Em meio à necessidade de vacinar contra a covid-19 adolescentes e adultos, revacinar idosos e, muito provavelmente, incluir crianças de cinco a 11 anos nos próximos meses, especialistas em saúde pública alertam que gestores devem afinar o planejamento para evitar falta de doses. No Rio Grande do Sul, autoridades afirmam que só haverá problemas se houver desabastecimento nacional ou se prefeituras desrespeitarem combinados.
A despeito da crescente oferta de imunizantes a partir de outubro, analistas destacam que cresce, a partir de agora, a demanda sobre a Pfizer, a única liberada para adolescentes, possivelmente a única para crianças e a escolhida como prioridade para terceira dose de idosos e imunossuprimidos. Um segundo receio é o de possíveis imprevistos nos repasses por laboratórios, como o que causou falta de AstraZeneca em diferentes Estados.
Ex-coordenadora do Plano Nacional de Imunizações (PNI), Carla Domingues observa que, com a falta de coordenação do Ministério da Saúde e o consequente avanço da vacinação de forma irregular pelo país, é "impossível" saber se as doses firmadas com laboratórios serão suficientes para dar conta da maior demanda.
— Tem município que já vacinou a população até 12 anos, mas outros, não. Alguns aplicam a segunda dose com intervalo de 60 dias, outros não. Aqueles Estados que adiantaram a vacinação de grupos podem ter problemas, porque terão que fazer a segunda dose de adultos e adolescentes, além da terceira dose de idosos e de imunossuprimidos. Você terá todos esses grupos se vacinando ao mesmo tempo e, possivelmente, poderá haver falta— afirma Carla.
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, admitiu na segunda-feira (20) que a suspensão de uso da Pfizer em adolescentes não se deu por risco de efeitos adversos, mas por questões de logística. Nesta terça, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que a vacinação de adolescentes deve ser decidida por Estados e municípios.
— O que o governo já defendeu é que os adolescentes deveriam ser vacinados depois. Precisamos avançar nos acima de 18 anos. É questão de prioridade e de logística — disse Queiroga.
Ainda afeta a discussão o estudo do Ministério da Saúde sobre a possibilidade de oferecer terceira aplicação usando meia dose de CoronaVac, AstraZeneca, Pfizer ou Janssen, como noticiou a Folha de S.Paulo nesta terça (21). O aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) permitiria vacinar mais pessoas com a mesma quantidade de imunizantes.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que há 176,5 milhões de brasileiros a partir dos 12 anos de idade. Destes, 142,2 milhões receberam uma dose e 81,2 milhões, duas, de acordo com dados da tarde desta terça do Ministério da Saúde.
Há, portanto, 95,3 milhões de brasileiros que ainda precisam completar seu esquema vacinal. Dentro desse grupo, 61 milhões precisam apenas de uma segunda dose, e 34,3 milhões ainda não receberam qualquer aplicação
De outubro a dezembro, os contratos firmados pelo governo federal com farmacêuticas preveem 226,7 milhões de doses da Pfizer, AstraZeneca, Janssen e convênio Covax Facility – o contrato com o Instituto Butantan encerra em setembro.
Cerca de 36,2 milhões serão Janssen, de aplicação única, o que alivia a demanda. No entanto, 100 milhões são apenas da Pfizer, que lida sozinha com a demanda de adolescentes, idosos e, nos próximos meses, de crianças de cinco a 11 anos.
– Ainda há adultos sendo vacinados com Pfizer para a primeira dose. Se não parar de usar a Pfizer para a primeira dose de adultos, não teremos para segunda dose e com certeza não haverá para terceira – avalia Januário Montone, ex-diretor da Anvisa e membro do Comitê de Especialistas que assessora o Palácio Piratini.
Ele também observa que autoridades esperam que o convênio Covax Facility priorizará o envio a países mais pobres, o que pode reduzir o repasse das 32 milhões de doses prometidas ao Brasil. O convênio anunciou que receberá 25% menos vacinas do que o esperado para este ano – a Organização Mundial da Saúde (OMS) não respondeu aos questionamentos de GZH. Para além disso, o governo federal estuda doar parte do que tem direito a nações mais pobres, noticiou primeiro o UOL.
— Mesmo com a Janssen, de dose única, estamos no limite. Quem mantém a regularidade de entrega é apenas a Pfizer. Fiocruz está com problema de recebimento e produção de IFA. E o Butantan acaba neste mês. Temos previsão de mais de 30 milhões do consórcio com a OMS, mas eles estão priorizado a África. Se entregarem a nós, será de forma parcial — afirma Montone.
A epidemiologia Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e integrante da Câmara Técnica do Plano Nacional de Imunizações (PNI), teme o menor repasse de vacinas da AstraZeneca pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Como resultado, o Ministério da Saúde desistiu de adiantar o intervalo entre doses e o manteve em 12 semanas.
— O problema do Brasil, por várias crises diplomáticas e técnicas, foi não ter as vacinas que deveríamos já no primeiro semestre. Era para termos muito mais do que temos hoje. Não temos vacinas o suficiente, e aí temos que escolher grupos prioritários. Não temos vacina o suficiente para entrar em adolescentes — diz Ligia.
Gestores do RS asseguram doses
A cada lote enviado, o Ministério da Saúde especifica a governos estaduais a quantidade de vacinas para primeira e segunda aplicação. Em exemplo hipotético, enviaria 500 mil doses e definiria que 300 mil seriam para a primeira aplicação e outras 200 mil para a segunda. Com essa previsão, se compromete a enviar, no intervalo adequado, 300 mil vacinas para a segunda aplicação de quem recebeu a primeira dose anteriormente.
