Desvendar um vírus novo, que se espalha em meio a uma situação de pânico, com uma metrópole em quarentena e milhões de pessoas trancadas em casa, é um desafio monumental para médicos, autoridades e gestores da área da saúde. Pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia, a infectologista Nancy Bellei reclama da falta de informações sobre o alastramento do novo tipo de coronavírus no território chinês e do perfil dos pacientes infectados, o que é determinante para entender o que está acontecendo e planejar ações futuras.
Nesta entrevista, Nancy faz comparações entre a epidemia de coronavírus e as epidemias de outros vírus respiratórios, alerta para o fato de que o Brasil não terá condições de lidar com uma contaminação em grande escala, caso isso venha a ocorrer, e critica a extensa cobertura da imprensa quando só há exploração de polêmicas e debates, sem foco no aprendizado da população.
Por ser um dos poucos Estados do Brasil onde há inverno frio, o Rio Grande do Sul apresentaria, segundo a médica, maior facilidade para a transmissão da doença, mas ela ressalta que "vírus novo não respeita condição ambiental nem temperatura". Ou seja, lugares onde sempre é quente não estão a salvo:
— Ano passado, o H1N1 atingiu o Amazonas em pleno fevereiro. O Brasil tem uma diversidade climática absurda. Uma série de forças age no início de uma epidemia.
Falta informação sobre o perfil dos infectados pelo coronavírus?
Muita. A primeira questão é: quem são essas 30 mil ou 40 mil pessoas testadas em Wuhan? São pessoas da comunidade, escolhidas aleatoriamente? São contatos de pacientes? São pessoas que foram desesperadas ao hospital para se testar? Não foram hospitalizadas 40 mil pessoas em Wuhan. Vi uma foto de pacientes em ambiente hospitalar, deitados em leitos, com profissional de saúde ao lado todo paramentado, sendo que nenhum desses pacientes estava com soro ou recebendo oxigenioterapia. Por que eles estavam hospitalizados se estamos em uma epidemia e eles não eram pacientes graves? Acho que pode estar havendo transmissão da doença em ambiente hospitalar. Não sabemos o número de infectados em Wuhan, sabemos o número de Hubei, mas vamos extrapolar aqui: dá menos de 1% da população infectada em dois meses. Qualquer vírus na comunidade faz isso, ainda mais um vírus novo. Se você pegar toda a população de crianças de zero a seis meses que nasceu no ano anterior e verificar quantas tiveram vírus sincicial respiratório, que é um vírus novo para elas – todo mundo já teve, elas não tiveram –, vai ter um número maior do que esse (de coronavírus). Vi na televisão que eles estavam fazendo 200 testes por dia e agora estão fazendo 8 mil testes por dia. O que significa isso? É gente sintomática, é assintomática? O que estamos vendo em Wuhan não estamos vendo em outras províncias da China, que não fecharam cidades, que não puseram a população em quarentena, que não estão construindo dois hospitais a mais. Temos que usar o número das províncias em que as cidades estão (mais ou menos) funcionando, e não o número de Wuhan.
O que é necessário saber?
Saber a cidade mais populosa, a data em que foi diagnosticado o primeiro caso, a data da primeira morte, e então ver a curva. Aí nós vamos entender como vai funcionar nos outros países. Falta muita informação, e talvez a gente esteja superestimando os dados de Wuhan. Mesmo nos artigos científicos faltam muitos detalhes. Alguns colegas, inadvertidamente, ficam fazendo afirmações baseados em conceitos que estão saindo em artigos publicados às pressas. Entendo que tenham que ser publicados às pressas. Aí o problema, em termos de saúde pública, é que atitude tomar. Ou você toma atitudes draconianas e fecha cidades, fronteiras, todo mundo que chega fica em quarentena, ou você fica inseguro e não faz nada. É difícil porque você não tem os dados. É diferente do H1N1, que surgiu no México, daí apareceu na Califórnia e todo mundo ia publicando, em sites oficiais de notificação, o que ia acontecendo. A gente tem notícia da China pela imprensa, aquilo que é possível (divulgar). Não sabemos como o sistema de vigilância e controle epidemiológico da cidade estabeleceu as normativas ou se cada hora o governo manda fazer alguma coisa, o que é típico de governo autoritário. Muitas vezes, os experts sugerem uma coisa para o Ministério da Saúde e o Ministério da Saúde faz o que quer. Mas, claro, é um vírus novo, ninguém tem imunidade, então é bem provável que você tenha um monte de gente se infectando.
