O Diário do Front 2021 começou em março, durante o pior momento da pandemia no Rio Grande do Sul, e se encerra em 1º de julho. Confira, abaixo, os relatos da médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, do Hospital Moinhos de Vento. Também participaram da iniciativa a enfermeira Isis Marques Severo, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e o médico infectologista André Luiz Machado da Silva, do Hospital Conceição, ambos também na Capital.
Tragédia sem precedentes, a pandemia de coronavírus, que agora ataca de forma implacável a população e o sistema de saúde do Rio Grande do Sul, motivou o Diário do Front ao longo de seis meses em 2020.
Dado o momento atual, o projeto de GZH, Rádio Gaúcha e Zero Hora, que mostra o dia de dia de profissionais da linha de frente, está sendo retomado para revelar o que vem acontecendo em alguns dos mais importantes e sobrecarregados hospitais da Capital.
A composição do time é a original: participam o infectologista André Luiz Machado da Silva, 44 anos, do Hospital Nossa Senhora da Conceição, a enfermeira intensivista Isis Marques Severo, 41 anos, do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, e a médica intensivista Roselaine Pinheiro de Oliveira, 54 anos, chefe do Serviço de Medicina Intensiva Adulto do Hospital Moinhos de Vento.
— A sensação, hoje, é de incredulidade. Não imaginávamos que chegaríamos a esse ponto. A situação é assustadora — desabafa Roselaine.
Um compilado dos relatos do ano passado pode ser conferido nestas reportagens: link 1, link 2 e link 3.
“A pandemia nos mostrou o quanto somos frágeis e o quanto precisamos da ajuda de todos”
Dia 29 de junho: 21h44min
“Quando nós retomamos, neste ano, o Diário do Front, em virtude do aumento do número de casos e do pico que tivemos em março, não imaginávamos que isso poderia acontecer aqui no Rio Grande do Sul. E aconteceu, aconteceu em Porto Alegre, de uma forma significativa.
Foram muitos pacientes, muito graves e muito jovens. Sabíamos que, enquanto a vacinação não avançasse, teríamos muitos casos, mas o que aconteceu em março realmente surpreendeu a todos e nos trouxe uma sobrecarga de trabalho e, por que não dizer, de sofrimento além do que já vínhamos tendo.
Toda essa pandemia nos mostrou o quanto somos frágeis e o quanto precisamos da ajuda de todos. Dentro do hospital, todos nos mobilizamos para conseguir atender o maior número possível de pacientes, com todas as unidades, todos os colegas, toda a equipe assistencial se disponibilizando e se organizando para tratá-los.
A vacinação segue em um curso ainda lento, mas progressivo, e isso nos dá uma certa esperança de que a situação vá melhorando lentamente. Fica, mais uma vez, um pedido para que, enquanto a vacinação não seja feita na grande maioria da população, nós tenhamos os cuidados necessários de distanciamento, uso de máscara e higienização das mãos.
Sabemos que todos estamos cansados. Todos, sem exceção. Quem trabalha na área da saúde e quem não trabalha na área da saúde. Mas ficou muito claro que, sem cooperação e sem que todos sigamos pelo mesmo caminho, não vamos conseguir o êxito tão rapidamente quanto gostaríamos.”
“Estamos passando por um novo processo de expectativa”
Dia 9 de junho: 18h19min
“A covid-19 impôs, a todos nós, mudanças significativas no dia a dia, na ausência de convívio. E colocou profissionais da saúde frente a pacientes muito graves, em um número muito grande e ao mesmo tempo dentro dos centros de tratamento intensivo (CTIs).
Esse trabalho traz bastante comprometimento e uma carga emocional muito importante também. Nós lidamos todos os dias — e faz parte da nossa profissão — com a fragilidade do ser humano frente à doença. Mas essa doença, especificamente, também traz uma carga para nós e para os familiares que estão envolvidos no processo de doença e cura.
O Hospital Moinhos de Vento tem um serviço de apoio psicológico que, cada vez mais, torna-se importante. É fundamental. São mais de 15 meses nesse processo que altera a nossa vida fora do hospital e alterou a nossa vida no hospital.
