Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Das janelas, hora marcada, aplausos e bravos aos profissionais de saúde no atendimento às vítimas da pandemia. Homenagens a distancia segura.
Em momentos de desespero, necessitamos de heróis.
Kurt Vonnegut (1922-2007), norte-americano de origem alemã, escritor, antropólogo, num ensaio de 1981, sugere a propriedade de eleger-se um herói verdadeiro para os nossos tempos. Concordo com a escolha: Ignaz Semmelweiss. Plena de atualidade a sua argumentação.
“O médico húngaro Semmelweis nasceu em Budapeste em 1818 e viveu 47 anos. Obstetra, dedicou-se à saúde de bebês e mães, o que já poderia capacitá-lo ao título de herói moderno. Há, ainda hoje, pouco cuidado com mães, bebês, idosos e qualquer pessoa física ou economicamente frágil. Ficou horrorizado quando foi trabalhar em uma maternidade em Viena e descobriu que, lá, uma mãe em cada 10 morria de febre pós-parto. Eram pessoas pobres. Os ricos tinham seus bebês em casa. Intrigado, observou as rotinas hospitalares e suspeitou que os médicos é que traziam a infecção para os pacientes. Notou que vinham da sala de dissecação de cadáveres no necrotério para examinar as mães na maternidade. Sugeriu, como experimento, que lavassem as mãos antes de tocar nas mães. O que poderia ser mais insultuoso? Como ousou tal sugestão a seus superiores sociais? Ele, um ninguém?
A morte não dava trégua e Semmelweis insistia em pedir que lavassem as mãos. Até que concordaram, num misto de galhofa, sátira e desprezo.
A morte parou.
Imagine-se a surpresa. Embora não conseguisse explicar por que, através de uma análise estatística afirmava a importância de – lavar as mãos. Salvou milhões de vidas, incluindo, possivelmente, a minha e a sua.”
É sobre observação, busca de conhecimento e novas informações que Vonnegut baseou sua eleição de um herói. Discorre sobre o “fato revolucionário de que hoje podemos falar embasados no que conhecemos, se assim desejarmos”. Afirma que não deixa de ser um “ato de coragem, honra e beleza buscar educação, obter informações sólidas que, devidamente entendidas e utilizadas, podem nos salvar como espécie”. Adverte, no entanto, que “toda a informação sólida de que dispomos agora pode se tornar incômoda para alguns de tempos em tempos”. Essa revolução da informação guarda um amargo paradoxo. A informação parece estar atrapalhando. Nos últimos milhões de anos, a humanidade dependeu de adivinhações. Tivemos bons e maus adivinhos, Vonnegut cita exemplos: Aristóteles e Hitler. “As massas humanas, não tendo informações sólidas, tiveram pouca escolha a não ser acreditar nesse ou naquele adivinho de plantão.”
“Adivinhadores nos deram coragem para suportar provações que não tínhamos como entender – perdas de safras, pragas, vulcões, bebês nascidos mortos. Proporcionavam a ilusão de que estávamos no controle do nosso destino. A adivinhação persuasiva está no cerne da liderança desde sempre, o que surpreende é que grande parte dos líderes deste planeta, apesar de todas as informações sólidas que hoje possuímos, queiram manter-se adivinhos, apenas – adivinhando.”
Bandeiras como a restrição de fundos para o ensino e a pesquisa, sob a desculpa de serem inflacionários, impedem que novas verdades atrapalhem maus políticos. Eles abominam informações sólidas geradas por pesquisas científicas, bolsas de estudo e relatórios investigativos. Não é o padrão ouro que almejam, é o prego na ferradura. De que serve a educação?
Em saúde pública, tudo é recente. Demonstrações de que germes causam doenças contam pouco mais de um século e meio. Pasteur, Lister, Koch... Antes deles, Semmelweis também acreditava nisso. Sem provas, entendeu e evitou aquelas mortes.
“Que gratidão Semmelweis recebeu dos líderes de sua profissão e da sociedade – aqueles que apenas adivinhavam? Não foi levado a sério. Forçado a deixar o hospital, banido da Áustria, terminou sua carreira num sanatório provincial na Hungria. Lá desistiu da humanidade, do conhecimento e de si mesmo. Um dia, na sala de dissecação, enfiou na palma da mão a lâmina de bisturi usada num cadáver. Morreu, como sabia que seria, envenenando seu sangue.
Os adivinhos venceram. Esses os verdadeiros germes nefastos. Não estão realmente interessados em salvar vidas. Importa é serem ouvidos, suas adivinhações são fundamentais para manterem-se dominadores.”
Difícil prever o que virá após a pandemia. É preciso apropriar-se da história. Se enfrentamos o desconhecido, o bom senso deve dar crédito à ciência e não aos adivinhos, às pitonisas, “achismo” que, opondo-se à evidência brutal da morte e do sofrimento, trata perdas como inevitáveis, dissemina falsas informações, desdenha curvas e projeções, sem preocupação real com as falhas de um sistema de saúde.
Em Matadouro 5, Vonnegut cria um irônico bordão que se repete sempre que a morte aparece: so it goes. Pode ser traduzido: “coisas da vida”. Talvez evoque sua ascendência germânica; na expressão das avós de origem alemã, a aceitação de desígnios existenciais: so ist das Leben – “assim é a vida”. Trágico é quando deixa de ser sinônimo de resignação e indica irresponsabilidade, insensibilidade e descaso, um – e daí? – isento de afeto e pobre de espírito.
Basta de suposições, deixemos de ouvir os maus adivinhos, a verdade está presa ao conhecimento. Sem esse, nada se libertará.