O fechamento de fronteiras apenas a viajantes de países da África para conter a entrada da variante Ômicron vem despertando acalorados debates entre políticos e cientistas. GZH ouviu três especialistas em saúde sobre o assunto – duas criticam a medida e uma é a favor – e um analista das relações internacionais.
Basicamente, três ações foram tomadas pelo mundo: proibir a entrada de viajantes de qualquer país, como fizeram Israel, Marrocos e Japão; impedir apenas quem veio ou transitou por países da África, caso do Brasil, Reino Unido e França; liberar a entrada de qualquer turista, independentemente da origem, mas incrementar restrições, exigindo vacinação em dia, teste negativo e quarentena em hotel conveniado ao governo.
No Brasil, o governo Jair Bolsonaro seguiu recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e fechou as fronteiras para estrangeiros que passaram, nos últimas 14 dias, por seis países africanos: África do Sul, Botsuana, Eswatini (antiga Suazilândia ), Lesoto, Namíbia e Zimbábue. Na quarta-feira (1º), a agência orientou incluir mais quatro países: Angola, Maláui, Moçambique e Zâmbia - o Planalto ainda não acatou.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) é contra o fechamento de fronteiras: argumenta que as restrições na fronteira têm um “papel leve na redução de casos”, enquanto “representam um grande fardo para vidas e meios de subsistência” na região. No lugar, diz a entidade, nações deveriam doar vacinas aos países africanos.
A Ômicron está presente até agora em cerca de 30 países, de acordo com o portal Gisaid, que compila dados de vigilância genômica. Os países com mais casos registrados são África do Sul, Reino Unido, Gana, Botswana e Alemanha — embora haja provável subnotificação em nações africanas, uma vez que identificar variantes em circulação requer alto investimento.
Para entrar no Brasil, o governo federal exige resultado negativo de exame RT-PCR, sem necessidade de vacinação. A Anvisa recomenda a exigência de vacinação na entrada, mas o a medida não foi adotada. O medo da agência reguladora é de que o Brasil se torne destino de turismo internacional para negacionistas e viajantes que não se vacinaram em seus países de origem. O Ministério da Saúde não confirmou a GZH se estuda cobrar vacinação de turistas.
Qual medida é mais efetiva?
As três especialistas ouvidas pela reportagem concordam que o fechamento completo de fronteiras para qualquer viajante, independentemente da origem, seria teoricamente a medida mais efetiva para evitar a entrada variantes. Porém, reconhecem a difícil aplicação. Marrocos, Israel e Japão optaram por esse caminho.
Se a medida é possível em países-ilha como Austrália, Japão e Nova Zelândia, para o Brasil, uma nação de dimensões continentais, é inviável.
Também há consenso de que o Brasil deveria oferecer mais testes gratuitos à população – em nações como Alemanha, o governo libera cupons para a população, mesmo sem sintomas, se testar ao menos uma vez por semana em centros de testagem, farmácias e tendas instaladas em locais de grande movimentação.
Ainda há concordância de que é preciso aumentar o sequenciamento das amostras positivas para identificar quais variantes circulam em território nacional. Hoje, poucos laboratórios e universidades do país fazem isso, devido ao alto custo.
A microbiologista Aline Stipp, professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), é a favor do fechamento temporário de fronteiras de países africanos para barrar a entrada da nova variante enquanto o governo ganha tempo para se organizar internamente a fim de reforçar estruturas de vigilância.
— Quanto mais restringirmos a entrada de pessoas contaminadas, mais diminuímos a circulação do vírus. Hoje faz sentido fechar a fronteira para determinados países com mais casos dessa variante e permanecer aberto a outros países com passaporte vacinal e apresentação de teste PCR. Já existe sequenciamento genético no Brasil. Poderia ser investido mais no sequenciamento e capacitar outros laboratórios. Estados e governo federal teriam que investir em sequenciamento — diz Stipp.
Para a microbiologista, o governo pode eventualmente expandir o fechamento de fronteiras a outros países - incluindo, europeus – se houver piora da epidemia por lá.
Adota visão distinta a epidemiologista Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), para quem há pouca efetividade em fechar a fronteira para países africanos e liberar a entrada de viajantes de países europeus com casos de Ômicron.
— Olha o quadro europeu, já tem Ômicron em vários países. Para eles, a fronteira não está fechada, enquanto está para países africanos com baixíssimos casos, como Moçambique. O ideal seria exigir passaporte vacinal, embarcar com teste negativo, testar quando chegar no Brasil e o governo credenciar hotéis para a pessoa ficar isolada e a pessoa pagar a estadia. Os países que mais controlaram a pandemia fizeram isso — diz Kerr.
Para a epidemiologista Alexandra Boing, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a Ômicron foi identificada em vários países e, portanto, fechar apenas a fronteira contra nações africanas carece de sentido.
O mais efetivo, diz, é testar antes da chegada, colocar em quarentena viajantes, independentemente da origem, reforçar as medidas de prevenção e fortalecer a vigilância genômica brasileira — isto é, sequenciar mais amostras de casos positivos para descobrir qual variante está presente.
— O Brasil cometeu o mesmo erro em relação às outras variantes. Com o aumento de circulação de pessoas e a chegada da temporada de verão e festas de final de ano, as medidas precisam ser reforçadas, caso contrário, a disseminação do vírus continuará alta e mais rapidamente vamos ter casos autóctones da Ômicron e até de novas variantes — diz Boing, também integrante do Observatório Covid-19.
A epidemiologista reforça que o país deveria focar ainda em ampliar a cobertura vacinal, manter o uso de máscaras ao ar livre e reforçar a rede de vigilância genômica para identificar a circulação de variantes:
— O momento deve servir para qualificar as ações, como por exemplo ampliação da testagem, inclusive com autorização e disponibilização de autotestes, como é usual em vários países.
Medida seletiva
O fechamento de fronteiras apenas para países africanos é uma medida seletiva, defende André Luiz Reis da Silva, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em África.
Ele observa que cientistas aprenderam com os erros do passado, mas observa a diferença de reação: se países levaram duas semanas para fechar fronteiras a viajantes de países africanos por conta da Ômicron, quando a variante Alfa surgiu no Reino Unido, em setembro do ano passado, o Brasil decidiu impedir voos oriundos de território britânico apenas em dezembro.
— Esses fechamentos reproduzem as desigualdades das relações internacionais. Se fosse uma variante que surgiu em um país mais relevante do ponto de vista econômico, talvez, essa medida não tivesse sido tomada. O cálculo para fechamento de fronteira é sanitário, mas também econômico e político — diz Silva.