principal lição desses povos é como viver bem sem destruir a base de sustentação da vida, que é a natureza.
A Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), criada com a ajuda de seu pai em 1971, foi pioneira na luta ambiental no Brasil. Os atuais integrantes dizem que a associação não tem dinheiro, não tem sede e também não tem mais tanta projeção. O que houve com essa entidade e a adesão das pessoas às causas ambientais?
Nos anos 1970 a Agapan também não tinhm dinheiro. Era uma ação voluntária. Meu pai fez militância com uma dedicação até sacrificada. O movimento ambiental, desde as suas origens, sempre foi movido pelo desejo genuíno de esclarecer sobre a degradação ambiental e social. Sempre foi idealista. Agora, é difícil ter tempo para fazer esse trabalho idealista. Demanda pesquisa, preparo. A projeção que a Agapan teve no passado se deveu à figura do meu pai. Ele, além de ter um amplo conhecimento, tinha carisma e personalidade. Tratava desses temas de forma genuína. Ele foi único. Como comentei, o próprio movimento ambientalista mudou. Meu pai teve postura quixotesca. Além dele, eram quatro ou cinco personalidades no mundo que falavam o que ele falava. Hoje, já foi falado diversas vezes e por diversas pessoas. A época é outra, as pessoas são outras. Mas é importante que a Agapan exista e que siga reunindo quem queira lutar por essa causa.
Só vejo duas soluções: ou mundo estará melhor ou acabou. Porque não teremos mais 50 anos no ritmo em que vivemos hoje. Me preocupo com meus filhos. eles têm o direito de ter filhos também, de viver bem até o fim de suas vidas. Acho terrível pensar que isso não exista, mas corremos esse risco.
A Vida Desenvolvimento Ecológico foi fundada em 1988 pelo teu pai para tratar os resíduos sólidos industriais, que é basicamente o lixo das grandes empresas. Ele atuou, inclusive, com a empresa de celulose que tanto criticou (Borregaard, hoje CMPC). São mais de 30 anos trabalhando com grandes corporações. Você recebe críticas por isso?
Hoje não mais. Mas meu pai recebeu muitas críticas. Uma das bandeiras que ele levantava era que não basta criticar, tem que trazer a solução. Não adianta só dizer que está tudo errado. Esse radicalismo está equivocado. Meu pai fez a crítica à indústria de papel e celulose que deixava Porto Alegre com um cheiro horrível, que poluía o Guaíba, mas também buscou a solução para esse problema: colocar filtros nas chaminés e, em vez de despejar o lodo no rio, desenvolver uma tecnologia de fermentação do lodo que resulta em terra que pode ser usada para substrato para plantio. Meu pai tinha muito forte o pragmatismo de não fazer a crítica vazia, a crítica pela crítica. Ele sempre buscava as soluções. Mas ele foi criticado porque o ambientalista radical, que está cheio nesse mundo, diz que o “vilão” tem que ser banido. Tu só vais encontrar resolução se houver diálogo. Meu pai dialogava com o “vilão” também.
Pelo que entendi da sua trajetória, você não quis, como seu pai, colocar-se contra grandes empresas ou fazer grandes protestos.
Não, não tenho fôlego. Nunca me vi nessa condição de ir para os meios de comunicação para fazer denúncias, argumentar, enfrentar. Não tenho esse perfil. E minha trajetória nem deu condições de me preparar para isso. Quando meu pai começou com a militância ambiental, ele tinha mulheres cuidando da casa para ele, que viam todas as necessidades e demandas cotidianas para ele. Ele ocupava todo o tempo com estudo, dava palestras, fazia o trabalho de consultor ambiental. Todo esse universo de cuidado dos filhos, da casa, não era com ele. Comigo é o contrário. Eu tive que cuidar por muitos anos do meu pai doente, de duas tias doentes, e, nesse meio tempo, tive dois filhos. Ocupei grande parte da minha vida com isso: cuidando da família, do que também me orgulho. E assumi a responsabilidade de levar adiante o Rincão Gaia, que é um trabalho enorme e que ocupa muito tempo. No início, senti essa pressão por não ser igual ao meu pai. Mas consegui me desvencilhar e entendi qual é a minha contribuição. Cada pessoa é única.
O Rincão Gaia, sítio mantido pela fundação gaia em Pantano Grande, a 125 quilômetros de Porto Alegre, recebe turistas e oferece atrações em meio à natureza. Era uma área sem vida que seu pai transformou em um recôndito de descanso e desfrute da natureza. Como está esse espaço?
Era uma área muito degradada, basicamente com solo nu e pedras, além de duas grandes pedreiras, e o pai teve a grande sacada de transformar aquilo em um local emblemático, mostrando como a natureza poderia se regenerar e ser regeneradora para as pessoas. Quando dialogamos com a natureza, ganhamos. E esse trabalho eu levo adiante. Me apaixonei por esse lugar. Coordeno todos os trabalhos lá, orientando o que deve ser feito. A maior parte do tempo faço isso de Porto Alegre, mas com frequência vou para lá, circulo pelo Rincão, observo o que acontece na natureza e fui me integrando a tudo isso. É lá que eu vivencio a natureza mais fortemente, mas também desfruto disso aqui no Parque Marinha, e quando viajamos em família também vamos para locais onde podemos desfrutar da natureza. É um hábito de infância.
Sua geração, que viveu uma infância perto da natureza, hoje enfrenta o desafio de passar essa experiência para os filhos. Como estimular essa paixão em uma infância tão seduzida pela tecnologia?
É na infância que é dado o primeiro passo para um vínculo com a natureza. Mas esse vínculo precisa seguir para o resto da vida. Esses pais que viveram uma infância na natureza, mas não proporcionam isso para os filhos, é porque eles próprios perderam esse hábito. O estímulo de só consumir vai enfraquecendo essa conexão com a natureza. Falamos de pessoas que, apesar de terem perdido o contato, conseguiram viver uma infância mais livre na natureza. Mas hoje há cada vez mais crianças que nunca viveram essa infância. Como despertar a sensibilidade para a natureza se crescem olhando para a tela de um celular? Há famílias que vão para o Rincão Gaia, de pais que tiveram uma infância na natureza, perderam o vínculo, mas estão procurando ressuscitar isso. Mas há crianças que chegam lá e é necessário que a gente faça um esforço muito grande para que elas se interessem pela natureza. É triste.
Parte das Gerações mais novas se questiona se vale a pena colocar filhos em um mundo sob vários sentidos inóspito. Como você imagina a vida no planeta terra daqui 50 anos?
Só vejo duas soluções: ou mundo estará melhor ou acabou. Porque não teremos mais 50 anos no ritmo em que vivemos hoje. Me preocupo com meus filhos, porque eu, daqui a 50 anos, estarei com cem. Olho para os meus filhos e penso: eles têm o direito de ter filhos também, de viver bem até o fim de suas vidas. Acho terrível pensar que isso não exista, mas corremos esse risco.