Leia a seguir a continuação da reportagem "Os desafios enfrentados pelos profissionais da saúde que, no caos da pandemia, chegaram ao limite emocional", cuja primeira parte você pode ler clicando aqui.
O pai e a mãe de Elizandra Cunn, 40 anos, enfermeira do Hospital Moinhos de Vento, na Capital, foram internados com covid-19 no mesmo dia, no mesmo quarto de enfermaria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Maria de Lourdes Pereira Cunn, 71, teve de ser levada para a UTI.
A filha ficou como acompanhante de José Magnus Cunn, 74, que piorou progressivamente. Elizandra passou três dias e três noites sem dormir, de olho no pai. Não conseguia se alimentar. O banho durava menos de um minuto, para que ela não precisasse se ausentar da beira do leito.
– Calma. Aqui você não é enfermeira, é a filha dele – advertiu-lhe um enfermeiro.
Elizandra não contou ao pai sobre o quadro crítico da mãe. Tentava entretê-lo, cercando-o de atenção, falando dos gatos e cachorros de estimação, paixão compartilhada por ambos.
– Vamos cantar uma música? Escutar uma música? – sugeriu a filha certa manhã.
– Estou cansado, muito cansado – respondeu ele.
No momento em que Elizandra ficou sabendo que o pai teria de ser transferido para a UTI, o celular tocou.
– Sua mãe teve uma parada cardíaca – informou a médica, avisando que o óbito era iminente.
Elizandra, com os olhos marejados, despediu-se do pai:
– Vai dar tudo certo.
José não soube da morte da esposa. A situação foi piorando. Em uma tentativa de diminuição da sedação, o paciente reagiu mal.
– Minha revolta é que nunca tivemos uma notícia boa sobre eles. Todo dia era “estado gravíssimo”. E eu tinha que explicar para toda a família. Estava explodindo. Não aguentava mais a ligação diária do hospital. Meu coração ia lá na boca – descreve a enfermeira.
Houve a possibilidade de uma despedida presencial, na UTI, poucas horas antes do falecimento de José, em 22 de setembro. Elizandra encostou no pai. Chorando, pediu perdão pelo que não havia conseguido fazer e rogou que ele não continuasse sofrendo.
Minha revolta é que nunca tivemos uma notícia boa sobre eles. Todo dia era 'estado gravíssimo'. E eu tinha que explicar para toda a família. Estava explodindo. Não aguentava mais a ligação diária do hospital. Meu coração ia lá na boca.
ELIZANDRA CUNN
Enfermeira
– Tentamos de tudo por ele. Sabíamos o que vocês tinham passado com sua mãe – compadeceu-se um plantonista.
Elizandra e as irmãs se tornaram órfãs de pai e mãe em duas semanas. Da chefia, a enfermeira ouviu que poderia retornar ao trabalho quando se sentisse melhor. Depois de se afastar por covid-19 e emendar um período de férias, voltou ao Moinhos uma semana após o enterro do pai. A peculiaridade de seu drama havia se espalhado entre os colegas, que a consolavam, comovidos.
Além do luto, Elizandra lidou com o temor da própria morte. Sentia a perna gelada, o coração acelerado, a respiração curta. A consulta com uma médica e exames a tranquilizaram. Apoio psicológico, recusou, desculpando-se com a profissional que a atendeu, argumentando que respeitava seu trabalho, mas não queria auxílio.
– Estou levando no osso. Nunca tomei remédio. Não quis. Foi uma opção minha. O que uma psicóloga vai me dizer? Que é para eu entender o luto pelo meu pai? Eu entendi. Aconteceu com a gente. Na prática, tenho que ficar perto das pessoas de quem gosto – afirma a enfermeira.
Em uma ala do hospital que acolhe pacientes pós-covid, Elizandra transitou entre sentimentos conflitantes:
– Via aquelas pessoas muito debilitadas e pensava: não sei se queria meus pais assim. Traqueostomia (incisão feita no pescoço, na altura da traqueia, para permitir a colocação de uma cânula para conectar ao respirador), escaras, perda de força muscular. Você olha para as famílias e pensa: “Meu Deus, como eles vão lidar com esses pacientes em casa?”. Mas me dava inveja, às vezes, quando alguém ficava bem: poderiam ser meus pais.
Chefe do Serviço de Psicologia do HCPA, Rita Gomes Prieb destaca que não há como passar ileso pelo momento em que vivemos. Por mais que seja capacitado para lidar com a dor, o sofrimento, a comunicação de más notícias e a morte – desde o início da pandemia, tudo isso em grande escala –, o profissional de saúde terá dificuldade para manter a performance no momento em que for abalado por um evento traumático da vida privada.
– É importante que o profissional possa se dar conta dos seus limites. Muitas vezes, ele não deixa de ir para o plantão porque vai deixar um furo na escala e os colegas na mão. Ele vai, independentemente de como estiver. Na véspera da Páscoa, um colega com suspeita de covid-19 falou: “Não posso estar doente. Estou escalado para o feriado”. Tem que olhar para si. É fundamental. Aquela sensação de onipotência pode ser um risco para si, para o paciente, para o colega. O profissional pode estar desatento, enlutado, sofrendo, não conseguindo prestar atenção ao que está acontecendo ao redor. É importante estar bem para estar ali. Se você não está bem, tem que poder dizer para o colega, para a chefia. Olhar para os seus limites também é um cuidado – reflete Rita.
É importante que o profissional possa se dar conta dos seus limites. Muitas vezes, ele não deixa de ir para o plantão porque vai deixar um furo na escala. Ele vai, independentemente de como estiver. Tem que olhar para si. É fundamental. Aquela sensação de onipotência pode ser um risco para si, para o paciente, para o colega.
RITA GOMES PRIEB
Psicóloga
Tania, a técnica em enfermagem citada na primeira parte desta reportagem, mantém acompanhamento psiquiátrico e toma antidepressivos. Um ano depois da morte de Abel, ela consegue entrar no Conceição com tranquilidade, executando as tarefas que lhe são atribuídas. Agradece a Deus por acordar e ter um lugar para onde ir todos os dias. Quando sente saudade demais, revê vídeos e fotos no celular. Procura conforto no fato de que o companheiro e a mãe não sobreviveram ao custo de penosas sequelas. Para Abel, em especial, a condição de dependente seria intolerável, uma vez que se habituou a cuidar dos outros. Ele morreria por dentro, acredita Tania.
– Você já viveu um grande amor? Aquele amor que queima por dentro. Hoje eu vivo das lembranças boas que ficaram. Você sente falta daquela pessoa, mas sabe que não pode. Um dia eu sei que a gente vai se encontrar, mas não agora. Ele faz muita falta. Não só para mim, para todos que o conheciam. Todos lembram dele com muito carinho – conforma-se Tania. – Hoje eu não tenho mãe, não tenho marido, não tenho pai, mas tenho meus filhos e tenho esperança.