Depois de um ano no qual a covid-19 colapsou hospitais brasileiros, o médico infectologista Alexandre Prehn Zavascki, 47 anos, avalia que a vacinação e a continuidade de algumas restrições devem evitar novo pico de mortes no país em 2022. Haverá, no entanto, risco de piora se novas variantes do vírus surgirem. Filho do ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki, falecido em acidente de avião em 2017, Alexandre é infectologista no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Após integrar o comitê de cientistas que assessorava o governo Eduardo Leite (PSDB) na tomada de decisões durante a pandemia, Zavascki abandonou o posto por discordância das medidas adotadas. Nesta entrevista, ele avalia o passado e projeta o futuro da atual crise sanitária no Estado e no país.
Fechamos o segundo ano da pandemia de covid-19. Ao olhar para trás, o que o Brasil acertou e errou neste 2021?
O grande erro de 2021 veio do fim de 2020, quando houve relaxamento bastante grande com hospitalizações em baixa, mesmo sem vacina e com número de casos muito alto. Não tivemos a visão do Brasil como um todo, de que há deslocamento de pessoas. No Rio Grande do Sul, houve detecção da variante Gama e não tomamos nenhuma medida para dificultar a disseminação tão rápida. Aí tivemos aquela situação de fevereiro e março, que se estendeu até abril, uma verdadeira guerra nos hospitais, com colapso, falta de leitos e muitas mortes evitáveis. Esse foi o grande erro do ano. Mas, depois, se seguiu um acerto. Medidas de proteção, como o uso de máscaras e a restrição de número de pessoas em determinados locais, se estenderam por bastante tempo, ao contrário de outros países. Ao liberar o uso de máscaras, depois não se recupera se for preciso voltar atrás. Não houve grande estrago da variante Delta no Brasil pela grande aderência à vacinação, pelo percentual de pessoas que recebeu só uma dose e teve covid prévia, além de certo hábito criado por boa parte da população de usar máscaras.
O que seguimos errando no combate à pandemia e precisamos mudar urgentemente?
Em nível nacional, a gente continua errando. Há contrainformação ou mensagem dúbia, como dizer que vacina é perigosa ou fazer deboche de quem tomou vacina e pegou covid. Em nível estadual, há uma falta de investimento em informação para a população. Poderíamos ter evitado muitas infecções novas se as pessoas soubessem que a vacina, neste momento, protege contra o agravamento, mas não necessariamente contra a infecção e a doença mais leve. A maioria dos médicos, inclusive, sequer sabia disso. Acreditavam que, vacinados, estariam completamente imunes a qualquer tipo de invasão do coronavírus. Há pouca conscientização sobre como se dão as formas de contágio e quais são as medidas de proteção. As pessoas não são orientadas a abrir janelas. Isso é algo tão simples e que poderia fazer efeito enorme.
Como o senhor avalia a gestão do ministro Eduardo Pazuello e a do seu sucessor, Marcelo Queiroga, neste ano?
A do Pazuello foi péssima. Era um ministro sem nenhum conhecimento técnico e que não teve a postura que se esperaria para um ministro de Estado em uma pasta tão importante no meio de uma pandemia. A CPI inclusive investigou a questão de colocar visões ideológicas da equipe governante acima dos interesses da população. Havia a expectativa de que o Brasil seria um caso de sucesso de vacinação no mundo, mas houve claramente um obstáculo para o início da vacinação. Em relação ao Queiroga, inicialmente se poderia esperar que ele, por ser médico, teria noção maior do impacto de certas medidas. Mas vimos que ele enfrentou bloqueios por uma corrente ideológica e não técnica que se instalou no Ministério da Saúde. Vemos, mais recentemente, uma adequação cada vez maior a essa corrente ideológica, inclusive com discurso pobre e agressivo. Isso no país que, neste ano, mais sofreu com mortes pela doença.
O senhor entende que o Brasil foi o país que mais sofreu neste ano na pandemia?
Sim, o Brasil foi o país que mais sofreu. A Delta, na Índia, foi algo muito impactante, mas o Brasil sofreu por muito tempo. Somente na segunda metade do segundo semestre é que conseguimos realmente respirar com mais tranquilidade. O impacto daquela onda de março se estendeu até agora, não só pela covid, que matou muita gente, mas porque desestruturou serviços hospitalares e gerou demanda enorme de outras doenças. Impactou até na rotatividade de profissionais da saúde.
Em nível nacional, a gente continua errando. Há contrainformação ou mensagem dúbia, como dizer que vacina é perigosa ou fazer deboche de quem tomou vacina e pegou covid. Em nível estadual, há uma falta de investimento em informação para a população. As pessoas não são orientadas a abrir janelas. Isso é algo tão simples e que poderia fazer efeito enorme.
Qual sua avaliação sobre a gestão da epidemia no Rio Grande do Sul?