Claro que temos muitas histórias boas para contar: pacientes que já se recuperaram, pacientes que mandam fotos praticando atividade física, familiares de pacientes que se vacinaram embora o seu familiar tenha falecido, até depois de já ter tido alta hospitalar.
Isso nos dá uma força a mais, e também precisamos. Estamos passando por um novo processo de expectativa, com um aumento lento mas gradual do número de casos e agora com pacientes muito mais jovens, com uma doença que ainda segue sendo muito grave naqueles que são atingidos.
Então, um apoio emocional nos ajuda frente a situações que não podemos controlar, como a percepção de que, por estarmos sendo vacinados, já terminamos com a pandemia. A pandemia ainda está aí, e precisamos do apoio psicológico e de todo o entendimento da população de que a pandemia ainda existe — claro que de uma outra forma — e de que todo cuidado ainda é pouco.”
“Mãe com covid-19 grave estava inconsciente no parto e conheceu o filho apenas dias depois”
Dia 31 de maio: 20h32min
“Sei que pode parecer que nós estamos sendo repetitivos ao dizer que toda a equipe assistencial está bastante cansada, mas são 15 meses tratando de pacientes muito graves. E, nos últimos meses, especialmente de março até agora, pacientes bem mais jovens.
Hoje, 20% dos nossos pacientes do Centro de Tratamento Intensivo do Hospital Moinhos de Vento tinham mais de 70 anos. Só 20%. Então, realmente, são pacientes jovens.
Há alguns dias, recebi o vídeo de uma gestante que foi internada com covid-19 no CTI, teve o bebê durante a internação e já estava no quarto quando, finalmente, viu o filho pela primeira vez.
Ela teve uma internação prolongada no CTI. Quando teve o bebê, não tinha percepção do momento. Foi muito emocionante. São esses momentos também, além do cansaço físico, que trazem uma carga emocional muito grande para a equipe assistencial.
Eu sou intensivista de adultos, e esse vídeo me tocou profundamente porque as crianças são seres muito especiais. Ver uma mãe que superou uma doença grave, ver o filho que superou o nascimento e o afastamento da mãe nesse momento... Ele conseguir vê-la e ela conseguir vê-lo, muitos dias depois, foi emocionante. Nos dá a sensação de que tudo está valendo a pena.
Mas nós realmente seguimos muito apreensivos e com muita preocupação em relação ao futuro.”
“Emocionada, paciente estava vendo o céu, o sol, o Guaíba”
Dia 12 de maio: 21h12min
“Estou dando este depoimento no Dia da Enfermagem, do enfermeiro, da enfermeira, do técnico de enfermagem, profissionais que cuidam dos pacientes de forma muito carinhosa, muito delicada, com muita competência e empatia.
Dia desses, eu estava transitando de um bloco para outro do hospital. Temos passarelas envidraçadas que nos dão uma vista linda para o nosso bosque, nosso jardim. Estava indo para o prédio da Rua Tiradentes, que tem uma vista linda para o Guaíba. O dia estava muito bonito, com sol.
De um dos elevadores, vi uma paciente do CTI, que está se recuperando da covid-19. Ela já está fora do isolamento, traqueostomizada (com uma incisão feita no pescoço, na altura da traqueia, para permitir a colocação de uma cânula para conectar ao respirador) — com a traqueostomia já fechando, mas ainda precisando de cuidados, por isso estava no CTI.
Com ela, nessa área envidraçada, a equipe de enfermagem. Ela estava vendo o céu, o sol, o Guaíba. A gente via a emoção dela e até a surpresa — eu fiquei surpresa.
Essa é uma parte do trabalho que a enfermagem também faz com o paciente. Não é só nas medicações, no cuidado, na higiene, na troca de decúbito, no apoio profissional que dá à equipe multidisciplinar.
E é por isso que encontramos frases como ‘Eu venci a covid-19, gratidão eterna. Jamais esquecerei de todos vocês’. Esse ‘todos vocês’ tem uma parte muito importante também da enfermagem, e nós, médicos, somos parceiros indissociáveis da equipe de enfermagem e de todos os profissionais que ajudam a cuidar dos pacientes.”
