O tratamento da covid-19 com medicamentos sem eficácia comprovada para este fim e a oposição ao distanciamento social e à obrigatoriedade da vacina voltaram a pautar a fala do presidente Jair Bolsonaro. Desta vez, foi durante 76ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nesta terça-feira (21). Especialistas, porém, contestam as afirmações.
Confira, abaixo, falas de Bolsonaro sobre alguns temas e o que dizem infectologistas e outros profissionais acerca de cada um.
Tratamento precoce
— Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label (não previstos em bula) — disse Bolsonaro.
De acordo com o infectologista e professor da UFRGS Alexandre Zavascki, o uso de medicamentos para fins que não estão previstos na bula (off-label) é algo que ocorre na medicina, mas que deve ser fruto de um consenso entre especialistas e organizações científicas e baseado em evidências que já foram coletadas, mas que ainda não estão na bula. Isso ocorre pois o processo burocrático da inclusão é mais lento do que o ritmo da descoberta científica. Não é o caso do chamado kit-covid, composto por drogas como azitromicina, cloroquina, hidroxicloroquina, corticoides e ivermectina que ainda não tiveram eficácia demonstrada pela ciência no tratamento da covid-19.
— O que se sabe é que nenhuma destas medicações conseguiu, no que foram avaliadas, demonstrar qualquer benefício no curso clínico da covid, mesmo administradas em quadro inicial da doença. A questão não é mais a incerteza de benefício: passa o tempo, tempo suficiente para fazer estudos adequados, e nenhuma dessas drogas passa no teste do ensaio clínico — afirma Zavascki.
Para além de ineficácia, um estudo publicado em abril na revista Nature, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, apontou que o uso indiscriminado de cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da covid está associado ao maior risco de mortalidade para pacientes com covid-19. Zavaski também alerta para os danos que os corticoides podem causar em pacientes com casos leves da doença.
— Os corticoides demonstraram benefícios no paciente que está grave o suficiente a ponto de precisar de oxigênio, mas mostraram ser maléficos, tendendo a aumentar a mortalidade, se tomados muito inicialmente pelo paciente que está com covid leve — afirma Zavaski
O chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Eduardo Sprinz, aponta ainda que eventuais resultados promissores demonstrados por pesquisas envolvendo os medicamentos do kit-covid não demonstraram ser confiáveis.
— Cada vez mais a gente fica sabendo que os estudos que deram certo foram malconduzidos, ou por maus cientistas ou por gente mal-intencionada. Esses resultados são uma falácia. Me atrevo a dizer que quem ainda defende isso quer que as pessoas se exponham, e a justificativa para que façam isso é: "não te preocupa que tem remédio pra ti". E isto não é verdade — diz Sprinz.
Medidas restritivas
— No Brasil, para atender aqueles mais humildes, obrigados a ficar em casa por decisão de governadores e prefeitos e que perderam sua renda, concedemos um auxílio emergencial — disse Jair Bolsonaro aos presentes na assembleia.
Estudos comprovam que, do ponto de vista da saúde pública, o distanciamento entre pessoas teve como consequência a redução de dos índices de contágio, hospitalizações e óbitos.
Em Porto Alegre, uma análise feita com base na evolução no número de casos registrados na Capital antes e depois da imposição de medidas restritivas à circulação, em 17 de março de 2021 — mês em que o RS experimentava os níveis mais altos de novos casos diários — , mostrou que as restrições tiveram impacto positivo: reduziram o ritmo de novas contaminações e fizeram com que cerca de 2,1 mil internações por covid-19 fossem evitadas. O trabalho foi conduzido pelo professor do Departamento de Matemática Pura e Aplicada da UFRGS, Álvaro Krüger Ramos.
O distanciamento entre as pessoas é eficiente no combate à pandemia pois a maioria das infecções ocorrem, conforme explica Sprinz, por transmissão inalatória do vírus, através de gotículas no ar.
— Ao nos distanciarmos, damos oportunidade para que as partículas suspensas no ar não cheguem perto de nós. Distanciamento físico é uma das coisas mais eficientes que há em tentar reduzir o risco de transmissão da infecção — afirma o médico.
Vacinação
Em outro momento do discurso, o presidente reforçou que o governo apoia a vacinação, mas que "têm se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina". Os especialistas defendem que a vacina é atualmente a única forma de controlar a pandemia, pois consegue imunizar de forma mais rápida a população e previne cenários de caos como os observados em certos momentos da pandemia.
— Vacinas curam pandemias. E, no contexto atual, o benefício da vacina supera e em muito os riscos da infecção. Na maior parte das vezes, inclusive, a vacina consegue induzir uma produção maior de anticorpos do que a própria infecção — afirma Sprinz.
A infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, também reforça a importância de que as pessoas se vacinem como um gesto de proteção individual e para com as pessoas com que convivem.
— Pessoas podem ter a doença em sua forma mais leve, mas passar para alguém que terá uma forma mais grave, já que a doença muda de gravidade dependendo do hospedeiro. Por isso, precisamos que várias pessoas se protejam. Para que as vacinas funcionem, é necessário que vários países ao mesmo tempo se vacinem — afirma Sylvia.
No contexto atual, em que os índices da pandemia continuam em queda no país e no Rio Grande do Sul e no qual diversas atividades são retomadas, como eventos sociais com capacidade limitada de pessoas, os especialistas reforçam que ainda é importante observar cuidados para redução do risco de contágio. Algumas delas são manter o distanciamento físico, usar máscara, evitar aglomerações, preferir ambientes abertos e arejados, higienizar as mãos com frequência e se vacinar.
— Óbitos e casos seguem caindo e o principal componente para isso é a vacinação. Temos uma população que quer se vacinar. O uso da máscara que se manteve, pelo menos no RS, também é um fator imenso de proteção. Vimos que abolir precipitadamente o uso, em alguns países ainda com percentual pequeno de população vacinada, foi uma estratégia que não deu certo — afirma Zavascki.