Dez meses após o coronavírus levar a sua primeira vítima, o Rio Grande do Sul ultrapassou, nesta terça-feira (19), a marca de 10 mil vidas abreviadas pela pandemia, segundo dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES). A estatística oficial indicou, às 15h48min, 10.051 vítimas no Estado. No futuro, o vírus será descrito por historiadores como o motivo pelo qual, em menos de um ano, morreram três vezes mais gaúchos do que na Guerra dos Farrapos, que durou uma década.
Milhares de famílias foram obrigadas a acordar em um mundo no qual ao menos um ente querido seu agora está ausente. Privadas do abraço, do beijo e de palavras de afeto, lutam diariamente para conviver com a dor da partida enquanto precisam provar, em uma sociedade polarizada, que seu sofrimento é digno, que seu luto é real e que a covid-19 é uma doença letal.
São pessoas como o gerente de loja Diogo Scheffel, 30 anos, que busca redesenhar a vida sem a presença física da mãe, a artesã Inajá Scheffel. Melhor amiga do filho, ela recebera o apelido "Margarida" por adorar a flor de pétalas brancas. Portadora de lúpus, Inajá tomava cloroquina há quase 20 anos e tinha a doença controlada. Uma vez hospitalizada, recebeu do filho uma boneca com roupinha de margarida para lhe fazer companhia no quarto – meses antes, a menina de pano ficara no hospital com a sogra de Inajá, já falecida, mas não por covid-19.
Após ficar internada por 50 dias, a artesã de cabelos ruivos partiu em 9 de novembro, aos 57 anos. Deixou Diogo em suspenso, na casa de Gravataí tomada por coloridos patchworks, toalhas de crochê e almofadas com bordado. Inajá se foi antes do Natal, sua data favorita no ano, mais do que o próprio aniversário. Na residência, a árvore natalina não foi desfeita pelo filho.
— Ela estava bem amparada, tinha convênio e médicos bons, mas não teve dinheiro que adiantasse. Éramos muito eu e ela, e agora acabei ficando sozinho. Sabemos que os pais partem antes, mas eu imaginava que ela fosse viver mais. E agora? — diz Diogo.
A marca das 10 mil vítimas do coronavírus é ultrapassada no Rio Grande do Sul antes das previsões matemáticas e em meio ao início da vacinação no Estado.
A primeira morte por coronavírus no Rio Grande do Sul ocorreu em 24 de março. De lá para cá, o Estado enfrentou um pico no inverno, uma leve estabilização em outubro, uma piora em novembro e dezembro, e sinais de que janeiro parece chegar a um novo platô em patamares de risco.
Apesar dos avisos, a segunda onda da pandemia no Rio Grande do Sul já registrou mais mortes do que na primeira.
Após o Estado bater, no Natal, um recorde de quase 1 mil internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) por coronavírus, os números vêm caindo a ponto de chegarem a 856 nesta terça-feira (19).
A ocupação em leitos clínicos, para casos de gravidade moderada e antessala do cenário das UTIs, voltou a subir como consequência do Natal, mas tem aparentado estabilidade – abaixo dos níveis de dezembro, mas acima do inverno. A média móvel de mortes caiu: na semana passada, eram 57 vítimas diárias, ante 72 em 16 de dezembro, o maior nível da pandemia.
Quatro médicos entrevistados por GZH destacam que o Rio Grande do Sul foi modelo de sucesso nacional no enfrentamento à pandemia até setembro e meados de outubro, mas deixou a medalha para trás após piorar o desempenho a ponto de a taxa de novos casos e de mortes estar, hoje, acima do ritmo nacional.
No histórico da pandemia, o Estado tem a nona menor taxa de mortos a cada 100 mil habitantes, mas vem perdendo posições – em agosto, quando atingira 5 mil mortos, estava na quarta melhor posição. Na semana passada, o Estado ainda estava em oitavo lugar, mas perdeu o posto para o Pará neste mórbido ranking. Caso tivesse a mesma taxa de óbitos do Brasil, haveria 1,4 mil mortos a mais.
Quando se olha apenas para os últimos sete dias, dados do Palácio Piratini mostram que o Rio Grande do Sul tem a sexta pior taxa de óbitos do país: 4,24 mortos a cada 100 mil habitantes, acima da média nacional de 3,21. O pior cenário da semana é no Amazonas, com 11,82.
