Lançado no final de 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o desafio de eliminar a praticamente zero a incidência de casos de câncer cérvico-uterino, até 2030, ainda tem um longo caminho a ser percorrido. No Brasil, as baixas coberturas vacinais e a hesitação são alguns dos obstáculos a serem transpostos para atingir essa meta, elencaram especialistas durante a XXIII Jornada Nacional de Imunizações.
O sinal de alerta se justifica, conforme demonstrou a pediatra Mônica Levi, presidente da Comissão Técnica para Revisão dos Calendários Vacinais e Consensos da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm). Em 2018, o número global de novos casos de câncer cervical foi estimado em 570 mil, com, aproximadamente, 311 mil mulheres morrendo em decorrência da doença. No ano passado, os óbitos passaram para mais de 340 mil. Nesse cenário, caso novas medidas não sejam tomadas, as projeções indicam aumento, até 2030, 700 mil casos novos por ano, enquanto as mortes passarão para 400 mil.
Para que essas estimativas não se tornem realidade, a OMS sugere uma abordagem feita em três grandes eixos: a vacinação contra o HPV em 90% das meninas até 15 anos, rastreamento de 70% das mulheres utilizando exames de alta-performance aos 35 e aos 45 anos, e 90% das mulheres com tratamento quando a doença for identificada.
– Se o mundo mantiver essas metas dos 90-70-90, vamos evitar 74 milhões de novos casos e 62 milhões de mortes em países de baixa e média renda nas próximas décadas. Um dos principais pilares da campanha é a vacinação. E as ações têm que começar agora para garantir esses índices nas próximas gerações – reforçou Mônica, acrescentando que os piores indicadores são observados justamente em países mais pobres, onde o acesso à saúde é menor.
Viés socioeconômico
Bastante relacionado com as condições socioeconômicas de um país ou região, o câncer cervical concentra 90% das mortes nos países menos desenvolvidos, como parte da África e Ásia e países da América Latina.
No Brasil, ele é o terceiro mais frequente nas mulheres, ficando atrás do câncer de mama e de cólon e reto (desconsiderando os de pele não melanoma). Os Estados do Norte são os com maior prevalência, enquanto os do Sul têm as menores taxas.
Realidade brasileira
No Brasil, a vacina contra o HPV foi incluída no Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 2014 para meninas de 11 a 13 anos, e em 2016, foi ampliada dos nove até os 14. Em 2017, a imunização foi aberta para os meninos de nove a 14 anos, colocando o país entre um dos primeiros da América do Sul a englobá-los na campanha. Desde a inserção da vacina no PNI até agora, já foram repassadas aos Estados mais de 50 milhões de doses do imunizante, que é oferecido gratuitamente nos postos de saúde.
No entanto, a despeito da oferta nos serviços públicos de saúde, as coberturas, especialmente da segunda dose, estão aquém do desejado, mostrou Ana Goretti, pediatra do PNI e responsável pela vacina do HPV dentro do Programa.
Dados referentes a 2019/20 apontam que a cobertura vacinal da primeira dose entre meninas de nove a 14 anos é de 83%. Ao analisar a aderência à segunda dose, o percentual cai para 55,6%. Entre os meninos esse índice é ainda mais preocupante. A primeira dose tem cobertura de 57,9% e, a segunda, de apenas 35,6%.
– Vemos uma diferença muito grande entre a primeira e a segunda dose. Também observamos que Estados como Paraná, Paraíba, Pernambuco, Espírito Santo e Santa Catarina, que têm uma legislação que pede a carteira de vacinação completa no ato da matrícula escolar, impacta na maior cobertura vacinal – observou Ana.
No Rio Grande do Sul, a cobertura da primeira dose é de 78,7% entre as meninas e de 57,4% entre os meninos. Já a segunda aplicação chega a 52% para elas e 36,3% para eles.
A baixa adesão ao imunizante é multifatorial, sobretudo nessa faixa etária. O problema de sensibilizar os adolescentes da importância da vacinação não é exclusividade brasileira, explicou a médica do PNI.
– O adolescente se acha invencível, mas fica vulnerável a doenças imunopreveníveis – argumentou Ana.
Somam-se a isso, o pouco envolvimento do setor de educação, que dificulta a vacinação nas escolas, atuação dos grupos antivacinas, percepção equivocada a respeito da segurança e eficácia das vacinas e pouca divulgação dos profissionais da saúde.
– A vacina do HPV é a campeã de notícias falsas – alertou Ana. – E eu gostaria de chamar a atenção para outra coisa: é preciso prescrevê-la. Quando o médico receita, as famílias vacinam –finalizou a médica do PNI.
Papel da comunicação
Consenso entre os palestrantes, a comunicação exerce papel fundamental nas campanhas de vacinação. Com o crescente fenômeno da desinformação e propagação de notícias falsas, torna-se ainda mais importante divulgar informações sobre segurança e eficácia dos imunizantes, dois aspectos frequentemente colocados em dúvida na vacina contra o HPV.
– É um contrassenso quando a gente pensa que é esse câncer é totalmente evitável. E a prevenção primária é a vacinação. As vacinas são extremamente eficazes e seguras. Temos um grande trabalho a fazer para melhorar a adesão a esse imunizante, pois ele só vai funcionar se for aplicado – pontuou Mônica.
Ricardo Machado, jornalista que responde pela Coordenação de Comunicação da SBIm, destacou que a maneira de se aproximar dos adolescentes é ocupando os espaços que eles mais frequentam, como os meios digitais, atualmente. Para chamar a atenção deles, a criatividade é a palavra-chave:
– Os materiais têm que despertar curiosidade e ter humor. Eles são inteligentes, sabem quando estão sendo feitos de bobos – defendeu Machado.
Além disso, ponderou, é preciso adaptar os conteúdos para consumo nas mais diferentes plataformas, principalmente, o celular. Imagens impactantes, como as impressas nas carteiras de cigarro, e mensagens testemunhais, com forte apelo emocional, também são outras formas de comunicação bem aceitas pelos jovens.