O Diário do Front 2021 começou em março, durante o pior momento da pandemia no Rio Grande do Sul, e se encerra em 1º de julho. Confira, abaixo, os relatos da enfermeira Isis Marques Severo, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Também participaram da iniciativa a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, do Hospital Moinhos de Vento, e o médico infectologista André Luiz Machado da Silva, do Hospital Conceição, ambos também na Capital.
Tragédia sem precedentes, a pandemia de coronavírus, que agora ataca de forma implacável a população e o sistema de saúde do Rio Grande do Sul, motivou o Diário do Front ao longo de seis meses em 2020.
Dado o momento atual, o projeto de GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora, que mostra o dia de dia de profissionais da linha de frente, está sendo retomado para revelar o que vem acontecendo em alguns dos mais importantes e sobrecarregados hospitais da Capital.
A composição do time é a original: participam o infectologista André Luiz Machado da Silva, 44 anos, do Hospital Nossa Senhora da Conceição, a enfermeira intensivista Isis Marques Severo, 41 anos, do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, 54 anos, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento.
— Um ano depois, temos pacientes bem mais jovens e também mais graves, muitos sem doenças prévias, que demandam uma carga de trabalho extremamente elevada da equipe, que já está cansada, física e emocionalmente. Eu não tive covid-19 desde o início da pandemia e sei que, se continuar me cuidando, vou cuidar também de quem está ao meu lado. Vou poder ajudar mais os nossos e cuidar também da minha família. Essa doença é a doença da compaixão, da empatia, por isso a importância do álcool gel, da máscara usada adequadamente e do distanciamento social — afirma Isis.
Um compilado dos relatos do ano passado pode ser conferido nestes três conteúdos: link 1, link 2 e link 3.
“Espero que logo possamos retomar a nossa vida como era antes”
Dia 30 de junho: 16h34min
“Participar do Diário do Front novamente foi uma oportunidade de seguir mostrando nosso trabalho dentro da UTI. Especialmente o da enfermagem, no sentido de trazer visibilidade para a nossa profissão. Seguir mostrando que realizamos cuidados de baixa a alta complexidade nos pacientes e que mesmo os gestos simples podem fazer toda a diferença na vida das pessoas.
Seguimos com pacientes jovens internados, que exigem cuidados complexos e uma alta carga de trabalho para toda a equipe. Seguimos resilientes. Reconhecemos que temos limites, mas que podemos superar barreiras, obstáculos.
Como futuro, eu espero que logo toda a população possa estar vacinada e que possamos retomar a nossa vida como era antes da pandemia.”
“Com cobertor e touca do Grêmio, paciente foi levado ao terraço para sentir o vento batendo no rosto”
Dia 21 de junho: 17h33min
“Hoje vou contar duas histórias que me marcaram na semana passada. Uma foi a de um paciente de 44 anos que foi internado por volta das 10h de sexta-feira (18), vindo do Interior.
Chegou saturando 60%, ou seja, com a oxigenação no sangue muito baixa (o nível normal é em torno de 95%). Ele precisou ser, imediatamente, colocado no pulmão artificial, sendo canulado para a ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea, na sigla em inglês).
Foram momentos tensos, de que participaram as equipes de cirurgia torácica, perfusão, enfermagem e medicina intensiva. Eram vários profissionais atuando.
Deu tudo certo. Hoje ele está melhor. Ainda em estado grave, segue no pulmão artificial, em ventilação mecânica e sedado, mas está bem melhor do que quando chegou.
Um registro que não posso deixar de mencionar é sobre o nosso paciente de 40 anos que gosta de Beatles e ficou 63 dias no pulmão artificial. Desde 8 de abril no Centro de Tratamento Intensivo, ele está agora em processo de reabilitação.
Na sexta-feira (18), ele foi levado pela equipe, composta por uma médica, uma fisioterapeuta, uma enfermeira e um técnico de enfermagem, até o terraço do nosso prédio para poder sentir o vento batendo no rosto. Para poder olhar a paisagem do final da tarde, que estava linda, com um céu rosado.
Ele foi transportado com ventilador mecânico e monitor cardíaco, na cadeira de rodas, com cobertores — o seu cobertor do Grêmio e a touca do time.