Proporcionalmente, o Rio Grande do Sul tem uma taxa de mortalidade semelhante às de Portugal, Chile e Equador – distante de tristes cenários como Itália, Reino Unido e Estados Unidos, mas pior do que Alemanha e Uruguai.
— Tivemos um início de pandemia com poucos casos em comparação a outros Estados, um grande crescimento no inverno e uma queda em outubro que não se sustentou. No fim de novembro, a doença começou a recrudescer. Hoje, o Rio Grande do Sul está em um patamar tão alto que ultrapassamos Maranhão, Tocantins e Alagoas na taxa de mortes. Mas há outros muito piores, como Rio de Janeiro, Amazonas e Distrito Federal — afirma Jair Ferreira, professor de Epidemiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e assessor da Diretoria Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
A médica Lucia Pellanda, reitora e professora de Epidemiologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e integrante do comitê científico independente do Palácio Piratini, destaca que os níveis atuais são críticos, mas pondera que o Rio Grande do Sul apresenta o menor excesso de mortalidade do país.
O indicador analisa o número de mortos por causas naturais durante a pandemia na comparação com o esperado para o período, com base nas estatísticas do ano anterior. Cálculo do Comitê de Dados do Piratini mostra que o Rio Grande do Sul teve, até 21 de novembro, 3,7% mais mortes do que o esperado para o período, o menor excesso do Brasil, com piora nas últimas semanas analisadas. Na pior situação, o Amazonas tinha 53% mais óbitos do que o projetado.
— Tivemos bastante sucesso inicial, mas depois sofremos influência de uma série de variáveis. Entramos no paradoxo da epidemiologia: quando um resultado é muito bom, o risco não aparece, e as pessoas deixam de valorizar as medidas. Vieram as pressões, as coisas começaram a ser liberadas e as pessoas passaram a se comportar como se não houvesse mais pandemia — acrescenta.
Tivemos bastante sucesso inicial, mas depois sofremos influência de uma série de variáveis. Entramos no paradoxo da epidemiologia: quando um resultado é muito bom, o risco não aparece, e as pessoas deixam de valorizar as medidas
LUCIA PELLANDA
Reitora e professora de Epidemiologia da UFCSPA
Alexandre Vargas Schwarzbold, presidente da Sociedade Sul-Riograndense de Infectologia e professor de Infectologia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), elogia a “brutal” expansão de vagas de UTI no Estado, o que assegurou que não faltassem leitos. Mas cita que a ação é insuficiente para conter a pandemia.
— Dez mil mortos é um número muito alto e reflete a falta de coordenação nacional, mas também particularidades do Estado. Faltou expandir e descentralizar a testagem, focar em testes PCR, usar a atenção primária para vigilância epidemiológica, melhorar a comunicação de riscos com a população e o próprio modelo de distanciamento, muito focado em hospitalização. Para salvar vidas, não adianta só abrir leito, tem que conter a infecção. Leito não é garantia de vida, morrem pessoas até no Moinhos de Vento — diz Schwarzbold.
Para o médico Pedro Hallal, professor de Epidemiologia e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o Rio Grande do Sul acertou ao desenhar o modelo de distanciamento controlado, posteriormente copiado pela maioria dos Estados brasileiros, e ao apoiar a pesquisa Epicovid para ter dados da prevalência do coronavírus. No entanto, diz que a situação “degringolou”.
— Dez mil mortes não é o esperado. Até setembro, o Rio Grande do Sul foi um modelo de sucesso e os números eram o esperado. De outubro para cá, a epidemia ficou descontrolada — afirma.
O epidemiologista alega que a flexibilização no modelo, o cansaço da população, os feriadões com viagens em setembro e outubro e as eleições são a causa da piora.
— Houve um acirramento do discurso da dicotomia economia versus saúde pública, o que fez uma pressão pela reabertura. Depois, tiveram os erros cometidos no próprio modelo de distanciamento: a questão de as regiões poderem recorrer das bandeiras que lhes eram atribuídas pelo algoritmo e a possibilidade da cogestão para os municípios poderem adotar protocolos menos rígidos do que o modelo resultava — diz Hallal.
