Uma contradição atravessa o Rio Grande do Sul: enquanto a adesão à segunda dose da vacina contra a covid-19 é semelhante à de países europeus, o Estado vem caindo no ranking nacional de melhor cobertura vacinal. Adultos acima dos 40 anos e idosos atingiram a meta de 90% de comparecimento, mas jovens, adolescentes e crianças têm desempenho muito abaixo.
Cerca de 77% de todos os gaúchos tomaram duas doses e 37,5%, o reforço. Ao longo do primeiro ano de vacinação, o Rio Grande do Sul teve a segunda maior adesão à segunda dose do país. No entanto, caiu e agora está em sétimo lugar, atrás de São Paulo, Piauí, Paraíba, Paraná, Santa Catarina e Ceará, segundo dados do portal coronavirusbra1.github.io.
O comparecimento é menor quanto mais jovem é o gaúcho, mostram dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS). A meta do Ministério da Saúde de vacinar 90% de cada público-alvo começa a deixar de ser atingida nos gaúchos abaixo dos 40 anos, como mostra o gráfico a seguir. Segundo especialistas, isso indica que a busca pela vacina ocorre quanto maior o medo de adoecer.
Enquanto 99% dos idosos de 70 a 74 anos tomaram duas doses, a proporção cai para 78% entre 20 e 24 anos. Em menores de idade, que dependem da autorização dos pais, a adesão é ainda menor: entre adolescentes, menos de 70% e, entre crianças, sequer chega a 10%, ainda que nem todas estejam aptas para a segunda dose.
Em todo o Estado, 663,5 mil pessoas estão com a segunda dose atrasada - destas, 108,5 mil são crianças de cinco a 11 anos e cerca de 110 mil são adolescentes. Há, ainda, 2,9 milhões de gaúchos de todas as idades com atraso na terceira aplicação.
Em entrevista a GZH, Tani Ranieri, chefe da Vigilância em Saúde do governo do Estado, afirmou que um dos fatores para a queda do Rio Grande do Sul no ranking nacional de vacinação ocorre devido à abstenção de adolescentes.
— Nossa cobertura vacinal para segunda dose na população acima de 18 anos é de 90%, o que é excelente, mas em adolescentes está bem baixa. E temos um reflexo, sentido também a nível nacional, da onda de adolescentes e adultos jovens que contraíram covid, o que atrasou a segunda dose em 30 dias. Também existe a falsa ilusão nas pessoas de que, se tiveram covid, estão protegidas, o que é inverdade, porque a proteção da vacina é muito maior do que a adquirida pela infecção — analisa Ranieri.
O consenso entre especialistas ouvidos pela reportagem é de que o receio de pais é o grande entrave para melhorar a vacinação entre crianças e adolescentes. O médico Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), diz que, na pandemia, um estranho fenômeno se desenhou: adultos se vacinam mais e crianças, menos — algo jamais visto no Brasil.
— Normalmente, vacinamos bem crianças e temos grande dificuldade de convencer os adultos. Agora, pais estão protegidos, mas não seus filhos. O que parece contrassenso é reflexo de insegurança e de uma campanha de desinformação. O pai que deixa de vacinar o filho não faz isso porque quer ver seu filho doente, faz porque está inseguro, impactado pela disseminação de notícias falsas — diz Kfouri.
A psicóloga Tatiane Vianna, integrante da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa) e especialista em crianças e adolescentes, reflete que, frente ao medo de morte dos filhos, pais podem subverter a lógica e encontrar uma estranha fuga tranquilizadora: em vez de se preocuparem com a covid-19, que é invisível e pode estar em qualquer lugar, direcionam o receio às vacinas, sobre as quais é possível controlar a aproximação.
— É tão pavoroso para um pai pensar que seu filho possa estar em risco de vida, e essa pandemia foi assustadora mesmo, que o mecanismo que surge para não deparar com esse medo é o negacionismo. Isso é baseado em ideias que estão em circulação na sociedade, alimentadas por algumas autoridades. Pode ser mais fácil pensar que você está protegendo o filho contra a vacina do que contra a covid, que é um vírus invisível. Conviver com a covid no dia a dia pode ser assustador — diz a psicanalista.
Jovens adultos buscam menos a segunda dose por sentirem que sua saúde está no auge, mas por que adolescentes estão mais vacinados do que crianças? Uma hipótese é a afirmação da personalidade juvenil.
— A baixa vacinação das crianças precisamos atribuir à responsabilidade dos pais. Os adolescentes, embora também estejam sob tutela, reivindicam seu espaço próprio, então muitos deles podem falar em nome próprio e reivindicar: quero a vacina — acrescenta Vianna.
Médico, presidente da Sociedade Gaúcha de Infectologia e chefe da Infectologia da Santa Casa de Porto Alegre, Alessandro Pasqualotto afirma que, em um momento no qual o uso de máscaras em ambiente fechado é discutido e mesmo desobrigado em algumas cidades ou Estados, governos devem criar políticas para aumentar a adesão da população à segunda e terceira dose, sob risco de piora da pandemia.
