No mesmo dia em que o ministro interino da Saúde do Brasil garantiu que "em janeiro a gente começa a vacinar todo mundo", a notícia da suspensão temporária dos testes com a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com a gigante farmacêutica AstraZeneca disseminou sentimentos de apreensão e frustração pelo mundo.
A pausa foi motivada pela detecção de um possível efeito adverso grave em um participante do Reino Unido, de acordo com informações que circulam na imprensa internacional – o primeiro alerta veio do site americano Stat News, especializado em notícias de saúde e ciência.
O voluntário teria desenvolvido, segundo reportagem do jornal The New York Times, mielite transversa, síndrome inflamatória que afeta a medula espinhal e pode ser provocada por infecções virais — a doença não foi confirmada pela AstraZeneca. Não se sabe se a reação tem relação com a vacina aplicada ou se era uma condição preexistente, desconhecida inclusive pelo próprio indivíduo. O laboratório informou que "o episódio está sendo investigado por um comitê independente, e é muito cedo para determinar o diagnóstico específico".
Cientistas e médicos afirmam que pausas são rotineiras durante o desenvolvimento de vacinas e medicamentos e que isso não significa que o imunizante fracassou e será descartado como opção de combate à infecção pelo coronavírus. Esta seria, inclusive, a segunda vez em que o estudo é interrompido. Ainda não se sabe quanto tempo levará até que o episódio seja esclarecido, e os testes, retomados.
Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, a bióloga Cristina Bonorino, doutora em Imunologia, professora e coordenadora do Laboratório de Imunoterapia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), garantiu que o ocorrido é absolutamente normal em estudos científicos desse tipo.
— Digamos que alguém tem um ataque cardíaco. Até se entender o que aconteceu, até ter perícia médica, para tudo e vê o que está acontecendo. Ainda bem que é assim. Não queremos ter nenhum problema. Um caso não vai significar que tudo o que se fez foi perdido. Isso vai acontecer com todas as vacinas em estudo. Até se entender o que aconteceu com o voluntário, (o estudo) tem que parar — assegurou Cristina.
A professora explicou que os efeitos adversos possíveis são classificados em níveis, sendo o nível 5 o de maior gravidade, quando há necessidade de internação hospitalar. A lisura de todo o processo de investigação científica não corre perigo, dado o rigor dos protocolos e da conduta profissional de quem acompanha a pesquisa. Se outros pacientes desenvolverem sintomas severos – algo além dos efeitos leves já detectados até agora –, isso virá a conhecimento do público, conforme Cristina. O período de suspensão da aplicação da vacina é incerto, mas a bióloga cogitou que pode ser de algumas semanas. A pesquisadora procurou tranquilizar a audiência:
— Não é para ficar desanimado porque tem outras vacinas sendo testadas também. E talvez (o efeito adverso do participante) não seja nada relacionado à vacina. Primeiro tem que se certificar de que tem a ver com a vacina. Mas que bom que estão olhando isso.
Um caso não vai significar que tudo o que se fez foi perdido. Isso vai acontecer com todas as vacinas em estudo. Até se entender o que aconteceu com o voluntário, (o estudo) tem que parar.
CRISTINA BONORINO
Bióloga e imunologista
Ao contrário dos anseios do governo federal, Cristina não acredita que seja possível dar início à vacinação da população no início do próximo ano:
— Realmente não entendo como. O estudo vai até o ano que vem. Vacinar antes de o estudo terminar? Eu nunca vi. Nas vezes em que se fez isso, deu problema. A minha opinião profissional é que não se deve vacinar ninguém antes de ter o resultado final. Estudo tem protocolo, início, meio e fim. Quebrar o protocolo? Eu não quebraria. Isso não é ciência.
Atualmente, o estudo da vacina de Oxford está na fase 2/3 na Inglaterra e na Índia e em fase 3 (final) no Brasil, na África do Sul e nos Estados Unidos. Por aqui, a mobilização envolve cerca de 5 mil voluntários. O braço nacional do estudo é coordenado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Já havia acordo firmado entre o Ministério da Saúde e a AstraZeneca para que o imunizante fosse produzido no país após uma eventual aprovação.
A fabricação seria possível graças a uma parceria para transferência de tecnologia para a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A negociação envolve o que é conhecido como contrato de risco – o Brasil se comprometeu a pagar por 30 milhões de doses do imunizante, sendo eficaz ou não. O governo federal abriu crédito de cerca de R$ 2 bilhões para a Fiocruz receber, processar, distribuir e passar a fabricar sozinha a vacina.
Até o momento, a Fiocruz se limitou a divulgar uma breve nota sobre o tema: "A Fiocruz foi informada pela Astrazeneca sobre a suspensão dos testes clínicos em fase 3 e vai acompanhar os resultados das investigações sobre possível associação de efeito registrado com a vacina para se pronunciar oficialmente". Também por meio de comunicado à imprensa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informou que vai aguardar: "A decisão de interromper os estudos foi do laboratório, que comunicou os países participantes. A Anvisa já recebeu a mensagem e vai aguardar o envio de mais informações para se pronunciar oficialmente".