A expressão no rosto dele era de extrema alegria, de felicidade. Foi a imagem da vitória para ele, que é muito resiliente, e para toda a equipe, que segue motivada para os cuidados que fazem diferença na vida dos nossos pacientes.
Termino o meu registro aqui. Um beijo. Até mais.”
“Paciente de 57 anos movimenta apenas o pé esquerdo e se comunica com os olhos”
Dia 14 de junho: 19h31min
“Uma notícia maravilhosa que tenho para contar é que o nosso paciente de 40 anos (relatos de 7 de junho e 24 de maio) que estava havia 63 dias no pulmão artificial, em ECMO (oxigenação por membrana extracorpórea), foi decanulado na sexta-feira (11). Ou seja, ele foi retirado do suporte respiratório.
Foi o maior sucesso. Ele está melhorando e agora está em um processo de desmame gradual da ventilação mecânica.
Uma paciente que me chamou bastante a atenção hoje foi uma mulher de 57 anos, internada na emergência do hospital em 17 de maio. Os sintomas da covid-19 haviam começado em 14 de maio. Para o CTI, ela veio dia 21.
Até esse final de semana, ela estava sedada. Necessitou, na sexta-feira, de uma traqueostomia, procedimento cirúrgico feito com uma abertura no pescoço, na região da traqueia, que facilita a entrada de ar nos pulmões. No final de semana, retirou-se a sedação dela.
Hoje ela estava se conectando conosco com os olhos e obedeceu a comandos. Porém, está com uma força muito diminuída. Ela consegue movimentar apenas o pé esquerdo. Terá um trajeto longo de reabilitação e também a retirada gradual da ventilação mecânica.
Também na sexta-feira, Michel, meu marido, viajou para a Rússia, onde trabalha. Eu e João Miguel, nosso filho de quatro anos, estávamos, à noite, assistindo a uma live. Ele me surpreendeu com um momento muito carinhoso. Disse que me ama e que a gente é uma família, que nós estávamos escutando música, vendo música na live e fazendo isso agarradinhos. Ele fala ‘engarradinhos’. Eu disse:
— Está maravilhoso, né, filho?
E ele falou:
— Sim, mamãe! É que eu te amo muito!
Finalizo o meu relato por aqui. Um beijo.”
“Único paciente acordado se comunica por gestos e leitura de lábios”
Dia 7 de junho: 20h27min
“Uma das minhas surpresas hoje, após 15 dias de férias, foi ver que, dos 10 pacientes da minha unidade, sete ainda eram os mesmos de quando saí, confirmando um tempo de internação prolongado dos pacientes com covid-19. Todos seguem em ventilação mecânica e sedados.
O único paciente da unidade que consegue se comunicar conosco, por meio de gestos e leitura dos lábios, é aquele que está no pulmão artificial e que gosta de Beatles (relato de 24 de maio).
Seguimos na luta com nossos pacientes, firmes e resistentes.
Meu marido retorna sexta-feira (11) para a Rússia para trabalhar, e eu e João Miguel, nosso filho de quatro anos, estaremos nos adaptando novamente a uma rotina com o Michel em outro país. Sentiremos saudades. O que fica são os momentos bons juntos. Seguiremos nos falando, diariamente, por ligação de vídeo.
Hoje ocorreu uma situação engraçada. Michel me contou que foi entrar no elevador com o João Miguel, que olhou para o pai, começou a rir, rir, e disse:
— Papai, você se esqueceu da máscara!
Os dois voltaram, pegaram as máscaras e saíram protegidos. As crianças nos ensinam muitas coisas.
Bom, eu vou acabando aqui o meu registro.
Até mais. Um beijo.”
“Paciente em estado grave escutava Beatles e sacudia as pernas, dançando na cama”
Dia 24 de maio: 15h19min
“Fazendo um balanço dos últimos dias antes das minhas férias, vivenciei um turbilhão de experiências.
Lembro da história de um paciente de 40 anos que está internado no CTI desde 8 de abril. Em 9 de abril, devido a uma oxigenação muito baixa no sangue, ele necessitou de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), o chamado pulmão artificial. Está nesse suporte respiratório há 46 dias e em processo de desmame e reabilitação.
