Com o objetivo de conter possíveis novas variantes, em especial a Delta, originária da Índia, Estados brasileiros começam a reduzir o intervalo entre as doses de vacinas contra a covid-19 para assegurar o quanto antes uma maior proteção da população. A discussão também é conduzida pelo Palácio Piratini, que nesta semana começou a ouvir especialistas para decidir se fará o mesmo no Rio Grande do Sul.
A decisão é complexa porque oferecer a segunda dose da vacina mais cedo implica, em meio a um cenário de poucos imunizantes, reduzir a velocidade de oferta da primeira dose a novas faixas etárias. Se a aplicação da segunda dose for muito antecipada e não houver maior repasse, a campanha pode perder ritmo.
Hoje, o Ministério da Saúde estipula intervalo de 12 semanas (três meses) para as vacinas da Pfizer e da AstraZeneca, a despeito de as bulas indicarem prazo menor, e 28 dias para CoronaVac – o imunizante da Janssen é de aplicação única.
Conforme o jornal O Estado de S.Paulo, os governos de Santa Catarina e do Espírito Santo decidiram antecipar a aplicação da segunda dose da AstraZeneca para 10 semanas. Em Pernambuco, passou para nove semanas. No Mato Grosso e no Maranhão, o prazo definido foi de oito semanas. Goiás informou que irá antecipar em “alguns dias”. O Estado de São Paulo avalia a redução.
— Essa variante Delta é uma preocupação. É a que a penetrou o maior número de países e surpreendeu nações como Israel e Reino Unido, onde já está presente em percentuais elevados — disse o diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas.
Ele afirmou que, embora as vacinas percam eficácia frente à cepa Delta, as duas doses são capazes de oferecer boa proteção.
— Por isso, muitos consideram a alteração do calendário, prevendo a antecipação da segunda dose. Isso tem de ser considerado e é correto — completou.
O diretor do Butantan afirmou, ainda, que a CoronaVac, vacina produzida pelo instituto, mostrou boa proteção contra a variante Delta em estudo em laboratório.
O Ministério da Saúde informou a GZH que não há discussão formal sobre antecipar a aplicação da segunda dose com o objetivo de conter novas variantes. Acrescentou que qualquer mudança passa pela Câmara Técnica Assessora em Imunização e Doenças Transmissíveis.
A variante Delta aos poucos começa a predominar em diferentes países – já está presente em 96 nações, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), após provocar uma onda de novos casos e mortes na Índia.
No Brasil, já foram identificados 11 casos da Delta em seis Estados, segundo o boletim epidemiológico mais recente do Ministério da Saúde: Maranhão, Rio de Janeiro, Goiás, São Paulo, Paraná e Espírito Santo. Não se sabe se, no Brasil, ela será capaz de prevalecer frente à Gama, identificada em Manaus.
Na capital paulista, a prefeitura vê indícios de transmissão comunitária (não importada): um paciente diagnosticado com a cepa relatou que trabalha em casa, não teria viajado nem entrado em contato próximo com pessoas que viajaram.
O coordenador-executivo do Centro de Contingência de São Paulo, João Gabbardo, diz há uma grande preocupação com a variante Delta, mas lembra que, embora a taxa de infecções tenha aumentado no Reino Unido, onde a variante circula, esse crescimento não elevou o número de óbitos no país europeu.
Não existe mágica: se antecipar de 90 para 60 dias a segunda dose para algumas pessoas, isso significa atrasar a primeira dose de uma parte da população
JOÃO GABBARDO
Coordenador-executivo do Centro de Contingência de São Paulo
— Neste momento, o mais adequado é acelerar a vacinação. E em relação a diminuir o tempo entre D1 (primeira dose) e D2 (segunda dose) da AstraZeneca, talvez seja mais interessante ter mais gente vacinada com primeira dose do que antecipar a segunda para alguém — disse Gabbardo. — Não existe mágica: se antecipar de 90 para 60 dias a segunda dose para algumas pessoas, isso significa atrasar a primeira dose de uma parte da população — completou o coordenador-executivo do Centro de Contingência.
Decisões no Exterior
O Canadá e a França decidiram, em meio à ascensão da variante Delta, reduzir o intervalo da vacina da Pfizer para quatro e três semanas, respectivamente. Mas a cobertura de primeira dose no Canadá é de 69% e na França, de mais de 50% da população – já no Brasil, 38,5% dos habitantes receberam uma aplicação.
A bula do laboratório norte-americano orienta 21 dias, mas diversos países, incluindo o Brasil, adotam a regra de três meses. O aumento do intervalo tem o aval da OMS.
Estudos conduzidos nos Estados Unidos e no Reino Unido identificaram maior pico de produção de anticorpos no esquema com intervalo de 12 semanas em relação ao padrão de 21 dias. Além disso, a estratégia ajudou a oferecer a vacina a novas pessoas e garantir algum algum nível de proteção a mais habitantes.
As discussões no RS
Na Secretaria Estadual da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul, a antecipação da segunda dose começou a ser discutida nesta semana, quando a pasta passou a ouvir cientistas independentes, informou Cynthia Molina Bastos, diretora do Centro de Vigilância em Saúde. Ela diz que, em sua opinião pessoal, manter o intervalo maior para ofertar mais vacinas a novas pessoas ainda parece ser a melhor opção.
— A eficácia de uma dose da Pfizer reduz para uns 60% com a nova variante. Isso não é pouco. De forma geral, seguimos a orientação do Ministério da Saúde e qualquer alteração é pactuada na comissão intergestores bipartite, com os secretários municipais — diz Cynthia.
