— Não é exagero. Tudo isso é medo.
A fala é da empresária Lígia Lavratti, 34 anos, moradora de Rodeio Bonito, no norte do Estado. Ela mostra quatro frascos de repelentes, dois venenos, dois aparelhos de tomada e uma raquete — tudo para evitar mosquitos.
O motivo da preocupação é um único tipo do inseto: o Aedes aegypti. Transmissor da dengue, ele já foi responsável por 637 casos registrados na cidade somente em 2022, sendo 264 ativos, conforme dados atualizados até o fim da tarde desta terça (22). Os números são alarmantes se comparados proporcionalmente à população: considerando o número estimado de moradores pelo IBGE em 2021 – 5.868 –, equivale a dizer que 10,85% já tiveram ou estão com dengue. A situação alarmante fez a prefeitura decretar situação de emergência no último dia 16.
O medo da família de Lígia começou quando ela, o marido Evandro, 47 anos, e o filho Vicente, hoje com cinco, saíram em férias. Em 30 de janeiro, no primeiro dia em Balneário Camboriú, Santa Catarina, o pequeno começou a apresentar manchas vermelhas pelo corpo. Na primeira consulta médica, o diagnóstico foi alergia alimentar; na segunda, escarlatina. Mesmo questionando os médicos, os pais receberam como resposta que não poderia ser dengue, e a criança seguiu tomando anti-inflamatórios — medicamento contraindicado no caso da doença transmitida pelo Aedes aegypti.
— A gente quase perdeu o gurizinho, porque foi trágica a coisa. A vermelhidão, eu me arrepio de falar. Não eram mais pintinhas, aquilo se transformou em um “grossor”, o rostinho todo pipocado, muito triste de ver — relata Lígia.
Ao mesmo tempo em que o menino piorava, o marido Evandro começou a ter febre também. Assim, a família retornou a Rodeio Bonito, onde foi constatado que todos estavam com covid-19. O diagnóstico de dengue de Vicente só veio alguns dias depois, sete dias desde o primeiro sintoma – o menino teve as duas doenças ao mesmo tempo. E, passado o período de isolamento do coronavírus, ela, gestante, e o marido também vieram a testar positivo para dengue.
— Eu, gestante, com umas 23, 24 semanas, senti na pele o que meu filho passou. Porque além de toda a situação da covid, que já deixa a gente debilitado, a dengue é muito pior. Só quem passa para saber. Te dói o corpo todo. Eu também tive muita dor abdominal e começaram algumas contrações, e pensei “a Maria vai nascer” — recorda.
Os sintomas que a família teve foram os considerados clássicos da dengue: febre alta, dor de cabeça, dor atrás dos olhos, dor no corpo e nas articulações, além de manchas vermelhas. Desde a recuperação, passaram a adotar cuidados redobrados, como o uso de repelentes durante todo o dia e diferentes tipos de venenos.
— A gente ficou refém por dois anos da covid-19. Hoje, a gente está refém do mosquito. A nossa comunidade está adoecendo. É muita gente passando por isso, doente — conta a Lígia, que também é presidente da Associação Comercial e Industrial de Rodeio Bonito, lembrando os casos em empresas e a menor movimentação no comércio.
Circulando pelas ruas da cidade, GZH não demorou a encontrar pessoas que tiveram dengue ou que conheciam alguém infectado pela doença. Nas rodas de conversa, a enfermidade e as medidas de combate são o principal assunto. No caminho para Rodeio Bonito, em Jaboticaba, uma placa da prefeitura municipal também alerta para os riscos.
Gerente de uma farmácia, Leiene Giordani não foi acometida pela dengue, mas percebe no dia a dia o impacto provocado na cidade:
— É muita gente vindo comprar repelente e também remédios. As pessoas chegam dizendo que estão com muita dor, que acham que não vão conseguir passar por isso.
Explicações
Diferentes motivos explicam o aumento do número de casos de dengue em Rodeio Bonito. Em primeiro lugar, a infestação por Aedes aegypti, que atinge boa parte do Estado – atualmente, 433 municípios são considerados infestados, o que corresponde a 87,12% do total existente no Rio Grande do Sul.
Diretora do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), Cynthia Goulart Molina Bastos também destaca que, durante a pandemia, o trabalho dos agentes comunitários ficou limitado, já que havia orientação de que, em determinados momentos, eles não entrassem na casa das pessoas.
— Foi um período em que se conseguiu fazer menos trabalhos na rua em relação a isso (prevenção). Não se podia fazer visita. Aí, se perde um pouco do olhar que o técnico tem em relação a locais de risco — justifica.
Uma outra particularidade da cidade pode ajudar a explicar o aumento abrupto dos casos: boa parte dos moradores têm o hábito de coletar água da chuva. Em alguns casos, os recipientes – como cisternas e caixas d’água – não ficavam bem vedados, o que ajuda o mosquito a se proliferar.