“Apesar de todo o sofrimento, família se manteve firme e tranquila, com muita fé”
Dia 28 de abril: 21h47min
“O distanciamento social, que é tão necessário desde que deparamos com a pandemia, também atinge muito os pacientes e os familiares.
São muito importantes a tranquilidade e a confiança dos familiares em relação a toda a equipe assistencial, especificamente os médicos, porque somos nós que fazemos o cuidado terapêutico e também passamos as informações. É muito importante quando essa confiança se estabelece, apesar de todas as incertezas.
Em relação a uma das pacientes de quem cuidei, teve um final de tarde em que liguei para conversar com a família. Era uma ligação coletiva, vários familiares entravam na conversa. Um dia me disseram:
— Só estávamos esperando a sua ligação para começar a fazer uma corrente de oração.
Essa foi uma família muito especial. A paciente ficou um mês em terapia intensiva, em ventilação mecânica, com alguns momentos de posição prona (deitada de bruços para melhorar a respiração) pela gravidade do quadro, uma extubação (retirada de tubo) e necessidade de reintubação 36 horas depois. Isso sempre gerou angústia, incerteza em relação ao desfecho.
Ela já saiu do CTI, está se recuperando muito bem. Recebo vídeos da família. Ela está em outro hospital agora, para onde foi para manter seu tratamento, já em um nível de menor complexidade.
Essas notícias são ótimas. É um vínculo que ficou, de uma família que, apesar de todo o sofrimento, de toda a angústia, de toda a incerteza, se manteve firme, tranquila, no sentido de aceitar a imprevisibilidade dessa doença com muita fé também.”
“Vídeo de menina parabenizando médicos me salvou naquele dia”
Dia 26 de abril: 23h37min
“O médico intensivista é um profissional treinado e capacitado para atender pacientes criticamente doentes. Portanto, preparado para passar por situações difíceis, de tensão, de tomada de decisão a cada momento. Obviamente, temos dias muito bons e dias um pouco mais pesados.
Mas tem dias em que se está um pouco mais triste, um pouco mais cansado, com vários problemas. E eu fui surpreendida por uma mensagem, via WhatsApp, de uma colega minha que é chefe do Serviço de Neonatologia.
Ela recebeu um vídeo da filha de uma enfermeira dizendo que queria dar os parabéns para os médicos porque nós cuidamos das pessoas com covid-19.
A mensagem da menina: ‘Eu quero te dar os parabéns pela profissão de médico. Os médicos arriscam a vida deles pra cuidar das pessoas que ficam doentes com covid. Tchau. Um abraço pra vocês!’
Foi de uma doçura, de uma delicadeza, de um carinho. Veio no momento exato, numa situação de total necessidade de um pouco de carinho, de palavras doces. E é muito bom, partindo de uma criança, mandando uma mensagem positiva para todos os médicos.
Me senti abraçada virtualmente e queria agradecer tanto a essa minha colega que mandou quanto a essa menina. A mãe dela é enfermeira, então ela sabe bem. É um gesto de carinho, atenção, empatia. Foi o que me salvou naquele dia.”
“'Qual é a chance que eu tenho?', perguntam os pacientes”
Dia 20 de abril: 8h25min
“Toda doença gera sentimentos de medo, insegurança, fragilidade. É muito comum nós ouvirmos as seguintes perguntas:
— Pela sua experiência, qual é a chance que eu tenho? Do que tem visto dos pacientes com a mesma doença, como é que vou evoluir? Terei alguma complicação?
Temos ouvido muito isso quando damos informações sobre os quadros dos pacientes que estão com a covid-19 no CTI, especialmente em relação aos mais graves, em ventilação mecânica e com outros dispositivos de suporte de vida.
A experiência do médico é realmente muito importante, traz uma bagagem. Mas, junto dela, é preciso ter conhecimento, por meio de estudo. Estudo dos livros-texto, das pesquisas que são constantemente publicadas.
