A lista por transplante de um órgão ou tecido tem 45 mil pessoas em espera no Brasil e tornou-se ainda mais longa com a pandemia. As barreiras aumentaram com a redução dos leitos para cirurgias não urgentes em toda a rede hospitalar.
— Menos órgãos foram captados porque ocorreram menos acidentes com morte encefálica, mas também porque houve restrição ao acesso hospitalar por conta da destinação dos leitos de UTI para o tratamento da covid – relata o cirurgião Antônio Kalil, diretor médico e de ensino e pesquisa do Complexo da Santa Casa, em Porto Alegre.
Com menos órgãos captados e com redução em 40% de procedimentos cirúrgicos, mais pacientes morreram a espera de transplante. O cirurgião Valter Duro Garcia, nefrologista e coordenador de transplantes da Santa Casa, ressalta que além de pacientes na lista de espera, os transplantados também sofreram por conta do coronavírus:
— Para os transplantados, os riscos (de complicações da covid) aumentaram substancialmente, assim como as mortes dessas pessoas que se contaminaram pelo coronavírus. Tenho segurança em dizer que morreram em lista (de espera) pessoas que aguardavam um transplante de órgão.
A Santa Casa é a instituição onde mais transplantes são realizados no Rio Grande do Sul. Em termos de impacto, o caso das cirurgias para transplantar rins é exemplar. A instituição vinha realizando uma média de 240 procedimentos por ano. Já em 2021, a tendência é de que sejam realizadas entre 170 e 180 cirurgias do tipo.
Morgana Alves — ou Mãe Morgana, como é conhecida por seu trabalho social de mais de 30 anos com moradores em situação de rua na Capital— aguarda transplante de coração. Ela teve covid em setembro de 2020 e sofreu com as complicações da doença.
Devido ao coronavírus, a primeira liderança quilombola transexual do Estado perdeu a sua posição na lista para transplantar o órgão, pois não compareceu a duas consultas médicas em setembro de 2020, e acabou sendo retirada da lista. No momento, ela está novamente no processo para entrar na espera de transplante com a retomada do acompanhamento médico no posto de saúde Jardim Cascata. Já se passaram seis anos desde que foi diagnosticada com insuficiência cardíaca.
— De lá para cá, tive vários infartos e nunca posso ficar sozinha porque meu coração tem 40% da capacidade de funcionamento. Preciso sempre de companhia, pois a qualquer queda posso não resistir — diz a líder do Quilombo Santa Luzia, localizado na zona leste de Porto Alegre.
A captação de órgãos como coração e pulmão é ainda mais difícil e sensível, já que precisam recebido pelo transplantado em poucas horas. Em contraste, os pacientes com insuficiência renal — um dos tipos mais comuns de transplante — têm a opção de realizar diálise, tendo uma sobrevida maior mesmo que seja fundamental estar muito presente no hospital.
O transplante que não aconteceu
Rochelle Benites foi diagnosticada com uma doença pulmonar autoimune em 2016. À época, ela recebeu três meses de sobrevida. Com mil ideias na cabeça, começou a mobilizar os amigos com o projeto Vida em Jogo.
— Lembro perfeitamente quando ela lançou essa proposta. Coloquei no papel, mas quem realmente obteve o apoio dos clubes e da Santa Casa foi ela — conta a amiga Letícia Motta.
O projeto para educar pela doação de órgãos resultou em importantes ações na dupla Gre-Nal e times do Interior, onde grupos de transplantados e pessoas em lista de espera levaram a ideia da doação aos campos. Além dos estádios, Rochelle realizava palestras e chamava transplantados e especialistas para debater sobre a doação de órgãos. Entre tantos projetos, fazia parte do Cultura Doadora, projeto da Fundação Ecarta.
Desde o diagnóstico, foram cinco anos de espera . No último 19 de agosto, aos 42 anos, ela não resistiu e morreu de insuficiência respiratória. Amigos e familiares acreditam que a pandemia pode ter colaborado para aumentar a dificuldade na captação dos pulmões para o transplante que Rochelle precisava.
— Ela acreditava muito que ia se transplantar e ela queria fazer muito mais. Para ela, a maior forma de aumentar o número de doadores era através da informação. Agora vamos levar adiante o legado dela, que é de amor, esperança e perseverança — se emociona a amiga Fabiana Flores Guedes.
O legado de Rochelle ficou também no esporte. Quando jovem, lutava por uma pista maior de skate no Parque Marinha do Brasil. Enquanto o sonho não era realizado, organizou diversos campeonatos, incluindo patrocinadores e as meninas na pista.
A família e amigos estão fazendo um abaixo-assinado pedindo apoio para que a nova pista de skate da orla do Guaíba tenha o nome de Rochelle. Seria uma homenagem ao esforço dela às aulas gratuitas da prática esportiva para crianças em vulnerabilidade social no parque Marinha do Brasil. O secretário de Obras da Capital, Pablo Mendes Ribeiro, foi consultado, e informou que a solicitação só pode se tornar realidade caso um projeto de lei seja aprovado na Câmara de Vereadores.