A pandemia de coronavírus está colocando grandes porções da humanidade diante de situações inéditas, com potencial para causar desequilíbrios emocionais. É preciso navegar pelo medo, separar-se de entes queridos, enfrentar o confinamento e buscar proteção para si e para os outros sem perder a serenidade.
A psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutora em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), observa que o fato de todos estarem enfrentando a crise ao mesmo tempo pode potencializar o sofrimento e dificultar que uns confortem os outros. Para ela, o melhor caminho para manter o equilíbrio é procurar ser útil e solidário. Confira a entrevista:
Por que as pessoas estão reagindo de formas tão diferentes diante da pandemia, umas agindo como se ela não existisse, outras muito assustadas, estocando alimentos?
Um mesmo acontecimento recai de formas bem distintas sobre as pessoas. Em acontecimentos que são compartilhados por uma população inteira, como um terremoto, um impeachment, uma epidemia, uma guerra, onde toda a população está sob o mesmo fenômeno, cada um vive a experiência de um jeito único, a partir da sua história pessoal. Algumas pessoas que estavam muito desorientadas de repente se organizam e conseguem enfrentar a situação. Outras que vinham muito bem de repente se desorganizam. Algumas pessoas se deprimem, outras somatizam, outras ficam fóbicas. Há reações de negação. Abre-se uma espécie de caixa de Pandora que revela um pouco como cada um já estava antes, mas agora submetido a esse estresse a mais. O fato de ser uma experiência vivida por todos ao mesmo tempo dificulta que alguém esteja numa condição melhor para ajudar o outro. Todo mundo está muito estressado ao mesmo tempo. Isso tem um efeito que alastra o sofrimento. O fato de ser um evento coletivo potencializa o próprio evento. Para quem está no consultório, como eu, vê-se todo mundo passando pela mesma coisa, mas de formas muito distintas.
Existe um mecanismo de defesa que faz as pessoas negarem o problema?
Exatamente. Esses mecanismos vão ser usados singularmente. Cada um vai usar os instrumentos que tem. Um fenômeno geral é um primeiro momento de negação em todos nós, porque é muito difícil ter a dimensão do problema, que é uma coisa que vai chegando aos poucos. A toda notícia muito chocante leva um tempo para o psiquismo responder. Tem um primeiro momento de "não é comigo", "eu estou livre disso". Aos poucos, vai mudando. A sexta-feira, dia 13, foi um momento crucial dessa virada, porque foi um momento em que demos um passo à frente no reconhecimento da crise e da dimensão da crise, como se a gente tivesse materializado o acontecimento.
Sexta-feira foi o dia em que se confirmou que havia transmissão local no Brasil.
Sim, daí não se estava mais naquela tranquilidade por não ter voltado de viagem. Caiu a ficha de que a gente podia pegar de qualquer pessoa, não só de alguém que chegou de viagem. Isso foi uma guinada no processo. Mas ainda vai ter gente indo à praia, gente fazendo festa, ao mesmo tempo que vai ter gente para quem já caiu a ficha.
Quando cai a ficha, a pessoa pode ir da negação para um outro extremo?
Pode, o extremo da irracionalidade. Num momento de fake news, quando muitas mentiras são divulgadas como críveis, a gente transmite o nosso desespero e a nossa angústia para os outros. A virtualidade e a viralização geram tanto fenômenos maravilhosos de solidariedade quanto de situações absurdas e abjetas, que também estão acontecendo. Estamos fazendo um monte de atendimentos online e também em grupos para dar suporte, porque as pessoas já estão confinadas em casa, em isolamento, e tem um desespero associado a essa situação.
Essa situação de isolamento, de quarentena e mesmo de home office pode gerar impacto emocional forte?
Sim, porque a gente está falando de um paradoxo. Você está isolado do dia a dia, está privado de amigos, está privado de familiares mais velhos ou dos netos. Então de um lado você está isolado. Mas do outro lado você está confinado com alguém. Isso também é um fator de estresse muito grande na família. Aumentaram os divórcios na China agora, em função desse confinamento. A gente tem também um índice aumentado de violência doméstica, porque aquelas pessoas que tinham no dia a dia milhões de atividades e convívios que atenuavam o atrito nas relações, elas agora estão confinadas no Big Brother. É um fator de estresse que vai revelar as relações que já não vinham bem, que vai potencializar os problemas que já estavam ali.
O confinamento faz a pessoa sentir a crise como algo mais próximo, podendo perder o equilíbrio emocional?
A gente não pode generalizar. Algumas pessoas estão achando ótimo ficar em casa. Mas o confinamento tem em si o risco de sofrimento psíquico e adoecimento. Porque há uma certa privação de contato social e de atividades que você está acostumado a fazer, de que você gosta. Para algumas pessoas isso pode ser muito insalubre.
Qual o papel dos líderes políticos, aqueles que devem comandar o combate à epidemia, para a saúde emocional da população?
Se tem um papel fundamental do líder é pensar no bem comum e tentar, principalmente em situações de crise, tomar a frente e tentar administrar o caos e a crise. Ele deve tentar tranquilizar o grupo, mostrando que vai tomar as melhor decisões, fazer os melhores procedimentos. No meio da tormenta você quer um timoneiro à altura da situação. Você não quer alguém que fala que está tudo bem, que não tem onda.
O equilíbrio emocional dessa pessoa é importante para passar tranquilidade aos demais?
Claro. Ele precisa ter equilíbrio emocional suficiente para exercer a função, que naquele momento é de liderar a nação para atravessar a crise. A única pessoa que não pode entrar em surto ou fingir que não está acontecendo nada, numa turbulência, é o piloto do avião. Ele representa alguma coisa para todos nós. Quando o líder nega, passando a ideia de que tudo bem ir para a praia e para o culto religioso, ele está traindo o papel dele de proteger a população. E quando toma medidas desproporcionais, ele também está prejudicando essa população. O líder tem de passar lucidez, lógica, tranquilidade, firmeza. Um país sem liderança tende ao caos.
O que as pessoas podem fazer para tentar manter o equilíbrio?
Procurar formas de manter laços sociais. Por exemplo, os italianos estão cantando na janela. As pessoas precisam se sentir úteis. Toda rede de solidariedade que puder ser criada, fazer supermercado para as pessoas de idade, se ajudar, as famílias organizarem as tarefas domésticas de um jeito equânime, tudo isso pode trazer fortalecimento das relações e uma sensação de pertencimento, de se fazer útil. A gente tem de arregimentar as crianças para se sentirem importantes neste momento, cuidando da higiene, ajudando na casa. Isso fortalece o sujeito.
A solidariedade, nesse momento, vai trazer um equilíbrio emocional?
Exatamente. A solidariedade, o exercício da cidadania, a busca por laços, mesmo que virtuais, a tentativa de ajudar o outro, se deixar ajudar, tudo isso pode trazer às pessoas alento nesse momento. Pode trazer um sentimento até de pertencimento social que as pessoas não têm normalmente. A rede de solidariedade pode ter um efeito sobre a saúde mental, sim.