Com o desenrolar da pandemia, uma realidade já esperada por cientistas aos poucos se revela diante do mundo: o surgimento de mutações do vírus da covid-19. As novas linhagens, algumas nativas do Brasil, ainda são estudadas e podem impor desafios para o enfrentamento ao Sars-Cov-2.
Vírus naturalmente mudam conforme a circulação. Quando encontram o sistema imunológico de hospedeiros, eventualmente se adaptam às adversidades para sobreviver – e a linhagem vitoriosa tem sucesso em ser passada adiante.
Neste momento, cientistas ainda analisam o que as mutações identificadas provocam. Sabe-se que algumas são mais contagiosas, mas não mais letais. Investiga-se se podem atrapalhar a eficácia das vacinas em desenvolvimento – e não há resposta sobre isso.
Em um cenário de descontrole da pandemia, como no Brasil, há mais pessoas infectadas e, portanto, mais chances de o vírus desenvolver variantes.
— A frequência com que essas mutações surgem está relacionada ao ritmo das infecções. Se adotarmos cuidados, vamos diminuir a transmissão do vírus e a frequência das mutações — resume a biomédica Mellanie Fontes-Dutra, doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora da Rede Análise Covid-19.
A seguir, entenda o que já se sabe sobre as mutações do coronavírus.
O que é uma mutação?
É uma mudança que pode ocorrer de forma aleatória no vírus a cada vez que ele se replica. A mutação não necessariamente é pior – pode ser, simplesmente, uma mudança qualquer na constituição do vírus.
Quais são as variantes até agora identificadas no Brasil?
Até agora, ao menos cinco mutações foram identificadas no Brasil. A variante importada do Reino Unido, responsável pela nova explosão de casos por lá, foi oficialmente encontrada em duas pessoas em São Paulo. A mutação da África do Sul, mapeada em dezembro, já foi descoberta em uma reinfecção de um indivíduo em Salvador que havia se contaminado com um vírus de linhagem anterior.
Tanto a linhagem do Reino Unido quanto a da África do Sul trazem variação na proteína Spike, a região do Sars-Cov-2 que se conecta à célula humana para invadi-la em um sistema de chave-fechadura. Observa-se que o resultado é a maior facilidade de transmissão.
Uma terceira cepa, nativa do Brasil, surgiu no Rio de Janeiro em julho e predomina hoje no Rio Grande do Sul, mostra estudo coordenado por Fernando Spilki, coordenador da Rede Coronaômica do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) e professor de Virologia na Feevale. De 92 amostras sequenciadas em território gaúcho, 47 eram da linhagem carioca.
Uma quarta variante brasileira foi encontrada no Rio Grande do Sul, em estudo coordenado por Spilki. Até o momento, não há indícios de que seja mais agressiva, mas mais análises serão conduzidas para averiguar os efeitos clínicos da mutação.
Uma quinta linhagem brasileira, identificada em passageiros que saíram de Manaus, foi divulgada nesta segunda-feira (11) pelo governo do Japão.
As mutações são mais transmissíveis?
A variante do Reino Unido é entre 50% e 74% mais contagiosa. Há indícios de que seja mais transmissível também em crianças. Ainda não há porcentagem sobre a variante africana, mas se especula que ela também seja mais transmissível porque se expandiu rapidamente.
As variantes nativas do Rio de Janeiro e de Manaus podem ser mais contagiosas – contêm a mutação E484K, encontrada também na linhagem da África do Sul, explica Fernando Spilki, coordenador da Rede Coronaômica do MCTI.
— Está sendo avaliado se a linhagem do Rio de Janeiro é mais transmissível e se pode escapar da vacina. Ela tem a mutação E484K, também encontrada na (mutação da) África do Sul. Há evidências de que pessoas que se infectaram com uma linhagem anterior acabaram se infectando outra vez, com o vírus dessa nova mutação E484K — diz Spilki.
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, afirmou nesta segunda (11) que a variante de Manaus, sequenciada no Japão, pode aumentar a pressão sobre os serviços de saúde por conta de sua transmissão mais fácil, mas indicou que ainda não há indícios de que tenha maior mortalidade ou leve a complicações mais graves.
Ainda não há dados sobre a transmissibilidade da cepa surgida no Rio Grande do Sul.
As mutações deixaram o vírus mais agressivo?
Essas variações preocupam porque, se forem mais transmissíveis, vão encontrar um cenário muito favorável à disseminação. Temos muitas pessoas se aglomerando e se negando a usar máscaras
MELLANIE FONTES-DUTRA
Biomédica, coordenadora da Rede Análise Covid-19
Não há indícios de que as variantes sejam mais agressivas. A cepa africana pode estar levando jovens sem comorbidades a hospitais, mas não há consenso se a culpa é da mutação. Em termos de saúde pública, um vírus mais transmissível, ainda que não seja mais letal, pode trazer riscos por aumentar o número de infecções e, por consequência, de hospitalizações e mortes.