O médico precisa se munir dessas informações para além de toda a bagagem que ele traz com o trabalho ao longo dos anos — senão, quando recém-formado, não vai conseguir trabalhar, porque ainda não tem experiência, só este conhecimento técnico.
Então, o trabalho médico exige: conhecimento técnico, constante atualização e uma experiência de trabalho e de vida que ele vai utilizar da melhor forma possível, compartilhando-a também com outros colegas para o melhor benefício do paciente.”
“Quando recebo um agradecimento, sempre deixo claro que sou apenas uma integrante da equipe”
Dia 12 de abril: 22h48min
“Na relação médico-paciente, a confiança é uma característica fundamental e muito importante. Com a confiança, se estabelecem também empatia e tranquilidade para que todas as partes — familiares, pacientes e médicos — possam se contatar e tornar o processo da doença menos doloroso.
Muitas vezes, quando tratamos pacientes criticamente doentes em centros de tratamento intensivo (CTIs), algumas notícias não são boas. Às vezes, a evolução da doença faz com que tenhamos conversas difíceis. Mas, muitas vezes, também existem notícias boas, evoluções favoráveis e um desfecho maravilhosamente bonito.
E, nesses momentos, a gente ouve ‘muito obrigado, doutor’, ‘muito obrigada, doutora’, ‘você fez tudo por nós’. Só que existe uma questão muito importante em todo aspecto do nosso trabalho, especialmente com o paciente crítico, que é o trabalho multidisciplinar.
O médico é apenas um porta-voz. Alguém que está ali, muitas vezes liderando um grupo, mas que tem junto toda uma equipe de médicos, técnicos de enfermagem, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, farmacêuticos, administrativo, que ajudam nesse manejo. Tem todo o pessoal da hospedagem, que faz a higienização, a limpeza, o cuidado.
É uma movimentação de profissionais que trabalham como elos, que são unidos — sem um encaixando no outro, essa corrente não é formada de forma consistente.
Então, quando recebo um agradecimento, sempre falo: sou apenas um elemento, importante como todos os outros profissionais que o ajudaram, profissionais que estão ajudando o seu familiar.
A equipe do CTI é muito mais do que apenas aqueles profissionais cujos rostos aparecem. São aqueles que trabalham de noite, aos finais de semana. Não temos os familiares ali, e os familiares não conhecem. Eles dão continuidade ao planejamento de cuidado do doente. Quando recebo um agradecimento, sempre deixo claro que sou apenas uma integrante da equipe, competente, engajada, com todo o carinho.”
“Paciente começou a chorar: ‘Estou me sentindo muito sozinho. A minha família me abandonou’”
Dia 7 de abril: 19h52min
“Entre outubro e novembro do ano passado, cheguei à noite, em um plantão, para ver uns pacientes. Entrei no boxe de um paciente que tinha sido extubado naquele dia, durante a manhã. Lúcido, muito tranquilo, clinicamente muito bem, evoluindo muito bem.
Comecei a conversar com ele. Me apresentei:
— Eu sou a Rose. Sou a médica que está aqui agora. Vou vê-lo, examiná-lo. Estou acompanhando o senhor.
Ele começou a chorar. Perguntei:
— Mas o que aconteceu? Está tudo bem? O que houve?
E ele:
— Estou me sentindo muito sozinho. Estou abandonado. A minha família me abandonou.
Começamos a conversar. Eu disse que a família não tinha abandonado ele, que só não podia visitá-lo presencialmente, mas que estava sempre presente, como podia estar — acompanhando todo o quadro. Disse que ele estava indo muito bem, que logo, logo ele iria para o quarto e, certamente, veria a família.
Ele me falou que tinha um filho que estudava Medicina. Perguntei onde, e ele respondeu “na antiga Fundação” (UFCSPA).
— Eu dou aula lá! — falei.
Ainda ficamos conversando um pouco. Ele realmente estava muito, muito emotivo.
