Uma mulher de mais de 70 anos está internada no Hospital Nossa Senhora da Conceição, em Porto Alegre, em decorrência de complicações da infecção por coronavírus. Dependente de suporte de oxigênio, não comenta um aspecto fundamental de seu histórico de saúde recente: a decisão de não se vacinar contra a covid-19. Evolui bem e não deve precisar de transferência para o Centro de Tratamento Intensivo (CTI), mas é muito provável que teria evitado a hospitalização caso houvesse procurado uma unidade de saúde meses atrás, quando sua faixa etária foi habilitada a receber as doses.
Para o médico infectologista André Luiz Machado da Silva, que atua em leitos de enfermaria do Conceição, a idosa é uma paciente ilustrativa da fase atual da crise sanitária deflagrada mundialmente em março do ano passado:
— Começamos a viver uma pandemia dos não vacinados e dos primeiramente imunizados.
O infectologista integrou o Diário do Front, projeto de Zero Hora, Rádio Gaúcha e GZH que apresentou relatos de três profissionais da linha de frente durante os piores momentos da pandemia, em 2020 e 2021. A reportagem voltou a procurá-los para saber qual é o perfil dos internados neste momento de queda ou estabilização nos índices de novos casos e óbitos. Toda a população acima de 12 anos já foi chamada para receber os imunizantes, e está em andamento a fase de aplicação da terceira dose para públicos específicos.
Além de André, também participaram da iniciativa que mostrou, a leitores e ouvintes, histórias de perdas, alegrias e superação, a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento, na Capital, e a enfermeira Isis Marques Severo, do CTI do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que agora atua no Serviço de Educação em Enfermagem da instituição.
Negar a vacina tem significado adoecer com mais gravidade e até morrer. O outro grupo mais suscetível, como destaca André, é formado por quem se imunizou no começo do ano e agora necessita do reforço. A CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan, de São Paulo (SP), ostenta o inegável mérito de ter sido o primeiro imunizante a chegar aos brasileiros, mas já se sabe que a proteção da fórmula começa a decair entre quatro e seis meses após a segunda dose.
— Mesmo sendo uma vacina com resposta imunológica que já está diminuindo, a CoronaVac ainda protege de forma bem significativa esses doentes. Não podemos crucificá-la porque, de fato, ela protege a população — ressalta o médico.
Na área dos leitos de isolamento do Serviço de Infectologia do Conceição, 75% dos pacientes tiveram infecção nosocomial — ou seja, foram internados por outras razões e acabaram acometidos pelo coronavírus lá dentro. Apesar do número expressivo, a situação não se configura como surto (o hospital vem rastreando os contatos dos casos confirmados com o objetivo de identificar surtos).
— Não necessariamente esses que se infectam no hospital precisariam ficar internados por covid. Eles estão por diabetes descompensado, insuficiência cardíaca... É natural ter esse quantitativo de infecções nosocomiais porque ocorre um certo relaxamento dos cuidados nas visitas. Os familiares não usam máscara de forma adequada ou usam máscaras ruins — explica André, frisando que a visitação, que chegou a ser suspensa devido a um surto na instituição entre agosto e setembro, é importante na recuperação. — Tem toda uma questão social envolvida na evolução dos pacientes.
Ainda sobre os doentes que se infectaram após a internação, o infectologista frisa que o perfil predominante é de pessoas acima dos 60 anos, e os vacinados representam 80% — o que contribui para quadros mais leves.
— Só que a maioria tomou CoronaVac. Percebe-se que é uma população que precisa da dose de reforço porque tem uma performance de proteção comprometida — pontua.
Quanto aos demais 25% dos pacientes covid no setor, trata-se de infectados do lado de fora, na comunidade — a grande maioria por ter escolhido não receber nenhuma dose, como a idosa citada no início deste texto.
— Faz parte da anamnese (conversa entre médico e paciente) perguntar do histórico vacinal. Eles assumem que não se vacinaram, mas não é uma coisa espontânea. Aí todo mundo acende uma vela para todos os santos. É normal eles se arrependerem e prometerem tudo, mas não consigo dizer se esse arrependimento, de fato, vai se transformar em uma ação de vacinação depois — relata André.
Na comparação com os piores estágios da pandemia, que superlotou hospitais e provocou falta de insumos e suspensão de procedimentos eletivos, a diferença mais evidente é a diminuição do número de pacientes com covid-19. Hospitais e postos conseguiram reduzir as áreas antes improvisadas para dar conta da altíssima demanda, mas a conduta ainda é de cautela diante do que pode ocorrer. No Moinhos de Vento, há 17 leitos para covid-19 no CTI, 16 dos quais estavam ocupados na quinta (28) — no pico deste ano, eram quase 60, além de outras áreas que receberam pacientes graves.
— Conseguimos trabalhar com esses 17 leitos de forma muito tranquila, mas ainda não conseguimos desmobilizá-los pela demanda — diz a intensivista Roselaine.
Caiu bastante, segundo a médica, a internação de jovens, e os idosos voltaram a representar a maior parte dos doentes críticos. De 15% a 20% dos ocupantes de leitos no CTI nos últimos dois meses não estavam imunizados.
Para Roselaine, é fundamental que as pessoas se mantenham vigilantes.
— A sensação de que está tudo sob controle é pelo que já vivemos em relação a agora. Claro que a proporção diminuiu bastante, mas a doença ainda existe. A máscara é fundamental para não disseminar o vírus. A vacina pode dar uma falsa sensação de segurança, mas posso não manifestar sintomas e contaminar outras pessoas. O comportamento ainda precisa ser o mais adequado possível para que possamos voltar lentamente à vida normal — apela a médica.
André se diz esperançoso. O infectologista não acredita que haverá um novo pico.
— Mesmo com todas as falhas do principal mandatário do país, temos um bom desempenho na vacinação. O Brasil está conseguindo driblar a pandemia por ter técnicos comprometidos com a campanha de imunização. Percebo que estamos no caminho certo — avalia o médico, que vislumbra a pandemia se tornando uma endemia, caracterizada por focos da doença, em 2022.