— O preço de liberar as máscaras é ter alta vacinação. Uma sociedade que quer ter liberdade precisa estar bem vacinada. Precisamos ter foco nas populações que se vacinam menos. Sinto falta de uma campanha pública mais forte direcionada a quem não tomou segunda dose, incluindo crianças. Eu queria ver campanha na televisão, no jornal, na rádio e em outdoor — diz Pasqualotto.
Uma forma de combater a desinformação é desenvolver campanhas que dialoguem com jovens adultos, adolescentes e crianças — trazendo, por exemplo, artistas, influenciadores e personagens que convoquem os grupos a se vacinar e divulguem estatísticas sobre segurança e eficácia dos imunizantes, diz o médico Renato Kfouri.
— Nas vacinas de rotina, os programas de sucesso são aqueles com vacinação na escola, onde está o adolescente. Esperar ele ir à unidade de saúde não dá resultado. Mas hoje não precisamos focar a vacinação em um só grupo, já temos vacinas para chamar os idosos para a terceira dose, os adultos para a segunda e as crianças para entrarem na vacinação — acrescenta o infectologista pediátrico.
O Ministério da Saúde afirmou a GZH que, para incentivar a vacinação infantil, veiculou campanha publicitária na TV, rádio, mídias externas e internet. Cita que divulgou conteúdo no próprio site e em suas redes sociais, “além de entrevistas e coletivas de imprensa para esclarecimentos acerca do tema”. Acrescenta, por fim, que o incentivo à vacinação infantil “também é de responsabilidade de Estados e municípios”.
O vacinômetro de Porto Alegre indica que 61,5% dos adolescentes de 12 a 17 anos já tomaram a segunda dose, abaixo da média estadual. A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) informa que oferece o agendamento da vacinação por aplicativo, medida focada nos mais jovens, que têm intimidade com redes sociais e internet.
A prefeitura ainda cita que oferece vacinação contra a covid-19 à noite, no fim de semana e ainda conta com o Rolê da Vacina, que aplica em diferentes locais da cidade, incluindo escolas de samba.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES) foi contatada para explicar quais ações desenvolve para melhorar a vacinação de crianças e adolescentes, mas não retornou.
Maicon Lemos, presidente do Conselho dos Secretários Municipais da Saúde do Rio Grande do Sul (Cosems) reconhece que os municípios têm tido dificuldades para a segunda dose de jovens e adolescentes. Segundo ele, o gargalo está na faixa dos 12 aos 35 anos.
– Para este público, o que temos acompanhado como estratégia dos municípios, são ações de ir ao encontro dos jovens com unidades móveis nos bairros, retorno das vacinas nos shoppings. Com a melhora dos indicadores, tendem a surgir novas iniciativas em eventos voltados para este público – destaca Lemos.
Por que as pessoas têm medo de se vacinar?
Entender os motivos que explicam a hesitação vacinal ajuda a buscar formas de romper o receio e melhorar as taxas de vacinação. Um estudo recém publicado no International Journal of Infectious Diseases e produzido pela Universidade de Harvard com o Hospital Infantil de Boston, nos Estados Unidos, se debruçou no assunto.
Os pesquisadores entrevistaram pela internet 757,6 mil pessoas de dezembro de 2020 a junho de 2021 para investigar quem havia se vacinado e, entre quem recusara, quais os motivos.
O principal motivo alegado para não se vacinar era o entendimento de que as vacinas contra a covid-19 são novas e supostamente não haveria dados suficientes. Depois, estava falta de confiança nos governos e em cientistas. Por fim, entrevistados também afirmaram que o coronavírus é “uma ameaça exagerada” ou que já pegaram a doença, portanto, não precisariam tomar vacina — alegação equivocada, uma vez que imunizantes aumentam a proteção e existe reinfecção.
Como melhorar a adesão de crianças e adolescentes à vacinação?
- Levar a vacina às escolas .
- Desenvolver campanhas publicitárias em rádios, canais de televisão, jornais , redes sociais e outdoors.
- Convocar artistas, influenciadores e personagens populares entre crianças e adolescentes para se vacinar.
- Buscar ativamente os adolescentes e crianças que não foram vacinados ou não receberam a segunda dose.
- Estimular parcerias com a sociedade civil, como clubes, escolas privadas e igrejas, para oferecer vacina às crianças e adolescentes.
- Avisar adolescentes sobre os prováveis efeitos colaterais - assim, não ficarão surpresos se tiverem dor de cabeça ou dor no braço e estarão mais dispostos a voltar para as próximas doses.
- Obrigar redes sociais a reduzir o alcance de páginas e produtores de conteúdo que divulguem mentiras e espalhem boatos sobre vacinas.
- Abrir postos de saúde à noite e aos fins de semana.
Fontes: Cartilha Desafios da Cobertura Vacinal em Pediatria, elaborada pela Sociedade Brasileira de Pediatria; Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos; artigo The impact of Facebook’s vaccine misinformation policy on user endorsements of vaccine content: An interrupted time series analysis; médicos Renato Kfouri e Alessandro Pasqualotto