Todos os dias, a equipe trabalha conjuntamente para conseguir com que ele faça coisas simples, como, por exemplo, sentar com os pés para fora da cama. Parece simples, mas, no paciente em ECMO, em ventilação mecânica, com vários cateteres e medicamentos em bombas de infusão, acaba sendo uma tarefa que não é muito fácil. Exige a integração de vários profissionais, como enfermeiro, técnico de enfermagem, fisioterapeuta, médico intensivista e perfusionista, que é a pessoa que cuida do equipamento de ECMO durante toda essa mobilização.
Em uma noite recente, por volta das 23h, esse paciente escutava Beatles e sacudia as pernas, dançando na cama. A cena emocionou todos na unidade e repercutiu positivamente. A nossa UTI é embalada ao som de vários rádios doados. Cenas como essa dão esperança para seguir nessa luta diária.
Outra notícia feliz foi a chegada do Michel, meu marido, que está de férias do seu trabalho na Rússia e vai ficar uns dias no Brasil. Estamos curtindo coisas simples como almoçar juntos, escutar música, brincar pelo apartamento com o João Miguel (nosso filho), tomar um bom vinho. Essas coisas simples precisam ser muito valorizadas. Na pandemia, aprendi a valorizar ainda mais momentos como esses.
Espero que, ao retornar de férias, a situação esteja no mínimo igual, e não pior, apesar de estarmos preparados para isso.”
“UTI com 100% de ocupação: casos muito complexos, todos os pacientes em ventilação mecânica”
Dia 17 de maio: 20h08min
“Hoje, por volta das 8h, tínhamos 77 casos confirmados de covid-19 e 11 suspeitos internados no CTI. A minha unidade tem 10 leitos, está com 100% de ocupação, 70% dos pacientes são homens, 40% têm idade entre 29 e 50 anos. Todos estão dependentes de ventilador mecânico para respirar. São casos muito complexos.
Quatro deles, devido à falência renal, precisam de hemodiálise contínua, que fica por 24 horas e é necessária por vários dias seguidos. Outros três pacientes estão em oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), conhecido como pulmão artificial.
Três pacientes foram submetidos a um procedimento cirúrgico, à beira do leito, chamado traqueostomia — um orifício que é feito na garganta, sobre a região da traqueia, para facilitar a entrada de ar nos pulmões. Esse procedimento tem sido feito em pacientes que precisam ficar muito tempo em ventilação mecânica.
Para a realização desses procedimentos, contamos com o apoio da equipe de enfermagem do CTI e do bloco cirúrgico, cirurgiões torácicos, anestesistas, médicos intensivistas, além de outros colegas da equipe multidisciplinar. A unidade estava cheia.
Procurei, então, retratar minha manhã, que foi bastante movimentada.
Chegando em casa, João Miguel, meu filho de quatro anos, perguntou se eu estava melhor da dor nos ombros. Pediu para que eu me abaixasse, me deu um beijinho na região do pescoço e disse:
— É para melhorar, mamãe.
Então, eu sou cuidada em casa e cuido no hospital.
Um beijo. Até mais.”
“Paciente abriu o maior sorriso ao ver a luz do dia”
Dia 10 de maio: 20h23min
“Hoje cuidei de um paciente de 40 anos, sem doenças prévias, que teve o início dos sintomas da covid-19 no dia 23 de março. Ele foi internado no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital de Clínicas em 8 de abril. E, em 9 de abril, devido a uma piora respiratória, precisou de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), o chamado pulmão artificial.
Hoje, completaram-se 31 dias de ECMO, e ele começou a acordar da sedação. Conseguimos transferi-lo para um leito com janela, e ele abriu o maior sorriso ao ver a luz do dia.
Pode parecer uma coisa simples, mas faz toda a diferença na prevenção do delirium (síndrome que acomete doentes hospitalizados e afeta a cognição), na motivação para o tratamento, inclusive na motivação da equipe, que fica ainda mais feliz em ver nosso paciente se recuperando e feliz em enxergar a luz do dia.
Um outro motivo que me alegrou foi um recado que recebi pelo Dia das Mães. O recado estava na parede da unidade para todas as mamães que estão na linha de frente. Dizia assim: “Muito obrigada pela dedicação, resiliência, força e por um amor incondicional. Obrigada por serem resistência, mesmo diante do medo, da incerteza e de tanta dor e sofrimento. Mulheres guerreiras, vocês são o orgulho de seus filhos e de uma nação inteira”.
