Habituado a transitar em movimentados aeroportos internacionais, o piloto comercial Mauro Hart, 59 anos, não conseguiu conter o espanto ao caminhar pelo terminal de Wuhan, cidade chinesa com cerca de 11 milhões de habitantes, completamente vazio. Apesar de todas as luzes ligadas, o local, de tamanho semelhante ao aeroporto de Guarulhos (SP), tinha apenas 58 viajantes: os brasileiros resgatados após publicarem um vídeo com pedido de ajuda ao governo devido à epidemia de coronavírus.
– Estávamos só nós, o que foi, para mim, muito, muito estranho. É um sentimento muito triste. Enquanto caminhava para a sala de embarque, me lembro da minha alegria, mas também da tristeza pela condição em que deixávamos a China. Era uma condição de resgate, quase uma fuga de um inimigo invisível que poderia levar à morte. Sou piloto, sempre entrei naquele aeroporto e ali estava quase que fugindo de uma guerra contra o vírus – diz o profissional, natural de Venâncio Aires.
Na última terça-feira (11), o governo brasileiro anunciou que todos os repatriados apresentaram resultado negativo para coronavírus. A notícia foi recebida com "alívio" por Hart. Ele afirma que o grupo passará por um segundo exame antes da liberação da quarentena como forma de garantia. O Ministério da Defesa não confirmou nenhuma informação a respeito – em boletim nesta quarta-feira (12), apenas afirmou que os brasileiros seguem sem sintomas.
Como piloto comercial, Hart tem uma vida binacional: mora por 42 dias em Wuhan e folga 21 dias em Natal (RN), onde está a esposa e três filhos. A rotina de vaivém foi forjada há cerca de 11 anos, dos quais seis tiveram como cenário Taipei, em Taiwan, e o restante em Wuhan.
Antes de ir para Anápolis, ele cumpriu quarentena voluntária por 18 dias em seu apartamento na China em meio às notícias de que o vírus se espalhava. Por cinco dias consecutivos, comprou no supermercado alimentos e produtos de higiene que o mantivessem isolado por dois meses.
O primeiro passo para a volta ao Brasil foi dado quando ele se cadastrou junto à Embaixada do Brasil em Pequim para ser repatriado. O órgão enviou três diplomatas –agora também em quarentena – para organizar o transporte dos brasileiros em uma Wuhan paralisada, sem transporte público e com saída do bairro proibida.
No aeroporto sem vivalma, os brasileiros passaram pela área de raio-x e foram inspecionados por médicos do Instituto Aeroespacial. Confirmada a ausência de qualquer sintoma, todos embarcaram nas duas aeronaves da Força Aérea Brasileira (FAB), as únicas em movimento no pátio. Uma grossa cortina separava o avião ao meio: à frente, tripulação, profissionais da saúde e comissários de bordo de reserva. Atrás, os brasileiros resgatados.
Hart descreve a viagem como "tranquila" e relata que os passageiros foram "muito bem cuidados". A cada quatro horas, a equipe médica, vestida com roupa de proteção dos pés à cabeça, checava a temperatura dos viajantes.
O resgate na China é uma inversão de papéis: durante cinco anos, no fim da década de 1980, Hart fora piloto no Esquadrão de Busca e Salvamento da FAB. Se antes salvava pessoas de enchentes ou pilotava com pressa até a Amazônia, agora o gaúcho era a pessoa a ser protegida:
– Chego a me arrepiar de emoção. Participei de muitas missões de busca e salvamento. Agora, fui eu o resgatado em outro país. Acho que nós, como cidadãos brasileiros, devemos nos orgulhar muito desse episódio.
Rotina da base
No hotel da Base Aérea de Anápolis, a rotina é tranquila: horários para café da manhã, almoço e jantar são escalonados a fim de evitar aglomeração. Todos usam máscara nos corredores e comem nos quartos. O recomendado é manter um metro de distância entre si. Fora do prédio, há uma área externa delimitada onde é possível caminhar e descansar sob o sol. Todos receberam uma cópia do livro Senta a Pua! A Força Aérea Brasileira na Segunda Guerra Mundial.
Na noite da última terça-feira (11), uma barraca foi montada para exibição de filmes ao ar livre –a primeira sessão foi de Coringa. Hart se ocupa na leitura, navega na internet e se comunica com a esposa e os três filhos. Acostumado a viver longe da família, ele não se sente deprimido nem triste –pelo contrário, descreve a situação com orgulho de ter gerenciado a crise de forma saudável.