Por um tempo, participei do Comitê Científico do governo do Estado. Mas, no fim de 2020, vi que, embora houvesse pessoas excelentes, coordenadas por uma pessoa muito capacitada e que sabia ouvir, o (secretário Luis) Lamb, isso não chegava ao poder decisório. Praticamente nenhuma decisão passou pelo Comitê Científico antes de ser tomada. As decisões eram tomadas e só aí nos perguntavam: o que vocês acham disso? O Comitê Científico era comunicado depois. Aquele esquema não funcionou. Saí no início de janeiro de 2021. Depois, houve a inação a partir da detecção de Gama em Gramado. Deveriam ter agido diante dessa informação. Mas não. E assim foi a tônica do Estado: o comitê decisório não passava aprofundadamente por questões científicas. A volta às aulas, por exemplo: víamos exposição de um conhecimento primitivo da questão da transmissão, e isso deixava a todos nós, avaliadores, inseguros. Um bom acerto foi não ter aderido, por pressão, à liberação de máscaras. E ter feito liberação gradual de eventos. Ou seja, não foi tudo em uma canetada só. Essas foram pequenas mensagens, indiretas, de que a pandemia não acabou.
E em Porto Alegre?
Temos um prefeito que começou querendo liberar “kit covid” nos postos de saúde e terminou vacinando toda sua população. Houve uma transformação. Se alguém fez propaganda de boa informação foi a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, que divulgava informação sobre uso de máscara e da Delta, em linguagem acessível, o que não se viu em nível estadual e muito menos federal.
A Ômicron chegou. Nossa situação vai piorar? O quanto o senhor está preocupado?
Uma coisa é a Ômicron se espalhar em uma população pobremente vacinada, como na África do Sul. No Brasil, temos um percentual bem maior de vacinação, incluindo de três doses, além de uma grande exposição prévia a uma variante que nenhum outro lugar do mundo teve como predominante. A proteção (natural) gerada pode ser benéfica contra uma nova variante. Agora que passaram mais semanas, vemos que, aparentemente, não se observa taxa de hospitalização tão grande com a Ômicron. Mas isso não quer dizer seja menos agressiva. Ela pode estar afetando uma população previamente infectada e/ou vacinada. Se a Ômicron chegar em uma população plenamente suscetível ou uma população de idosos e imunossuprimidos que já perderam sua proteção pelo tempo de vacinação, é possível que faça quadros graves.
Precisamos de ações mundiais e de um maior número de pessoas vacinadas no menor tempo possível. O problema da vacinação escalonada é ter bolsões de não vacinados, onde o vírus se multiplica. Daqui a pouco, haverá uma nova variante que reduzirá a proteção de quem está vacinado.
A Pfizer anunciou que duas doses protegem contra doença grave, mas há menor proteção contra a infecção. Com a dose de reforço, a Ômicron é “anulada”. Isso deve acontecer também para CoronaVac, AstraZeneca e Janssen?
O dado de hospitalização é preliminar. Os dados publicados até agora são de que os níveis de anticorpos neutralizantes caem bastante com a Ômicron em pessoas que tomaram duas doses. A partir daí, você infere que as pessoas terão maior risco de serem infectarem, e isso a gente está observando: muitas infecções em pessoas vacinadas. Anticorpos neutralizantes são muito importantes para se prevenir a infecção, mas não necessariamente têm correlação com proteção para o adoecimento grave. O dado epidemiológico que vemos é que a proteção para o adoecimento, que depende de outros braços do sistema imunológico, como a imunidade celular, mantém-se preservada.
Já foi detectada nova linhagem da Ômicron. Em algum momento pode surgir uma nova variante totalmente diferente e a pandemia recomeçar do zero?
O vírus erra (muta) nas cópias. Quanto mais cópias ele faz, mais erros vai ter. Precisamos de ações mundiais e de um maior número de pessoas vacinadas no menor tempo possível. O problema da vacinação escalonada é ter bolsões de não vacinados, onde o vírus se multiplica. Daqui a pouco, haverá uma nova variante que reduzirá a proteção de quem está vacinado.
Quando a pandemia vai acabar e virar endemia no Brasil? Falava-se que isso ocorreria no início de 2022. Com a Ômicron, qual a sua avaliação?
De certa forma, temos um nível endêmico, já, mas alto e muito suscetível a novos picos epidêmicos, não necessariamente de hospitalizações e mortes, porque temos boa parcela da população protegida, mas suscetível a surtos de infecção. Se pegarmos Porto Alegre, há bem menos vírus circulando, mas ele segue presente. Isso está configurando caráter endêmico. Só que nossa população está no primeiro ano da vacinação, não sabemos quanto tempo a proteção vai durar. Parte da população ainda usa máscaras. E como vai ser quando tirarmos as máscaras? É possível ter impacto epidêmico da Ômicron. Será na mesma intensidade de outros locais? Acho que será diferente.
Alguns cientistas dizem que pandemias vão ser recorrentes. o senhor acredita nisso? É algo já para a atual geração?