Assim eu completo meu diário, deixando essa mensagem para todas as mamães e as mamães que estão na linha de frente, assim como eu.
Um beijo. Até mais.”
“Cantamos e dançamos para a paciente. Ela sorriu, mesmo com o tubo na boca”
Dia 3 de maio: 17h11min
“Hoje, entre as pacientes de quem cuidei, estava uma mulher de 44 anos com história prévia de obesidade. Os sintomas da covid-19 começaram no meio de abril, e ela precisou ser internada em outra instituição em 27 de abril. No entanto, devido a uma piora respiratória, no dia 30, ela veio transferida para a nossa UTI no Hospital de Clínicas.
Ela está entubada, em ventilação mecânica, mas acordando da sedação. De manhã, precisávamos deixá-la mais acordada. Perguntamos se queria ouvir música, e ela disse que sim.
Selecionamos a rádio conforme o seu gosto. Ela gesticulava com a cabeça, (mostrando) se era a rádio que queria ouvir. O rádio em que colocamos música foi doado, o que está fazendo bem para muitos pacientes.
Fomos perguntando até ela escolher uma rádio em que tocava Os Barões da Pisadinha, bem no momento do refrão da música, “O coração precisa / Do amor da despedida / Do amor da despedida”.
Nós, que estávamos no boxe da paciente — eu, um fisioterapeuta e uma técnica em enfermagem —, começamos a fazer uma coreografia e a cantar. Ela abriu bem os olhos, sorriu, mesmo com o tubo na boca, levantou o bracinho para que pudéssemos pegar na sua mão e ficou ali conosco naquela alegria, cantando e vendo a nossa apresentação.
Foi emocionante. Com certeza, uma das cenas que vou levar para a minha vida. Ela está melhorando, e a música, o rádio estão ajudando muito.
Finalizo meu registro dizendo que a gente precisa disso, a gente precisa de amor. Hoje de manhã, acordei no meu horário de sempre para ir trabalhar. Um pouquinho antes, o João Miguel, meu filho de quatro anos, veio para o meu quarto. Parece que estava acertando o horário de eu acordar. Eu disse:
— Mas o que tu está fazendo aqui, guri, a essa hora?
E ele:
— Eu vim aqui para te amar, mamãe.
Então, é isso. A gente precisa amar mais, cuidar mais, ajudar mais.
Um beijo. Até logo.”
“Sol, vento, paisagem: paciente que esteve em estado gravíssimo foi levado ao terraço do hospital”
Dia 28 de abril: 16h28min
“Um paciente de 45 anos que esteve em estado gravíssimo chegou a usar oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) — suporte respiratório que funciona como um pulmão artificial — de 22 de março a 10 de abril.
Agora ele ainda está em ventilação mecânica, aprendendo a caminhar novamente, em franca recuperação. A equipe do turno da tarde conseguiu levá-lo até o terraço do prédio novo do Hospital de Clínicas, o anexo onde trabalhamos. Ele curtiu o sol, pegou um vento, curtiu a paisagem. Foi renovador, tanto para ele quanto para a equipe.
Outra excelente notícia é sobre uma paciente de 24 anos que, quando estava internada conosco, esperava um filho. Ganhou a bebê dentro do boxe da UTI. Esteve em estado muito grave, mas conseguiu ter alta para a unidade de internação e está em casa.
Recebemos a foto dela com o esposo e os filhos, sentados no pátio de casa, no solzinho, tomando chimarrão. A bebezinha no colo e o filho de cerca de cinco anos ao lado.
Essas imagens nos enchem de esperança e nos motivam para seguir nesta batalha que ainda não acabou. Mas vamos lá.
Um beijo. Até mais.”
“Minha unidade tem pacientes com idade entre 29 e 44 anos”
Dia 26 de abril: 18h05min
“Hoje eu gostaria de dizer que ainda continuamos com uma carga de trabalho bastante elevada no Centro de Tratamento Intensivo. Minha unidade, que tem 10 leitos, segue com 100% de ocupação. A maior parte dos pacientes internados tem idade entre 29 e 44 anos.
Mas, apesar da nossa carga de trabalho elevada e da gravidade dos casos, conseguimos realizar, todos os dias, à beira-leito, um plano de cuidados multiprofissional.