– O clima aqui é bem tranquilo e eu me sinto muito à vontade em uma organização militar porque passei 12 anos servindo ao Brasil como piloto da Aeronáutica. Todos estão muito ambientados. Se você é obrigado a ficar trancado dentro do quarto de um hotel cinco estrelas, ele se torna angustiante. Mas aqui, não, é um clima muito bom, todos têm muita empatia.
Eu esperava mais solidariedade. As pessoas poderiam se informar mais antes de fazer um comentário. Entendo que ninguém quer que a doença venha ao Brasil, mas nós não estamos trazendo a doença
MAURO HART
Piloto comercial
O grupo acompanhou as críticas na internet contra a decisão de repatriá-los. Hart diz que a reação de brasileiros foi recebida com tristeza pelos repatriados:
– Eu esperava mais solidariedade. As pessoas poderiam se informar mais antes de fazer um comentário. Entendo que ninguém quer que a doença venha ao Brasil, mas nós não estamos trazendo a doença. Fomos examinados por autoridades sanitárias chinesas e brasileiras, estamos em quarentena sendo checados duas vezes por dia, fizemos exames bastante específicos… Esses comentários são muito tristes, todos nós conversamos sobre isso.
Livro sobre a experiência
Autor do livro Piloto Expatriado, no qual narra a experiência de trabalhar na Ásia de 2002 a 2008, Hart agora escreve uma obra sobre a experiência do coronavírus. Não é a primeira epidemia que ele enfrenta –quando vivia em Taipei, enfrentou restrições com a Sars (Síndrome Aguda Respiratória Grave, na sigla em inglês). À época, seguiu trabalhando, mas não saía de casa para mais nada.
Desta vez, o perigo foi além: precisou ser resgatado pela Força Aérea.
– Eu estou no olho do furacão agora. Mas estou bem e estou tranquilo. Falo com minha família e logo irei para Natal aguardar o fim dessa crise. Não precisam ter pena porque não estou sofrendo nem sofri. Estou bem e entendo essa quarentena, é o mais seguro para mim e para as pessoas próximas ao meu convívio. É um momento difícil para todos, mas me considero um cara valente.
Esclareça suas dúvidas sobre o coronavírus
O que é?
O coronavírus é uma família de vírus que causa síndromes respiratórias, como resfriado e pneumonia. Versões mais graves do coronavírus causam doenças piores, como a temida Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars, sigla em inglês), responsável pela morte de mais de 600 pessoas na China e em Hong Kong entre 2002 e 2003. A versão de vírus que circula agora é uma espécie nova, desconhecida da comunidade médica, e o medo é de uma pandemia global.
Quais os sintomas?
Dentre os possíveis sintomas estão febre, dor, dificuldade para respirar, tosse, diarreia e pneumonia.
Onde surgiu?
Na cidade de Wuhan, na província de Hubei, na China. A metrópole de 11 milhões de habitantes está isolada. Trens e voos foram interrompidos e detectores de febre foram instalados nas estações de embarque e no aeroporto. Nas estradas, a temperatura corporal é medida pelos postos de controle e, para sair da cidade, o transporte não pode ser feito de carro. Para evitar qualquer concentração de pessoas, as autoridades anularam as comemorações do Ano-Novo Lunar chinês na cidade. As autoridades também proibiram qualquer espetáculo e fecharam um museu.
Como surgiu?
O Centro para Vigilância e Prevenção de Doenças (CDC), equivalente dos Estados Unidos à Anvisa, identifica um grande mercado atacadista de peixes e frutos do mar na cidade de Wuhan como a origem das infecções.
Como ele é transmitido?
De animal para pessoa e de pessoa para pessoa. Segundo o governo chinês, o vírus pode se modificar e ser transmitido mais facilmente. Conforme o CDC, pessoas mais velhas parecem ter maior risco.
Como é o tratamento?
Não há tratamento contra o coronavírus em si, apenas contra os sintomas. Pacientes tomam remédio para baixar a febre e podem receber máscara de oxigênio para respirar melhor, por exemplo.
Quais os cuidados?
Lavar as mãos (sobretudo quem passar por aeroportos), evitar contato dos dedos com mucosas do nariz, olhos e boca. É recomendável usar álcool em gel.
A vacina contra a gripe protege?
Não. Segundo Alexandre Zavascki, chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o vírus da gripe não é o coronavírus, e sim o influenza. Portanto, a vacina regular tomada antes do inverno não protege.
Por que o nome coronavírus?
O nome vem do latim corona, que significa coroa. Visto de um microscópio, o coronavírus parece uma coroa ou auréola.