São enganosas as informações de um tuíte publicado no dia 12 de outubro alegando que 80% das vagas deixadas pelos cubanos no Mais Médicos não foram preenchidas por médicos brasileiros. O programa do governo federal, que chegou a ter 18,3 mil médicos atuantes em mais de 3,6 mil municípios brasileiros, conta atualmente com 15 mil profissionais. Desde a saída de Cuba do programa, em novembro de 2018, foram abertos três editais para suprir o quadro de vagas em municípios eleitos como prioritários.
O fim da parceria com Cuba deixou cerca de 8,5 mil vagas abertas. O Ministério da Saúde abriu uma primeira seleção com 8,5 mil vagas ainda em novembro, que teve 7,1 mil postos preenchidos e uma segunda com as 1,4 mil vagas remanescentes em dezembro. De acordo com o governo, após esse segundo edital, todas as vagas deixadas por cubanos foram preenchidas por brasileiros com registro no Conselho Regional de Medicina (CRM) ou graduados no exterior.
No entanto, conforme apurou o Comprova, a alta rotatividade dos profissionais brasileiros dentro do programa fez com que muitas cidades ficassem sem médicos. Em maio de 2019, um novo edital foi aberto, com 2,1 mil vagas em 1.130 municípios que ficam em áreas consideradas vulneráveis ou de extrema pobreza, diante das desistências e de casos como fim de contratos. Ao G1, o Ministério da Saúde informou que 1,3 mil profissionais com registro profissional brasileiro se desligaram do programa até o final de maio.
Se levarmos em conta essas 2,1 mil vagas abertas em maio, após a desistência de profissionais brasileiros, o percentual correto de vagas não ocupadas por médicos locais seria de 25%, ou seja, 75% dos postos iniciais foram preenchidos e não ficaram vagos, como apontado no tuíte. O Ministério da Saúde, porém, não forneceu dados atuais de desistências e vagas em aberto no Mais Médicos, nem se há a previsão de novos editais.
Em agosto, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) editou uma Medida Provisória reformulando o programa para que o Mais Médicos seja substituído pelo Médicos pelo Brasil. Com ele, serão supridas apenas vagas abertas em locais mais distantes e de difícil acesso. As demais serão fechadas.
O Comprova verificou o conteúdo de uma publicação feita em 12 de outubro no perfil @orlandoguerreir no Twitter.
Enganoso para o Comprova é o conteúdo que seja divulgado para confundir, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Como verificamos
A equipe do Comprova procurou o Ministério da Saúde por e-mail e solicitou dados atualizados sobre a quantidade de vagas que ficaram em aberto após a saída dos médicos cubanos e quantas já foram preenchidas desde então. A pasta informou as vagas abertas após a saída de Cuba, disponíveis também no edital, e o número de médicos que atuam no programa atualmente. Os outros dados solicitados, entre eles o número de desistências, não foram enviados.
Também procuramos dados sobre o número de médicos cubanos no país no site do Sistema Integrado de Informação Mais Médicos (SIMM), mantido pela pasta e pela Organização Panamericana de Saúde (Opas).
O Comprova ouviu, sobre a dificuldade da permanência de médicos em áreas mais afastadas de centros urbanos, Carlos Eduardo Aguilera Campos, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Luis Eugênio de Souza, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Foi entrevistado, ainda, o presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Amazonas (Cosems), Januário Neto.
Além disso, entramos em contato com o autor da publicação no Twitter, que enviou links de agências de notícias como possíveis fontes da informação. Nenhum deles, porém, atestava o dado de 80% de vagas desocupadas.
Saída dos médicos cubanos aconteceu após declarações de Bolsonaro
O governo cubano anunciou a saída do programa Mais Médicos em 14 de novembro de 2018, após declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), que criticou os profissionais cubanos diversas vezes durante a campanha eleitoral e afirmou, por exemplo, que iria "usar o Revalida para expulsar os cubanos do Brasil".