Fazemos uma reunião de profissionais de diferentes áreas, à beira do leito, e elaboramos juntos um plano de cuidados para o paciente.
Já está comprovado cientificamente que um plano de cuidados multiprofissional traz mais resultados para a assistência. Então, trabalhamos de forma conjunta, buscando os melhores resultados, e conseguimos enxergar isso na prática.
Temos pacientes em estado muito grave, mas conseguimos uma taxa elevada de altas para a unidade de internação. E esses pacientes, depois, acabam indo para casa.
Agora há pouco, aqui em casa, João Miguel, meu filho de quatro anos, olhou para mim e disse assim:
— Tu prefere que eu te chame de tchutchuzinha ou de titinha?
Eu comecei a rir e falei:
— Eu acho que prefiro tchutchuzinha!
E ele:
— Ah, mamãe! É porque eu te amo muito!
Essas coisas me deixam muito feliz e motivada para o dia de amanhã.
Até mais. Um abraço.”
“Familiar cantou para paciente de 24 anos em estado grave”
Dia 14 de abril: 17h41min
“Hoje conto no meu diário um momento lindo e, ao mesmo tempo, tocante, pois chegou ao coração. Vivenciamos momentos assim todos os dias em terapia intensiva.
Entrei no boxe de um paciente, e ele estava recebendo a visita presencial da família. Está em estado muito grave, apesar dos seus 24 anos de idade e de não ter doenças prévias. Na entrada, ouvi um canto, um louvor. A familiar estava cantando uma música linda e de tocar na alma.
Em uma UTI onde colocamos, no rádio, notícias e música para ajudar no tratamento dos pacientes, hoje a música foi ao vivo. E foi muito tocante.
Os familiares, quando deixaram o leito, agradeceram a toda a equipe pelo atendimento e disseram que pedem a Deus proteção para todos. Agradeci o carinho em nome da equipe, disse que somos muito abençoados e que seguimos cuidando com o maior carinho de todos os pacientes.
É importante dizer que, nessas situações de visita presencial dos familiares, eles são auxiliados pela equipe na paramentação, ou seja, na colocação dos equipamentos de proteção individual (EPIs), e na desparamentação, que é a retirada desses EPIs.
Chegando em casa, João Miguel, meu filho de quatro anos, me recebeu com um sorriso e me chamou de ‘titinha’, uma forma carinhosa de dizer que sou pequenina. Pequenina no tamanho, com meu 1m50cm, mas com um coração enorme.
Vamos seguir firme nesta batalha.
Beijo. Até mais.”
“Perguntei se a gestante queria o carrinho de bebê do meu filho. Ela ficou muito feliz”
Dia 12 de abril: 16h41min
“Hoje quero contar a história do meu plantão de sábado (10), de 12 horas durante o dia. Foi um plantão movimentado. Vou destacar a história de dois pacientes.
Uma mulher de 39 anos e 32 semanas de gestação esteve internada conosco do dia 30 de março até 10 de abril. Já tinha falado dela aqui no meu diário. Até aquele momento, ela não tinha precisado de ventilação mecânica, mas precisou, do dia 3 ao dia 9.
Recebeu alta no sábado. Perguntei se ela já tinha carrinho de bebê, e ela disse que não. Perguntei se ela queria o carrinho de bebê do João Miguel, meu filho de quatro anos. Ela disse que sim e ficou muito feliz. Todos da unidade também ficaram felizes em vê-la contente, tanto pela alta para a unidade de internação quanto pelo carrinho, que ela já estava procurando.
Logo depois da saída dela do CTI, foi internado, no mesmo leito, um paciente de 29 anos, sem doenças prévias. Ele chegou ao Hospital de Clínicas em 10 de abril. Estava em uma unidade ao lado da nossa e precisou ir para o suporte de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO) — uma espécie de pulmão artificial. Estava com a oxigenação no sangue muito baixa.
São dois pacientes com histórias diferentes que espero que tenham o mesmo desfecho: receber alta da unidade de internação e depois para casa.
Chegando em casa, João Miguel me falou que sou a sua ‘linda’. Nós brincamos de estátua com o controle remoto da televisão. Ele apontava para mim e dizia ‘pause’, e eu fazia a estátua. Foram boas gargalhadas. E assim a gente vai indo.
Um beijo. Até mais.”