Agora, (vamos para o) início deste ano. Tem uma disciplina em que, a cada dois meses, o grupo de alunos muda. Eles sempre perguntam muito sobre a covid-19, sabem que faço parte de um grupo de médicos intensivistas que atende diretamente esses casos, tiram muitas dúvidas. Um aluno disse:
— Então eu acho que a senhora cuidou do meu pai.
E, realmente, era o filho daquele paciente (do ano passado). Fiquei muito, muito feliz. Eu disse:
— Sim, eu lembro exatamente do teu pai.
Foi muito emocionante. O pai dele está muito bem. Foi bem gratificante. Sempre digo que ninguém ensina, nós é que aprendemos. Tento passar para eles algo que exerço.”
“Se todos nos mobilizarmos para o bem, certamente todos os dias serão de notícias melhores”
Dia 5 de abril: 19h11min
“Todos os dias, esperamos notícias boas, esperamos que a situação melhore. Muitas vezes, temos essa esperança, mas ela não acontece.
Quando chegamos para ver um paciente, que estava pronto para sair do respirador e piorou durante a noite — precisou de um pouquinho mais de sedação e de um remédio para manter a pressão arterial (droga vasoativa), e isso nos impede de evoluir no processo de retirada, que é o desmame da ventilação mecânica —, nós também sentimos. Embora as pessoas pensem que os médicos não têm esse tipo de sentimento, nós temos.
Ainda mais que nós falamos com os familiares, e os familiares também estavam na expectativa de que a melhora estivesse acontecendo. É algo que chamamos de intercorrência, que pode acontecer. Isso realmente abala muito, mas, por outro lado, temos a certeza de que ainda temos muito para oferecer.
Também nos dá um sentimento muito bom quando como hoje, no nosso grupo de médicos, recebemos a mensagem de uma iniciativa de duas médicas arrecadando o valor que cada um pudesse doar para comprar cestas básicas para pessoas que estão precisando (a serem destinadas à ONG Inova, de Porto Alegre). Em questão de poucos minutos, arrecadou-se um valor considerável. Isso me encheu de alegria.
No final do dia, apesar do dia duro — seguimos trabalhando com uma rotina estressante, muito cansativa, como temos falado sistematicamente —, tivemos essa notícia, com essa iniciativa de duas médicas. Nos sentimos fazendo o bem. Ainda mais em um momento em que parece que estamos com uma diminuição da ocupação das UTIs — isso ainda é um primeiro passo. Assim como a nossa iniciativa de tentar ajudar é um primeiro passo. Se todos nos mobilizarmos para o bem, certamente todos os dias serão de notícias melhores.”
“Paciente nos presenteou com balão e bombons: ‘Obrigado por salvarem a minha vida’”
Dia 1º de abril: 7h43min
“Quando nós chegamos ao CTI para trabalhar, sempre trocamos palavras, gestos, olhares e tentamos nos fortalecer, de todas as formas, sempre preocupados em nos tornar profissionais e pessoas que estão ali para dar o seu melhor.
Esses dias, quando entrei, tinha um cestinho com vários bombons, um balão com os dizeres ‘Equipe CTI-HMV, obrigado por salvar minha vida’ e um porta-retrato que, em vez de ter um retrato, tinha uma mensagem. Em cada bombom, estava a seguinte mensagem: ‘GRATIDÃO é o sentimento que me define neste dia de despedida! Foram 102 dias em que estive acompanhado de ANJOS sem asas que salvaram a minha vida! Estou vivo, curado e feliz, graças a Deus e à dedicação, ao cuidado e ao amor de todos vocês, profissionais do Hospital Moinhos de Vento! Muito obrigado!’ E o nome do paciente.
Esse é o maior presente que podemos ter. O nosso objetivo, o nosso valor é cuidar de vidas. Essa vida foi cuidada. Ele está feliz, em casa. O nosso eterno agradecimento também a mais esse paciente pelo gesto de carinho. E a maior demonstração de carinho é ele voltar feliz para a sua vida porque isso também nos faz feliz.”