O receio de autoridades se dá após a Índia ter visto grande piora da pandemia com o surgimento da nova variante. Estudos têm resultados diferentes sobre os efeitos da variante quando às vacinas, no geral apontando eficácia ligeiramente menor para casos sintomáticos e manutenção da proteção contra hospitalizações.
A Pfizer anunciou 95% de eficácia geral ao lançar sua vacina. O Reino Unido identificou 88% de proteção contra a variante Delta, enquanto Israel registrou 64% de proteção contra todas as cepas antes do surgimento da mutação ocorrida na Índia. O Canadá calculou 87% de efetividade. Já contra hospitalizações, o governo de Israel apontou 93% de eficácia da Pfizer.
O vice-presidente da Região Sul do Conselho Nacional de Secretários Municipais da Saúde (Conasems), Maicon Lemos, também secretário da Saúde de Canoas, destaca que a alteração de intervalo depende de decisão do Plano Nacional de Imunizações (PNI) – portanto, do Ministério da Saúde – e pontua que o país precisa de mais vacinas para implementar a mudança.
Não há pactuação sobre reduzir o período das doses da AstraZeneca reconhecida pelo Conasems. É preciso ter, para aprovar essa diminuição, doses o suficiente para encurtar o tempo entre primeira e segunda dose
MAICON LEMOS
Vice-presidente da Região Sul do Conasems
— Não há pactuação sobre reduzir o período das doses da AstraZeneca reconhecida pelo Conasems. É preciso ter, para aprovar essa diminuição, doses o suficiente para encurtar o tempo entre primeira e segunda dose. O Conselho de Secretários Municipais do Rio Grande do Sul, neste momento, não está com esta pauta em evidência — afirmou a GZH.
Em Porto Alegre, a vacina da Pfizer chegou a ser aplicada com 21 dias de intervalo, conforme a bula, mas o intervalo passou para três meses após orientação do Ministério da Saúde e do governo do Estado.
O diretor da Vigilância em Saúde da prefeitura da capital gaúcha, Fernando Ritter, afirma que é a favor da antecipação da dose para conter novas variantes, mas diz que Porto Alegre não pode tomar a decisão sozinha, sem ser acompanhada por outros municípios.
Defendo essa tese de que, quanto mais vacinarmos com esquema completo, melhor. Sei que reduz a chance de complicações com uma dose só, mas, com nova variante, defendo que o governo federal reveja essa posição, ainda mais agora, com a chegada de novas doses e quatro diferentes tipos de vacina
FERNANDO RITTER
Diretor da Vigilância em Saúde da prefeitura de Porto Alegre
— Essa perspectiva é algo a ser discutido no Brasil. Defendo essa tese de que, quanto mais vacinarmos com esquema completo, melhor. Sei que reduz a chance de complicações com uma dose só, mas, com nova variante, defendo que o governo federal reveja essa posição, ainda mais agora, com a chegada de novas doses e quatro diferentes tipos de vacina. Só que eu não vou fazer um cavalo de batalha contra o Ministério da Saúde e o governo do Estado, isso prejudica Porto Alegre. Teve gente que queria pegar voo até Porto Alegre para ganhar a vacina da Pfizer com intervalo menor — afirma Ritter.
O virologista Fernando Spilki, professor da Feevale e coordenador da rede Corona-Ômica do Ministério da Ciência, Saúde e Tecnologia, também defende a diminuição do intervalo entre as doses.
— Aprendemos que segunda dose é fundamental. Os estudos mostram que, em locais afetados pelas variantes Alfa e Delta, a eficácia da primeira dose cai muito, então, a segunda dose se torna extremamente necessária para dar uma eficácia aceitável que ajude a controlar a pandemia — diz.
O médico infectologista Ronaldo Hallal, consultor da Sociedade Rio-Grandense de Infectologia, diz que, por haver agora um contingente maior de vacinados e de pessoas imunes por algum tempo devido à infecção, chegou a hora de reduzir o intervalo da segunda dose para evitar a propagação de novas cepas.
— Seguindo critérios de prioridade, a melhor decisão é encurtar o tempo entre a primeira e a segunda dose para ter uma proteção mais eficaz do que aumentar a população com uma dose só — diz Hallal.
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociências e coordenadora da Rede Análise Covid-19, defende antecipar a segunda dose em algumas semanas, em um patamar intermediário: nem tão cedo como estipulam as bulas, nem tão distante como agora. Mas destaca que é preciso ter vacinas para a mudança.
— Adiantar de forma intermediária talvez seja uma boa resposta para não desacelerar tanto a aplicação da segunda dose. Para decidir, temos que pegar os dados de vigilância genômica e ver se não há prevalência da Delta. Talvez seja algo para fazer em agosto, com a perspectiva de mais doses — afirma.
Se precisa escolher nesse cobertor curto, me parece melhor ter boa parte da população com ao menos uma dose do que ter um grupo mais restrito com duas doses. Ao menos você terá um grupo com algum nível de proteção
AFONSO BARTH
Coordenador do laboratório de sequenciamento genético do HCPA e professor da UFRGS
Com base no cronograma do Ministério da Saúde, estimativa de GZH aponta que o Rio Grande do Sul deve receber 2,34 milhões de vacinas em julho, patamar muito semelhante ao do mês passado. Mas, em agosto, a perspectiva é de uma remessa maior, com ao menos 1 milhão de unidades a mais em relação a julho.
Já o microbiologista Afonso Barth, coordenador do laboratório de sequenciamento genético do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e professor da Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), avalia que é preferível manter o intervalo maior para vacinar mais indivíduos com a primeira dose.
— Se precisa escolher nesse cobertor curto, me parece melhor ter boa parte da população com ao menos uma dose do que ter um grupo mais restrito com duas doses. Ao menos você terá um grupo com algum nível de proteção — avalia.