“Meu companheiro de estudo e de ficar em casa”
Dia 5 de abril: 18h16min
“Hoje, no CTI covid-19, estamos com dois pacientes em oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO, na sigla em inglês), que funciona como um pulmão artificial: uma mulher de 37 anos, no oitavo dia da ECMO, e um homem de 45 anos, no 15º desse suporte respiratório.
Desde o início da pandemia, já tratamos de 20 pacientes na ECMO por covid-19. O tratamento exige uma equipe multiprofissional capacitada, tanto nos múltiplos cuidados quanto no atendimento de intercorrências.
Nossa unidade é especializada no cuidado desses pacientes. Temos muito orgulho disso e do trabalho que desenvolvemos em conjunto. Esse trabalho é decisivo para as várias altas que estamos conseguindo realizar, não apenas dos pacientes que fazem uso da ECMO, mas dos outros também.
Hoje mesmo recebemos a mensagem da esposa de um paciente de cerca de 30 anos que teve alta recentemente. Dizia assim: “Vocês merecem tudo de bom e melhor nesse mundo. Vocês não são apenas da área da saúde. Vocês são seres humanos que se colocam no lugar da família que está desesperada. Eu terei sempre gratidão”. Essa mensagem não tem preço. É o melhor que podemos receber em forma de carinho.
Mais tarde, chegando em casa, fui ler uns artigos sobre o cuidado dos pacientes na ECMO, e João Miguel, meu filho de quatro anos, sentou ao meu lado à mesa. Olhou para mim e disse:
— Eu sou teu companheiro de estudo, mamãe.
E eu concordei:
— É verdade, filho. É mesmo!
E daí ele disse:
— Eu também sou o teu companheiro de ficar em casa.
E eu pensei: verdade. Também é meu companheiro de ficar em casa.”
“Ficamos emocionados com a melhora de um colega do front de batalha”
Dia 31 de março: 17h28min
“Entre os pacientes de quem cuidei, está uma mulher de 39 anos com 29 semanas de gestação, sem doenças prévias, que veio para o CTI exatamente uma semana após o início dos sintomas da covid-19.
Ela não está entubada nem em ventilação mecânica invasiva. Está com um cateter de alto fluxo de oxigênio, e veio para cá devido a um esforço respiratório e à necessidade de vigilância ventilatória.
No lado oposto da unidade, em outro leito, recebeu alta para a unidade de internação um colega, secretário do CTI, 45 anos, que esteve 17 dias em ventilação mecânica. Chegou a ser pronado (virado de bruços para a melhora da oxigenação) cinco vezes.
Hoje, quando ele completou 30 dias internado no CTI, nós tivemos a alegria de transferi-lo para a unidade de internação. Foi a maior festa.
Nós e os colegas das unidades vizinhas ficamos lado a lado em um corredor longo, batemos palmas. Foram feitos cartazes com frases de carinho e de força, e balões também alegraram o ambiente. Foi um dia muito alegre. Mostrou a união do nosso CTI e como ficamos tocados, emocionados com a melhora de um colega do front de batalha.”
“Tive um dos plantões mais difíceis da minha carreira”
Dia 29 de março: 17h04min
“O meu relato hoje retrata uma miscelânea de sentimentos que vivi desde sábado (27), quando tive um dos plantões mais difíceis da minha carreira profissional. Foi um plantão pesado, agitado. Dois pacientes faleceram: um homem de 62 anos e uma mulher de 44 anos. Ficamos tristes, sensibilizados.
Hoje de manhã, transferimos para a unidade de internação, após alta do CTI, dois pacientes. Um jovem de 33 anos, sem histórico de doenças prévias, que tem um filho de oito meses e vai conseguir, em breve, ir para casa ficar com a sua família.
Ao lado, também recebeu alta para a unidade de internação um homem de 48 anos, sem doenças prévias. Saiu do CTI sorridente e emocionado com as palmas na hora da transferência. Aplaudimos. Foi uma manhã muito feliz.
Chegando em casa, João Miguel, meu filho de quatro anos, me disse umas 20 vezes que me ama. Isso me deixou ainda mais feliz e emocionada. E assim a gente vai indo.”