Falta muita informação, e talvez a gente esteja superestimando os dados de Wuhan. Mesmo nos artigos científicos faltam muitos detalhes. Alguns colegas, inadvertidamente, ficam fazendo afirmações baseados em conceitos que estão saindo em artigos publicados às pressas.
Você tem alguma dúvida de que teremos casos no Brasil?
Acho que vai chegar. Pode ser que a gente não faça o diagnóstico quando chegar, porque vai passar despercebido, mas é pouco provável que não chegue. Vejo alguns colegas dizendo que o vírus não deve chegar por causa do clima – isso é um desconhecimento total da dinâmica dos vírus respiratórios. O H1N1 atingiu os Estados Unidos em cheio no mês de julho, que é o mês mais quente do hemisfério norte. Em Cingapura, está tendo transmissão local (de coronavírus), e Cingapura tem a mesma temperatura que a nossa agora. Ano passado, o H1N1 atingiu o Amazonas em pleno fevereiro. O Brasil tem uma diversidade climática absurda. São Paulo hoje amanheceu com 16°C. Vírus novo não respeita condição ambiental nem temperatura. Uma série de forças age no início de uma epidemia. É possível que venham casos assintomáticos, subsintomáticos... Não estamos fazendo avaliação de todo passageiro que desce no aeroporto.
Por ser um dos Estados brasileiros onde há inverno frio, o Rio Grande do Sul está mais vulnerável?
Vulnerável não, mas facilita (a transmissão). Por causa do clima, dos ambientes fechados.
Na sua opinião, o Brasil está preparado para lidar com eventuais casos? O manejo dos casos suspeitos é adequado?
No protocolo de tratamento do Ministério da Saúde, se você olhar lá embaixo, na revisão técnica, tem meu nome. Acho que está razoavelmente adequado. Temos que entender que existe uma certa liberdade dos serviços privados e das secretarias para fazer a mais do que está no documento do ministério. Como a gente não tem caso confirmado até esse momento e não tem transmissão local, (e considerando) essas medidas, esses laboratórios, esses hospitais, esses treinamentos, no momento me parece bem. Mas não daremos conta de uma epidemia que tenha a mesma incidência e procura por serviços de saúde, por exemplo, como tivemos em 2016 com o H1N1 na cidade de São Paulo. Não precisa ir muito longe. Não temos condições.
O sistema não aguenta.
Não. Nem o sistema privado, nem o diagnóstico laboratorial. Se tivermos algo como em Wuhan, uma taxa de ataque muito alta na população, e todo mundo que vai para o hospital precisar ficar porque está com dispneia (dificuldade para respirar), aí vai ser pior ainda. Não temos sistema de saúde para isso. Nosso sistema já está bem deficitário. Faltam profissionais, falta uma série de coisas.
Vemos cenas da China em que motoristas são parados na estradas para checagem da temperatura. É uma medida eficiente?
Aquilo não faz sentido. Se 80% dos casos são leves e tivermos uma epidemia no Brasil, o que tem que fazer é propaganda a toda hora, ensinando a população sobre os sinais de alerta, como a gente faz com a dengue, e orientando sobre quando ficar em casa. Orientar escolas, serviços essenciais, empresas, a comunidade. Para isso, tem que ter um plano de contingência bem estabelecido.
E o Brasil tem um?
Eu ainda não recebi. É um plano que fala "caso se confirme transmissão local, o que deve ser feito". Claro que você pode mudar o plano no decorrer do plano, mas tem que ter um plano, não pode mudar alguma coisa que ainda não fez. Não vi esse plano de contingência no Brasil ainda, parece que estão elaborando. Precisamos ter para caso haja transmissão local. Quando você orienta antecipadamente, consegue mitigar a ocorrência.
Ano passado, o H1N1 atingiu o Amazonas em pleno fevereiro. O Brasil tem uma diversidade climática absurda. São Paulo hoje amanheceu com 16°C. Vírus novo não respeita condição ambiental nem temperatura. Uma série de forças age no início de uma epidemia.
Como uma epidemia termina?
A epidemia por vírus respiratório tem uma curva. Depois que ela atinge um certo número de suscetíveis, ela perde força e aí termina, após um certo número de semanas. Se esse vírus vier para ficar, como outros vírus que surgiram, ele fica com uma pequena taxa de circulação na comunidade. Cada vez que nascer criança ou no caso de pessoas que não se infectaram ainda, pode haver novas epidemias, como acontece com o H1N1.
Já está se trabalhando em um remédio para tratar o coronavírus?