— Por isso, agora estamos orientando as pessoas a não coletar água até passar o alto número de casos. Depois disso, vamos seguir com orientação. E o trabalho árduo vai seguir durante todo o ano — afirma a secretária municipal de Saúde, Daniela Strapazzon.
Prevenção
No sábado (19), moradores foram convidados a participar, voluntariamente, de um mutirão. Um grupo se reuniu em frente à prefeitura e, dividido, percorreu ruas da cidade para identificar possíveis focos de acúmulo de água.
Na manhã desta terça (22), agentes de combate às endemias e agentes comunitários de saúde, acompanhados de um servidor da Coordenadoria Regional de Saúde, passaram por locais onde foram confirmados casos para conversar com a população e revisar os pátios. Eles vestiam camisetas com dizeres “Faça do mosquito o seu alvo” e “Rodeio Bonito contra a dengue”’. Conforme a prefeitura, diariamente há ações do tipo e o número de focos encontrados nas casas vem diminuindo.
A prefeitura também faz aplicação de inseticida quando há confirmações de casos, de forma que ocorre praticamente todos os dias. Na tarde passada, equipes estavam no Loteamento Gambetta.
— A gente praticamente perdeu o mês de fevereiro, achando que íamos resolver a situação fazendo orientações, passando veneno e esperando a população dar resposta. Mas, em março, a gente viu que não surtiu efeito. Então a gente optou por uma medida drástica: as agentes viraram 400 caixas de coleta de água e fizeram o serviço de lavar e inativar, mostrando o que tinha que ser feito — explica a secretária, Daniela Strapazzon.
Conforme a secretária, ainda é cedo para observar mudança no número de casos, mas um ponto positivo já foi observado: o posto de saúde da área central, que realiza testes para a dengue, tem tido menos procura nesta semana.
No hospital, há risco de falta de medicamentos
Assim como as unidades de saúde da cidade, a Associação Hospitalar São José viu crescer a demanda de pacientes com sintomas de dengue nos últimos 40 dias. A procura é mais intensa após as 17h e nos finais de semana, quando os postos estão fechados. No fim de semana dos dias 12 e 13, foram 280 atendimentos, sendo a maioria de pacientes com dengue, número que caiu nos dias 19 e 20.
Para se ter uma ideia, a covid-19 hoje não é mais uma preocupação: não há nenhum paciente internado com a doença na instituição hospitalar. Já o número de pessoas hospitalizadas por dengue chegou a sete em determinado momento, e eram três na manhã desta terça – números considerados significativos para o hospital filantrópico de médio porte, que atende, além de Rodeio Bonito, as cidades de Pinhal, Cristal e Novo Tiradentes.
— O volume maior agora é de pacientes de Rodeio Bonito, grande parte com dengue. A pessoa vem para tomar uma dipirona, baixar a febre, tomar soro — explica o diretor-administrativo, Ivan Deliberalli.
Deliberalli garante que o hospital tem conseguido dar conta da demanda, mas afirma que, hoje, a dificuldade está na aquisição de soro fisiológico e de dipirona — muito usados pelos pacientes acometidos pela doença causada pelo Aedes aegypti. Os fornecedores afirmam não haver embalagem para o soro e matéria-prima para o analgésico:
— A demanda a gente atende, o que está nos preocupando é que a gente não está conseguindo comprar medicamentos. A gente tem todos os itens, mas se continuar esse volume, se não conseguir adquirir, vai ter dificuldade. Atualmente, eu consigo para mais uns 10 ou 15 dias.
O empresário Cleiton Sartori, 35, procurou a Associação Hospitalar São José nesta segunda-feira (21), nove dias após testar positivo para dengue. Para verificar o risco de sobrecarga do fígado, ele foi um dos pacientes que passaram a noite internados no local. Ele conta que nunca viveu uma situação parecida.
— Moro há 12 anos (na cidade) e nunca tinha vivido algo do tipo. A gente estava preocupado com covid, e apareceu a dengue, do nada. Preocupa bastante, porque tu fala na cidade e todo mundo está afastado, não tem gente, o hospital está lotado — relata.
Por volta das 20h de segunda, oito pessoas aguardavam do lado de dentro da emergência e outras cinco do lado de fora. Moradora da vizinha Pinhal, a dona de casa Rosimari Rodrigues de Souza, 48 anos, foi ao local acompanhada do marido João Batista, 50. A mulher testou positivo para dengue cinco dias antes – o marido e o filho João Guilherme, 15, também se infectaram e já se recuperaram.
— Dor no corpo, dor na cabeça, febre, e o que está me incomodando é essa parte das vistas. Faz 11 anos que moro em Pinhal e nunca tinha vivido algo assim. Preocupa muito, porque meu marido e filho já tiveram, e no meu filho foi horrível, trouxe umas três vezes para o hospital. Não dormia direito por causa dele. E é uma coisa que não tem vacina: é só capricho mesmo — relata.