“Paciente escreveu em uma folha de papel: ‘Estou muito feliz’”
Dia 24 de março: 18h03min
“Hoje cuidei de uma paciente de 42 anos com história prévia de depressão e início de sintomas da covid-19 em 22 de fevereiro. No dia 14 de março, ela foi internada no Centro de Tratamento Intensivo. Estava havia 10 dias na ventilação mecânica e hoje foi extubada (retirada do tubo de ventilação) com sucesso.
Dois dias atrás, ela tinha sido extubada também. No entanto, devido a um inchaço na garganta que a impedia de respirar, precisou ser entubada e voltar para o respirador. Mas, hoje, isso não aconteceu. Deu tudo certo.
Ela se comunicou comigo, durante a manhã toda, por meio da escrita, em uma folha de papel. Não estava conseguindo falar por causa do tubo de ventilação. Quando saiu do tubo, passou a usar uma máscara de ventilação não invasiva, que fica acoplada a todo o rosto e também dificulta para falar.
Também usamos uma espécie de cartão com figuras representando dor, vontade de fazer xixi, vontade de virar de lado. Nossa comunicação foi bem efetiva. No final da manhã, ela me escreveu: ‘Estou muito feliz’. Me fez sorrir.
Em contraponto, tivemos uma paciente idosa que, infelizmente, faleceu. No boxe ao lado, estava sendo internado um paciente com cerca de 30 anos, sem doença prévia, que já chegou em estado gravíssimo.
Três pacientes diferentes, realidades diferentes, em uma mesma UTI.
Depois desse dia cheio de baixos e altos, cheguei em casa, e João Miguel, meu filho de quatro anos, perguntou como eu estava. Eu disse que estava bem, mas com uma dor no pescoço, uma contratura. Ele levantou o meu cabelo e me deu um beijo no pescoço.
— Agora melhorou, mamãe? — perguntou.
Eu disse que sim. Não tem como não melhorar, não é mesmo?”
“Gestante em estado muito grave passou por cesárea de urgência no CTI covid-19”
Dia 22 de março: 18h32min
“Uma das pacientes de quem cuidei recentemente foi uma moça de 24 anos, com história prévia de asma. Ela estava com 31 semanas de gestação. Tem um filho de cerca de cinco anos, quase a idade do João Miguel, meu filho.
Ela foi internada em estado muito grave, sedada, em ventilação mecânica. Em um momento mais crítico, precisamos proná-la — colocá-la de bruços para melhorar a oxigenação.
Fizemos o procedimento com os olhos marejados. Recebemos a visita da equipe da Psicologia um pouco antes, que nos deu apoio, conversou conosco, e foi um sucesso. Ela precisou, ao longo da internação, ser pronada nove vezes. Só neste ano de 2021, já realizamos, até o momento, cerca de 1,2 mil manobras prona, o que demonstra o perfil gravíssimo dos pacientes.
Como não tinha condições de ser transferida para o centro obstétrico, foi realizada uma cesárea de urgência dentro do boxe que ela ocupava no CTI. A bebê foi entubada e transferida imediatamente para a UTI neonatal.
Hoje recebi a notícia de que a nossa paciente está indo para casa. Teve alta hospitalar. A bebê ainda está na UTI neonatal, mas bem. Foi a notícia mais maravilhosa que recebi nos últimos dias. Estamos muito felizes. Isso nos motiva para continuar nessa luta diária.”
“Paciente foi levado de cadeira de rodas para se despedir da mãe na UTI ao lado”
Dia 17 de março: 18h59min
“Hoje cuidei de um paciente que foi internado há vários dias com covid-19. Histórico de obesidade e tabagismo. Faz três dias que ele acordou da sedação.
Ontem, ele perguntava muito pela mãe, que também estava com a doença, internada na UTI ao lado de onde trabalho. O nosso paciente foi colocado em uma cadeira de rodas, com oxigênio, e levado até a beira do leito da mãe. Foi uma despedida.
Hoje ele recebeu a notícia de que a mãe tinha falecido horas depois da visita. Chorou muito, foi muito triste. Dei os pêsames. Anteontem, eu perdia o meu tio para a doença, 62 anos, um professor muito amado, que tinha uma vida pela frente. Saí bastante abalada do hospital.
Cheguei em casa e meu filho, João Miguel, quatro anos, me esperava com uma flor. Isso acalentou o meu coração. Ainda bem que amanhã é outro dia. E que seja diferente. Até mais.”