O principal fator para dizer isso é o comportamento do ser humano em sua relação com a natureza. A partir do momento em que você invade nichos não acostumados à presença do ser humano, há chances de encontrar viroses com potencial epidêmico e pandêmico. Quanto mais você invade a natureza, mais você se expõe. Isso já aconteceu na Bolívia, quando certos ratos invadiram espaços urbanos e passaram um vírus de febre hemorrágica para humanos. O desmatamento que ocorre na Amazônia, por exemplo, é um risco. Estima-se que haja arboviroses desconhecidas da gente. Por isso, não é questão de se vai ter pandemia, mas de quando vai ter. A influenza se rearranja com outros vírus, troca pedaços e faz um novo vírus. Vírus desconhecidos têm esse potencial.
Chegou a hora de suspender máscaras ao ar livre? Estudos mostram que a transmissão é muito pequena nesse ambiente.
Não sei se chegou a hora, mas é muito mais tranquilo agora ficar sem máscara ao ar livre. Se você diluir pessoas ao ar livre, estar sem máscara é relativamente seguro em momento de baixa circulação do vírus. Mas não basta só estar ao ar livre. Se você estiver ao ar livre com ajuntamento de pessoas, você já perde muito do efeito benéfico. O problema é passar a mensagem inteira para a população. Quando você diz que pode tirar a máscara ao ar livre, as pessoas tiram a máscara e se aglomeram. Um estádio de futebol lotado com pessoas sem máscara não é um ambiente seguro. Um show musical ao ar livre não é um ambiente seguro.
O governo do Rio Grande do Sul tornou obrigatória a presença de crianças em escolas públicas e privadas. Em Porto Alegre, não existe mais exigência de distanciamento entre as classes. O que o senhor acha dessas decisões?
Foram decisões temerárias no sentido de proteção às crianças e a quem é mais suscetível no núcleo familiar. São medidas mais fáceis do que fazer as adaptações ao longo de dois anos para melhorar escolas. Mas isso não é omissão apenas do poder Executivo; é também do Legislativo. Você não viu proposição para levantar a necessidade das escolas, o que poderia ser ampliado ou não.
O Cpers fez um levantamento.
Sim: não partiu do governo. Nos primeiros seis meses de 2020, quando se viu que a transmissão era predominantemente aérea, você tinha que ter implementado algumas medidas. Saiu um estudo na Suíça. Usando detectores de gás carbônico, compararam as escolas que tinham baixo nível de gás carbônico e aquelas que tinham mais. Como a gente elimina gás carbônico na respiração, se aumenta muito gás carbônico na sala significa que ela não está bem ventilada. As taxas de infecção foram muito maiores nas salas com alto nível de gás carbônico. No inverno suíço, muitos colégios tinham aberturas programadas da janela, apesar do frio, por alguns minutos. Alguém sugeriu isso aqui? Tirar o distanciamento de sala de aula significa aumentar a proporção de pessoas na sala, e isso tem impacto. Vi uma inação do governo para melhorar a estrutura das escolas. Não estou nem falando em colocar filtros de ar nas salas de aula, mas simplesmente abrir janelas, colocar um exaustor em salas sem janela. Ao longo de 2020 e 2021, poderia se ter feito isso. Não vai solucionar o problema das escolas, mas melhoraria.
É possível que precisemos de quarta dose. Mas eu não me arrisco a dizer se será a cada seis meses, pode ser até a cada dois anos. A contagem começou agora. Já aprendemos que a terceira dose faz uma diferença enorme. Mas não sabemos ainda quanto tempo dura essa diferença.
O que o senhor espera para 2022 em relação à covid?
Temos de aguardar o impacto da Ômicron. Espero eventualmente um surto epidêmico, mas não acredito que haverá surto de hospitalizações como tivemos em fevereiro e março. Vai ser difícil a transição de quando pode tirar a máscara, porque mesmo que tenhamos controlado o nosso ambiente o mundo todo não terá o mesmo nível de controle, então sempre haverá a possibilidade de entrada. Se está bem na minha região, mas fora dela está ruim, é preciso aumentar o sistema de vigilância epidemiológica. Deveríamos seguir testando mais gente para detectar casos novos. O Estado está se esforçando, o Lacen (Laboratório Central do Estado) faz um ótimo trabalho, mas a capacidade deles ainda é limitada. Precisamos ampliar em nível Brasil para fazer uma transição segura na retirada da máscara e termos uma vida mais tranquila. Vamos ver como será a transição.
Precisaremos de quarta dose?
É possível que sim. Mas eu não me arrisco a dizer se será a cada seis meses, pode ser até a cada dois anos. A contagem começou agora. Já aprendemos que a terceira dose faz uma diferença enorme. Mas não sabemos ainda quanto tempo dura essa diferença. Nosso ano dependerá do que acontecerá depois da terceira dose e como estará o ambiente à nossa volta.
O senhor é uma das vozes mais ativas no combate à pandemia, posicionando-se na arena pública. Aprendeu isso com seu pai, Teori Zavascki?
Até que não. O pai era uma pessoa muito discreta, sempre se manifestava pelos autos dos processos. Entrei no Twitter quando vi o mal que a desinformação causava. Escutava uma enxurrada de perguntas de todas as pessoas, muitos colegas, com questões muito absurdas. Pensei em botar em algum lugar o que pensava sobre alguma coisa. Eu queria divulgar informações corretas, conscientizar.