Tem vários estudos. Tem estudos com drogas que já se mostraram úteis in vitro e in vivo com outros coronavírus e tem estudos com drogas que ainda não foram utilizadas. Em termos de segurança dessas drogas e eficácia in vitro, algumas delas já existem, então a fase inicial já poderia ser pulada. A fase três, com um certo número de pessoas, depende do número de pacientes incluídos. Se o dado for muito robusto e isso for revisado pelas agências internacionais e considerado um dado robusto, aí a agência de cada país tem que considerar se vai permitir a venda, a importação e o uso dessa droga com essa indicação. Isso pode levar um tempo mais curto ou mais longo, depende das agências de cada país.
Qual a capacidade e a velocidade de rastreio dos pesquisadores? Se surgir um novo vírus perigoso em algum recanto do planeta, logo será descoberto? Na semana passada, a morte do jovem médico que soou o alerta para o novo coronavírus causou comoção.
Tem uma agência que fica atenta a pequenos dados jornalísticos locais no mundo. Foi assim que o H1N1 foi descoberto. "Em uma cidadezinha morreram tantas pessoas", essa agência fica atenta a esse tipo de notícia para alertar a OMS. E também tem a percepção dos serviços locais, "olha, é uma coisa nova que está acontecendo, vamos testar ou não?", porque tem que ter amostras dos pacientes. Tem a expertise local.
Há exagero na cobertura da imprensa? Está se fazendo muito alarde no Brasil e no mundo?A cobertura da imprensa em situações que geram debates e polêmicas é sempre exagerada. O que estou querendo dizer: uma coisa nova que começa na China, em um momento em que a China está na boca de todo mundo por questões da economia mundial, da relação com o Trump, há questões com países que dependem da China... A China está em todas as esferas, aí surge uma coisa nova na China, demora-se a saber, tomam-se atitudes extremas. Nos Estados Unidos, por outro lado, ninguém que vem da China pode entrar. Ou seja, as duas potências que estão com questões econômicas e políticas ficam envolvidas em uma questão de saúde. A política e a economia já geravam polêmica e discussão, aí vem uma questão de saúde. Tudo que gera polêmica é interessante para a imprensa. No final de semana, era a quarentena dos brasileiros que vieram da China, hoje (11) é a chuva em São Paulo... Muda, é assim mesmo. Desde que a imprensa se preocupe em entrevistar os experts que sugiram o que deve ser feito se a gente tiver uma epidemia, alertando a população, em vez de entrar no debate... Ok, posso dar minha opinião, mas é bom eu ter um espaço para, prevendo que possamos ter uma epidemia, alertar a população sobre quando alguém com uma doença respiratória febril deve procurar um serviço de saúde. Se você faz isso repetidas vezes, tudo bem "usar" esse alarde, essa superexposição da mídia, porque você está treinando a população.
se tiver uma epidemia no Brasil você não tem que ir para um serviço de urgência. Você vai ter febre, tosse, um sintoma gripal como em outras gripes que já teve. Cuide-se da mesma forma: lave as mãos, tente ficar em um quarto sozinho para dormir, separe seus objetos pessoais. Evite contato próximo, a um metro ou dois de distância, com pessoas de grupos de risco.
Então vamos aproveitar e falar sobre prevenção. O que as pessoas devem fazer?
Entendendo o que a OMS está falando, que 80% dos casos são leves e que a maior parte das pessoas que são hospitalizadas com falta de ar são mais velhas, se tiver uma epidemia no Brasil você não tem que ir para um serviço de urgência. Você vai ter febre, tosse, um sintoma gripal como em outras gripes que já teve. Cuide-se da mesma forma: lave as mãos, tente ficar em um quarto sozinho para dormir, separe seus objetos pessoais. Evite contato próximo, a um metro ou dois de distância, com pessoas de grupos de risco (grávidas, idosos, pacientes em quimioterapia, asmáticos, cardiopatas). Quando a febre melhorar e você não tiver mais sintomas respiratórios importantes, pode voltar a ir para a escola e para o trabalho, não precisa mais ficar em isolamento no domicílio. Se precisar do cuidado de alguém, quem cuida de você deve usar máscara. Mas e se não for o coronavírus, se for outro vírus? A mesma coisa. E se eu não tiver uma máscara? Fique distante, cubra o rosto. Aí se evita a transmissão domiciliar. Você só deve ir ao serviço de saúde se não tinha febre e apareceu febre durante o curso da doença; se a febre, em vez de baixar, sobe mais; e se você tem falta de ar, que pode ser cansaço durante as atividades diárias, ao subir escadas, tomar banho, se vestir, falar uma frase inteira sem pausa.