“A covid-19 é uma montanha-russa”
Dia 29 de março: 23h24min
“No CTI Adulto do hospital, organizamos, com as equipes de enfermagem e psicologia, uma agenda para as visitas presenciais, o que já acontece desde o ano passado. Por alguns meses, as visitas haviam sido proibidas, e isso gerou uma carga emocional a mais, de tristeza, angústia e preocupação, nos pacientes, não só em relação à doença, mas também em relação ao afastamento dos familiares.
Essas visitas são feitas de forma muito organizada. Em cada porta de boxe, estão determinados os dias da semana e os horários em que um familiar pode visitar. Ele não entra no boxe, especialmente se o paciente estiver entubado, em ventilação mecânica e ainda na fase aguda da doença.
Isso ajuda o familiar a entender como está indo o processo de evolução da covid-19, ele consegue ver o paciente. Ajuda a elaborar todo esse momento que é tão complicado.
Mas, mesmo assim, os familiares falam coisas como ‘eu gostaria muito de estar ali junto, de dizer para essa pessoa o quanto eu gosto dela, de tocar, de abraçar’. Mas isso não é permitido. Essa doença é uma montanha-russa. Às vezes, o paciente está indo bem e, em questão de 12 horas ou 24 horas, ocorre uma piora.
O familiar, estando presente, pode ver o local onde a pessoa é tratada, como está evoluindo, como acaba emagrecendo… Isso também ajuda no processo de entendimento do que está acontecendo, inclusive com aqueles pacientes que estão evoluindo mal.
Esse foi um projeto que deu muito certo e demonstra o quanto é importante o envolvimento da equipe multidisciplinar para que possamos encontrar soluções para situações que eram aparentemente intransponíveis. A visita era proibida, e esta era uma decisão praticamente mundial — todos os hospitais estavam fazendo isso. E nós decidimos pensar no que poderíamos fazer para minimizar.
Esse é um projeto que tem nos trazido um pouco mais de conforto porque sabemos que estamos, apesar de toda a situação, tentando oferecer um acolhimento um pouco mais carinhoso para as famílias e os pacientes.”
“Medo é um sentimento de todos nós”
Dia 24 de março: 22h04min
“Quando se dá informações aos familiares, fala-se muito do paciente, obviamente, e de tudo o que está acontecendo: a evolução, as melhoras, as pioras. Mas, dia desses, num final de tarde, em uma conversa um pouco mais demorada e com um pouco mais de tranquilidade, perguntei para a filha de uma paciente como ela estava e se queria me fazer alguma pergunta.
— Tô com medo — ela disse.
Ela, as irmãs e o pai estavam com medo porque não sabiam o que iria acontecer. Em alguns momentos, esteve tudo bem e, em questão de 24 horas, o quadro dessa paciente piorou. Precisamos voltar com a sedação, com o bloqueador neuromuscular (o bloqueador é para que o paciente não consiga se mexer e não interfira na ventilação, no aparelho que o está fazendo respirar).
Medo é o que todos nós temos. Medo de ficar doente, medo de, ao ficar doente, a doença ter uma evolução mais grave. E quem tem um familiar doente ou está doente tem medo. Quem tem familiar doente tem medo de que, apesar de toda a estrutura para tratar o paciente, a doença evolua de uma forma que não seja a mais adequada.
Aquela palavra — medo — e a forma como ela falou foram bem fortes. Me dei conta de que esse é um sentimento, uma preocupação não só dos familiares, mas de todos nós.
Esperamos que esse medo se torne um estímulo para que as pessoas se cuidem e para que cuidem dos outros também, como eu vivo, insistentemente, falando.”
“Não estamos pensando só na nossa carga de trabalho. Pensamos em todos nós”
Dia 22 de março: 23h
“Depois de um ano falando da pandemia, e especialmente nos últimos dias, devido ao agravamento da crise, o nosso pior momento no Brasil, pode parecer que falamos de cansaço porque estamos exercendo a nossa profissão e trabalhando com a dor, a doença e o sofrimento dos pacientes e dos familiares. Mas as pessoas, às vezes, esquecem que nós, médicos, ficamos doentes, que os nossos familiares ficam doentes ou podem ficar doentes. Isso traz uma carga emocional ainda maior.