A pandemia veio no momento em que o Brasil já estava dividido. Em uma sociedade cada vez mais individualista, as pessoas só se interessam pelo seu quintal. Há uma diferença entre discutir sobre a solução do problema ou discutir se sequer existe problema. A divisão traz desconfiança
MARIA ÂNGELA BULHÕES
Psicanalista
A normalização da pandemia é esperada assim como em situações de guerra, nas quais a população fica em alarme constante até se acostumar com o nível de perigo, mas a polarização política contribui para o desrespeito às recomendações sanitárias e a inobservância de que não estamos em uma vida normal, observa a psicanalista Maria Ângela Bulhões, do Hospital Psiquiátrico São Pedro e membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa).
— A pandemia veio no momento em que o Brasil já estava dividido. Em uma sociedade cada vez mais individualista, as pessoas só se interessam pelo seu quintal. Há uma diferença entre discutir sobre a solução do problema ou discutir se sequer existe problema. A divisão traz desconfiança — diz a psicanalista.
Essa desconfiança polarizada de quem ignora a pandemia parece desafiar o luto de quem perdeu um familiar ou amigo: o ato de parar a vida por um período para chorar pela dor da perda parece besteira no momento em que aparentemente todos seguem em frente e alguns diminuem a gravidade do vírus.
— É como se as pessoas ao lado não estivessem reconhecendo a dor que a covid está causando para seus entes queridos. A negação produz uma indignação em quem acha que não está sendo entendido em sua dor. Para essas pessoas de luto, eu diria que a gente fica sem palavras frente a uma situação tão difícil, mas que estamos sentindo juntos, sim, o quanto cada um que partiu está fazendo falta para os que os amavam — conclui a psicanalista Maria Ângela.
Depoimentos
Joéser Silva, 35 anos, morador de Cachoeirinha e auxiliar administrativo desempregado. Perdeu o pai, o aposentado Adão Nivaldo da Silva, 63 anos, em 30 de julho.
"Levem a sério. Tu já viu alguém com sintoma grave perto de ti? Não queira passar por isso. É pesado. É muito pior do que qualquer um pode imaginar. Para muitos, 200 mil mortos é só um número. Mas o nome do meu pai está ali. Cada vez que vejo o número aumentar, eu penso: meu pai está ali. Espero que a vacina venha o mais rápido possível. Minha mãe é grupo de risco pela idade, tem 62 anos. Meu pai tinha 63 anos, uma bronquite leve de inverno, mas uma saúde de ferro. A última coisa que falei para ele foi: se cuida."
Leandro Montanha da Rosa, 42, técnico de enfermagem no setor covid do Hospital Ernesto Dornelles. Perdeu o pai, o porteiro Edison Luiz Borges da Rosa, 60, em 8 de novembro.
"Quando meu pai deu positivo, senti uma decepção, porque sou técnico de enfermagem, sinto que poderia ter feito alguma coisa. Perdemos ele muito rápido, em 20 dias. Quando ele foi ser entubado, não resistiu... Eu diria para as pessoas levarem a sério. A covid mata. Eu vejo isso todos os dias. A vida vai continuar, isso é temporário. A vacina está chegando e tem gente relaxando. Vai ter um momento certo em que todo mundo vai poder comemorar, se abraçar e celebrar. Fico pensando: como pode ter gente se programando para o Carnaval? A vida vale muito mais do que um Carnaval. É sempre assim: tem um feriado e, dias depois, os hospitais recebem um monte de gente. Meu pai tinha vários planos. Ia terminar a casa dele, queria viajar com minha mãe para conhecer o Nordeste... Mas esses planos se foram. Somos nove irmãos e estamos chocados, tentando preservar a mãe."
Diogo Scheffel, 30 anos e gerente de loja. Perdeu a mãe, a artesã Inajá Scheffel, 57 anos, em 9 de novembro.
"As pessoas precisam se cuidar. Só tomamos consciência quando acontece com alguém muito próximo da gente. Minha mãe tinha lúpus e tomava cloroquina há quase 20 anos. Se esse remédio adiantasse, ela não teria ficado em estado grave. Ela era nova e não teria partido se não fosse a covid. Nós sempre tivemos uma relação de melhores amigos, mas estes últimos anos estreitaram muito a relação. Minha família é pequena, então éramos nós dois sempre. Um cuidava do outro com muito amor. A viagem pra Bahia que fizemos há dois anos foi a primeira viagem de avião dela. Fiquei tão feliz de poder proporcionar isso a ela. A casa ainda respira ela."