— Essas variações preocupam porque, se forem mais transmissíveis, vão encontrar um cenário muito favorável à disseminação. Temos muitas pessoas se aglomerando e se negando a usar máscaras. Ainda que a letalidade da variante não seja maior, uma transmissibilidade maior implica mais mortes, porque haverá mais casos — observa a biomédica Mellanie Fontes-Dutra.
As vacinas vão proteger contra as novas cepas?
Estudos estão sendo feitos para averiguar a hipótese. A OMS afirma que ainda não há indícios.
Parte da comunidade científica alerta para o risco de menor eficácia das vacinas em linhagens com a mutação E484K, encontrada na África do Sul, no Rio de Janeiro e em Manaus.
— As linhagens que têm a variação E484K precisam ser investigadas quanto à eficácia das vacinas. Tanto para essa mutação quanto para outras, é algo que terá de ser monitorado com muito cuidado — diz Fernando Spilki.
Há estudos com o soro convalescente de voluntários mostrando que anticorpos desenvolvidos contra uma infecção primária não foram suficientes para evitar uma segunda contaminação por um vírus com a mutação E484K.
— O medo é que seja preciso um rápido desenvolvimento de novas vacinas para incluir essa nova variante — acrescenta Spilki.
Mellanie Fontes-Dutra é mai sotimista: para ela, os indícios ainda são iniciais e as vacinas têm potencial para contornar as mutações.
O medo é que seja preciso um rápido desenvolvimento de novas vacinas para incluir essa nova variante
FERNANDO SPILKI
Professor de Virologia na Feevale e coordenador da Rede Coronaômica do MCTI
— Os dados que obtiveram foi de plasma convalescente. Ou seja, da imunidade que a pessoa faz da primeira infecção. Não foi testado com anticorpos gerados pela vacina. O próximo passo é estudar como o vírus se comporta em soro de pessoas imunizadas com a vacina — diz a coordenadora da Rede Análise Covid-19.
As vacinas baseadas em RNA mensageiro, como a da Pfizer/BioNTech e a da Moderna, usam um procedimento de engenharia genética que permite “reconfigurar” a vacina sem grandes dificuldades, segundo o CEO da BioNTech, Ugur Sahin, explicou ao jornal britânico Financial Times no fim de dezembro.
Ele afirmou que a variante do Reino Unido tem múltiplas mutações, mas a maioria dos locais do vírus que despertam a reação de defesa do organismo seguem inalterados.
— A beleza da tecnologia de mRNA mensageiro é que podemos começar diretamente a produzir uma vacina que imite completamente uma nova mutação e fabricar uma nova vacina em seis semanas — afirmou Sahin.
De fato, pesquisa preliminar feita pela Pfizer em parceria com a Universidade do Texas com amostras de 20 pessoas sugere que a vacina da farmacêutica americana é eficaz contra a variante do Reino Unido e da África do Sul – o estudo não foi revisado por pares. A imunização da Moderna também está sendo testada contra variantes.
As imunizações de vírus inativado, como a CoronaVac, podem ajudar a combater mutações porque inoculam o vírus inteiro – morto e sem risco à saúde. Assim, mesmo que uma mutação tenha um pedaço alterado do Sars-Cov-2, o resto da “carcaça” do vírus ainda estaria ali, o suficiente para o organismo reconhecê-lo e criar uma defesa.
O que acontece se a vacina não proteger contra novas variantes?
Se, eventualmente, alguma mutação reduzir a eficácia de uma vacina, pesquisadores criarão uma imunização atualizada a ponto de proteger contra a variante do vírus. É o que ocorre anualmente para a vacina da gripe, muito mais rápida em sofrer mutações.
— No vírus influenza, um vírus A se combina com um vírus B e isso gera um terceiro vírus. É bem diferente do Sars-Cov2, onde não há rearranjos, mas mutações em pontos específicos do vírus e de forma menos frequente. Se a gente tiver que se vacinar com maior frequência contra a covid, provavelmente não vai ser pelas mutações, mas pelo tempo que a imunidade vai durar — avalia a biomédica Mellanie Fontes-Dutra.
Ainda assim, uma eventual mutação que reduza a eficácia das vacinas exigirá a adaptação de governos e da população até que laboratórios coloquem na rua uma nova imunização. Para evitar o risco, a saída é controlar a pandemia.
— Dado que estamos vendo variações na proteína Spike e na iminência de começar a vacinação, eu diria que se acende um sinal de alerta para as pessoas entendam a necessidade de monitorar as variantes e cobrar dos gestores a necessidade de tomarmos medidas de restringir de forma mais efetiva o crescimento da segunda onda, que é o que dá espaço para a diversificação genética do Sars-Cov-2 — afirma o professor de Virologia Fernando Spilki.