Estamos frente a uma situação em que não podemos prescindir de trabalhar. Temos que continuar trabalhando porque qualquer um de nós que se afaste, por qualquer motivo, traz um peso maior aos outros colegas. Ultimamente, temos tido muitas notícias de médicos doentes, de familiares de médicos doentes. Claro que a vacina nos permite a previsão de uma doença menos grave, mas muitos familiares estão ficando doentes gravemente e indo para o CTI.
Recentemente, tivemos o pai de um colega no CTI que precisou ser entubado. Esse colega, como qualquer um de nós — não somos desprovidos de sentimentos —, ficou muito abalado. Conversei com ele várias vezes. Me coloquei à disposição, em nome de todos os colegas. Perguntei se precisava de alguma coisa, se precisava se afastar, se poderíamos ajudá-lo com algumas substituições para que ele pudesse descansar, se estava se alimentando, conseguindo tomar água, dormir.
Foi um processo muito difícil. Ele emagreceu alguns quilos. O pai dele, felizmente, nesta semana, teve alta do CTI. E a mãe me mandou uma mensagem muito carinhosa, embora eu não a conheça, agradecendo. É um alívio.
É importante lembrar para as pessoas que não estamos falando de uma situação que não nos atinge. Atinge todos. E quando pedimos para que as pessoas se cuidem, usem máscara, higienizem as mãos e não se aglomerem, não estamos só pensando na nossa carga de trabalho. Estamos pensando em todos nós. É uma questão de também cuidar do outro. Cada um cuida de si e cuida do outro, próximo a ele.
Temos colegas com familiares que têm outras doenças, em fase terminal ou não. Não é só a covid-19. Estamos frente a um vírus para o qual não temos a cura, mas temos a prevenção. Hoje, para minha felicidade, minha mãe fez a primeira dose da vacina. Minha tia que mora aqui em Porto Alegre já fez as duas doses. Minha outra tia também vai se vacinar. É a luz no fim do túnel: nos cuidarmos, nos mantermos saudáveis e fazermos a prevenção de forma adequada. Esta é a notícia boa: temos como nos ajudar. Um cuidando do outro.”
“Vai dar tudo certo, né, doutora? O que a senhora acha? Ela vai se recuperar?”
Dia 17 de março: 21h21min
“Hoje, no final do dia, foi transferida para o CTI uma paciente que ficará sob meus cuidados. Fiz o contato com a filha, que deixou o telefone como referência. Me coloquei no lugar dela: uma pessoa se dizendo médica, se apresentando, conversando sobre a mãe dela, querendo saber um pouco da família. Sem nos vermos, sem nos conhecermos.
Conversamos um pouco sobre toda a situação, o que eles estavam sabendo, o que tinha acontecido. Ela me falou que ainda ontem visitou a mãe virtualmente, por ligação de vídeo, e a mãe estava bem. Levou um susto hoje, quando soube que a paciente estava entubada. E depois outro susto porque foi abordada por uma médica que ela não conhece. É uma situação de total insegurança, por um lado, e da segurança que ela tem que ter de que o que eu estava dizendo era absolutamente verdade. Temos uma equipe preparada, que vai tratar a paciente com carinho e cuidado.
Ela me perguntou:
— Vai dar tudo certo, né, doutora? O que a senhora acha? Ela vai se recuperar?
Falei que essa é uma doença difícil. Posso comparar com uma montanha-russa, tem altos e baixos, tem momentos em que o paciente está bem, daqui a pouco uma situação aguda que tem que ser manejada. Não sabemos por que, muitas vezes, alguns pacientes são mais acometidos do que outros. O esposo da paciente está com a doença, mas é forma leve e ele está em casa.
Trocamos um pouco de carinho pelas palavras, tentando passar toda a segurança que podemos passar virtualmente. Certamente prefiro conversar olhando, mas, neste momento, não podemos. Ela ficou bem agradecida, e eu também. Pedi que a família seguisse como disseminadora de todos os cuidados que precisamos ter para que essa doença pare de progredir da forma como está acontecendo.”