Como o Rio Grande do Sul distribui as vacinas às prefeituras conforme essa "receita" do Ministério da Saúde, não deve haver falta de vacinas em solo gaúcho a menos que haja atraso no repasse de laboratórios ao governo federal, afirma Tani Ranieri, chefe da divisão de Vigilância Epidemiológica do Centro Estadual de Vigilância em Saúde.
— O Rio Grande do Sul segue as recomendações do ministério para, mais tarde, não dar problema. Se eu usar segunda dose como primeira, não receberei vacinas específicas para usar como segunda dose nessas pessoas. Só vai faltar vacina se o Ministério da Saúde não enviar doses, por problema nacional. O Estado faz a distribuição. É responsabilidade do município manter o planejamento e o controle de distribuição das doses — diz Tani.
O avanço em adolescentes, a despeito da proibição do governo federal, ocorre porque prefeituras gaúchas informaram terem suprido a demanda de todos os adultos com 18 anos ou mais interessados em vacinar-se, o que permite o avanço em jovens, explica Tani. Hoje, o Estado já distribuiu imunizantes para todos os adultos com 18 anos ou mais e doses de reforço para idosos que completarem seis meses de segunda aplicação até 25 de setembro.
Algumas prefeituras gaúchas já fugiram do script e tiveram de pedir mais doses para não haver falta à população, mas sempre em quantitativos pequenos, diz Tani.
— Se o município não tem esse controle no planejamento e definição de quantitativos destinados para primeira ou segunda dose, corre sim o risco de faltar doses para completar o esquema. Nesse caos, pede ao Estado. Em alguns casos, temos que fazer ginástica para atender. No geral pedem pouco, mas, se for um grande quantitativo, não tem como atender. A logística do município precisa ter o mesmo controle a nível estadual — acrescenta a gestora do governo do Estado.
O avanço da vacinação no Rio Grande do Sul apenas se dá quando governo do Estado e prefeituras decidem, em reunião, que há doses o suficiente para incluir novos grupos, o que reduz o risco de decisões individuais e risco de falta de vacinas, afirma Diego Espíndola, secretário-executivo do Conselho de Secretários Municipais do Rio Grande do Sul (Cosems-RS).
— No Brasil, alguns municípios e Estados usaram segunda dose como primeira, e há esse descompasso. Mas, no Rio Grande do Sul, só pactuamos (entramos em acordo) para avançar se há nota técnica do Ministério da Saúde dizendo quantas vacinas virão. A pactuação dá o número de primeiras e segundas doses do município. Se ele não seguir o que foi decidido, será responsabilizado pela falta de doses lá na ponta — diz.
Questionado se a maior demanda de Pfizer por adolescentes, crianças e idosos não pode provocar falta do imunizante para adultos, Espíndola afirma que o Estado já vem deixado de usar doses do laboratório norte-americano para a primeira aplicação de adultos em detrimento da AstraZeneca e CoronaVac.
— Nós já priorizamos a Pfizer para adolescentes e reforço de idosos. Vamos sempre priorizar quem tiver mais risco. Eventual falta de doses ocorre muitas vezes porque o Ministério da Saúde não se organizou. Tudo o que o Ministério anuncia, o Rio Grande do Sul segue — observa.
Futuro nebuloso
Para o ex-diretor da Anvisa Januário Montone, a despeito do gradual consenso de que a população precisará de terceira dose nos próximos meses, não há movimento do Ministério da Saúde em firmar acordos para novos lotes de vacinas para o ano que vem. Israel, por exemplo, já se movimenta para, inclusive, garantir a quarta aplicação de seus habitantes.
— Estamos repetindo neste ano o erro crasso de planejamento que cometemos em 2020, que é não fazer a contratação antecipada de vacinas. O mundo todo sabe que vai ser preciso terceira dose em algum momento — diz.
O receio é compartilhado por Carla Domingues, ex-coordenadora do PNI, para quem o país deve avaliar agora a necessidade de doses para o ano que vem.
— Com certeza, agora é o momento de planejamento. O Brasil precisará fazer uma priorização no ano que vem — diz.
O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem.
O que dizem fornecedores de vacina
Contatada pela reportagem, a Pfizer afirma, por e-mail, que “reafirma seu compromisso com o Brasil para a entrega de 200 milhões de doses da nossa vacina até o final de 2021 conforme cronograma estimado em contrato, que considera 100 milhões de doses entregues até o final do 3º trimestre, e outras 100 milhões durante o 4º trimestre”. Questionada se está em tratativas com o governo brasileiro para a venda de mais vacinas, a Pfizer diz que não discute negociações em andamento.
A Fiocruz afirmou, por e-mail, que as vacinas já entregues e a previsão para este mês de cerca de 15 milhões de vacinas “não indica escassez de vacinas para aplicação da segunda dose”. A instituição também destaca que é responsável pela produção e entrega das vacinas ao Ministério da Saúde, que as distribui para os Estados e estes aos municípios, “cabendo aos gestores a decisão sobre o uso das doses”.
Questionada sobre previsão de repasse nos próximos meses, a Fiocruz acrescenta que prazos são atualizados “de acordo com a chegada de novas remessas do Ingrediente Farmacêutico Ativo” e que a instituição permanece “com capacidade de produção superior à de disponibilização do IFA importado e aguarda a chegada de novos lotes ainda este mês”.
O Instituto Butantan informa que já entregou todas as 100 milhões de doses de CoronaVac contratadas pelo Ministério da Saúde para 2021 e que não tem previsão de quando fará nova solicitação à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso do imunizante em crianças e adolescentes. Para um segundo pedido, diz a assessoria de comunicação, é preciso aguardar dados de estudos conduzidos na China. A Janssen não respondeu aos questionamentos da reportagem.