Em quase três meses de pandemia, o Rio Grande do Sul habilitou junto ao Ministério da Saúde 624 novas vagas de UTI para adultos no SUS. De 31 de março, quando a Capital decretou calamidade em razão do coronavírus, até o início da tarde desta terça-feira (23), o número de leitos do tipo em operação teve crescimento de 50,6%, chegando a 1,4 mil. Se for considerado o total de novos leitos possíveis, levando em conta os habilitados que ainda não estão operando, o total chega a 1.557, com crescimento de 66,9%.
Caso esse reforço não tivesse ocorrido, a taxa de ocupação nas unidades de terapia intensiva saltaria de 69,2% para 91,8%.
Para fazer o cálculo, GaúchaZH comparou a quantidade de vagas existentes antes da ampliação (considerando as redes pública e privada, conforme a metodologia do governo estadual), com a soma atual de pacientes hospitalizados. Na avaliação de especialistas e autoridades, o esforço foi fundamental para garantir que, até agora, o sistema suportasse a demanda ocasionada pela covid-19.
— Se não tivéssemos feito isso, com apoio do ministério, dos hospitais, inclusive da rede privada, que também ajudou, de empresários e das prefeituras, certamente estaríamos batendo na trave, em situação de pré-colapso — diz Arita Bergmann, secretária estadual da Saúde.
Isso não significa que o risco de sobrecarga deixou de existir. Apesar das melhorias, não há garantia de que o quadro siga sob controle e de que a estrutura seja suficiente. O temor é de que a situação se complique com a chegada do inverno e das doenças respiratórias e com o relaxamento dos cuidados. A pressão pelo fim das restrições, aliada ao descumprimento de protocolos, pode contribuir para elevar os níveis de contaminação — e, consequentemente, a busca por hospitais.
— Até agora, não chegamos a usar a plenitude dos leitos destinados à covid-19, o que mostra que a estratégia está funcionando. Mas, mesmo que tenha havido esse trabalho importante de aporte de leitos, é bastante provável que o limite seja atingido, por uma soma de fatores. Ter mais leitos não quer dizer que as medidas de distanciamento podem deixar de ser adotadas. Essa é uma visão simplista — adverte Ricardo Kuchenbecker, professor de Epidemiologia da UFRGS e gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Diretor de Atenção Hospitalar da Secretaria da Saúde da Capital, João Marcelo Fonseca vai além:
— Algumas pessoas têm dito que, se houvesse mais leitos de UTI, a gente não precisaria de novas medidas restritivas. Não é verdade. Nenhum lugar do mundo evitou restrições só com o aumento da capacidade hospitalar. É ingênuo pensar assim.
Com classificação de risco alta (bandeira vermelha), Porto Alegre recebeu o maior volume de habilitações para novos leitos: 233 (veja o mapa abaixo), dos quais 122 estavam operando até o início da tarde desta terça-feira (23). Esse número, segundo Fonseca, vem aumentando de forma gradativa, conforme a necessidade, para evitar desperdício de recursos, ociosidade e desassistência em outras áreas.
Por enquanto, a capacidade máxima do sistema não foi atingida na Capital, embora as internações por covid-19 ou por suspeita da doença venham subindo — e acelerando a criação de vagas. No início da tarde desta terça-feira (23), havia 694 leitos operacionais na cidade, com 549 pacientes. Os dois números são recordes. Sem as vagas recém-criadas, o índice de lotação passaria de 79,1% para 96%.
A estratégia de elevar a capacidade por etapas também se explica pela logística necessária. Mesmo tendo dinheiro à disposição, criar leitos de UTI implica disponibilidade de equipamentos, espaço físico adequado e equipes capacitadas. Esse último aspecto tem sido um dos mais desafiadores.
No Hospital de Clínicas, por exemplo, dezenas de funcionários foram afastados devido à nova enfermidade, e há dificuldades para preencher vagas. O mesmo ocorre em Canoas, onde os hospitais Universitário e de Pronto Socorro abriram seleção para contratos emergenciais. Ambos perderam cerca de 550 profissionais em 21 dias, por diferentes razões (desde adoecimento até licença-maternidade). O município conseguiu aumentar o número de leitos de UTI no SUS de 57 para 80 e há estrutura para abrir mais 10. O problema é a falta de pessoal.
— Muita gente não quer trabalhar com covid-19. É um ambiente de guerra. E é um obstáculo a mais em tempos de pandemia — pondera o prefeito de Canoas, Luiz Carlos Busato.
A realidade não é diferente nos centros urbanos menores, o que preocupa infectologistas. Para Luciano Goldani, professor titular de Doenças Infecciosas da UFRGS, a interiorização do vírus deve amplificar a pressão sobre a Capital.
— Conseguimos nos organizar melhor do que outros Estados nos primeiros meses, mas, mesmo assim, a situação é complicada. A Organização Mundial da Saúde recomenda de um a três leitos de CTI para cada 10 mil habitantes. Cidades menores carecem de estrutura e acabam saturando os hospitais de Porto Alegre. Não podemos menosprezar a doença — alerta Goldani.
Mais 325 novos leitos em vista
Segundo a secretária estadual da Saúde, Arita Bergmann, o Estado tem potencial para implantar mais 325 novos leitos de UTI no SUS, além das vagas já criadas. Para isso, precisa conseguir os equipamentos necessários. Arita também aguarda a liberação de outras 33 habilitações, já solicitadas ao Ministério da Saúde, para São Jerônimo, Uruguaiana, Caxias do Sul e Santa Cruz do Sul.
— Seguimos firmes na busca por ampliações. Se for preciso, já temos edital para credenciamento de leitos privados e, em último caso, também poderemos requisitar legalmente os leitos, mas esperamos que não seja preciso chegar a esse ponto — afirma a secretária.
Para isso, o apoio da população continua sendo fundamental.
— Durante quanto tempo serão necessárias as medidas de distanciamento? Tanto quanto for preciso para que não se atinja a totalidade dos leitos. O crescimento exponencial de casos em uma epidemia pode fazer com que cem, 200 leitos sejam consumidos em um único dia, e o período de internação costuma ser de no mínimo 14 dias. Esse é um detalhe que falta à compreensão das pessoas. Por isso é tão importante que elas sigam as orientações e que não esqueçam: o vírus não faz distinção de CEP — reforça o epidemiologista Ricardo Kuchenbecker.
O fato de um município não ter registrado casos não o torna uma ilha. A presidente da Associação dos Municípios da Região Metropolitana (Granpal), Margarete Ferretti, concorda.
— Esse é o momento de sermos solidários e trabalharmos juntos, um ajudando o outro — diz a prefeita de Nova Santa Rita.