O governo de Cuba considerou "inaceitáveis" as mudanças. Ao anunciar o fim da parceria, o governo cubano criticou Bolsonaro e afirmou que o acordo com a Opas foi desrespeitado. "Não é aceitável que se questione a dignidade, o profissionalismo e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio das suas famílias, prestam serviços atualmente em 67 países", afirmou em nota. A administração da ilha definiu que todos os profissionais deveriam deixar o Brasil entre 25 de novembro e 25 de dezembro de 2018.
Em resposta a Cuba, pelo Twitter, Bolsonaro disse que "além de explorar seus cidadãos ao não pagar integralmente os salários dos profissionais, a ditadura cubana demonstra grande irresponsabilidade".
Pelo acordo firmado entre a Opas, a União Federal brasileira e o governo cubano, era pago aos profissionais cubanos um salário de R$ 11.520 — sendo que cerca de R$ 3 mil ficavam de fato com os médicos, valor que chegou a ser mencionado pelo ex-ministro da Saúde do governo Dilma Arthur Chioro. O restante era remetido à Opas, que ficava com 10% desse total e repassava a maior parcela para o governo de Cuba.
Com a saída desses profissionais, 8,5 mil vagas ficaram desocupadas e o governo lançou um edital para o preenchimento. Das posições em aberto, 71 mil foram preenchidas no primeiro edital e outras 1,4 mil remanescentes no segundo, ambos lançados ainda em 2018. Somando as duas seleções, o Ministério da Saúde afirma que as vagas deixadas pelos cubanos foram 100% ocupadas por médicos brasileiros com CRM ou por profissionais brasileiros formados no exterior, que ainda não passaram pelo Revalida (exame necessário para que médicos formados no exterior obtenham o registro para atuar no Brasil).
Devido a desistências de médicos brasileiros e fatores como o fim de contratos, um terceiro edital foi aberto em maio de 2019 com cerca de 2 mil vagas a serem preenchidas. A pasta explicou, por telefone, que estes editais são abertos quando um número "considerável" de médicos deixa o programa ou quando seus contratos são finalizados. Contudo, não especificou a quantidade mínima de vagas que precisam ser abertas para que um novo edital seja convocado.
Reportagem do Estadão na data da saída de Cuba mostrou que havia no programa Mais Médicos 18.240 profissionais — sendo 8.332 cubanos. De acordo com o jornal, os dados foram fornecidos pelo governo brasileiro na época. Ainda nesta matéria, o governo cubano disse que seus médicos atuavam em 4.058 municípios, cobrindo 73% das cidades brasileiras.
Programa enfrenta dificuldade de manter médicos fora das grandes cidades
O Ministério da Saúde não informou quantos dos 2,1 mil postos que ficaram vagos entre dezembro e maio foram preenchidos e o índice de permanência dos médicos até outubro. A pasta enfatizou, no entanto, que a reposição dos profissionais tem sido em municípios com perfis de mais vulnerabilidade e áreas indígenas.
De acordo com o professor Carlos Eduardo Aguilera Campos, da Faculdade de Medicina da UFRJ, é um desafio manter os médicos principalmente em municípios localizados fora dos centros urbanos.
— Como o corte de classe dos médicos é da classe média-alta, existem poucos com origem ou identificação com estas realidades nacionais — afirmou.
Ao Comprova, Campos comentou, ainda, que os médicos cubanos tinham uma identificação com o programa.
— Os cubanos, pela sua história e pela missão que estavam desempenhando, não se importavam se estavam trabalhando no município de São Paulo ou na Ilha de Marajó. Os brasileiros que aderiram ao Mais Médicos são em sua maioria recém-formados e, pela própria natureza do programa, são vinculados por período limitado.
O professor Luís Eugênio de Souza, da UFBA, concorda que a desigualdade na distribuição de riquezas entre as regiões do país é uma das causas da dificuldade para que os médicos permaneçam nesses municípios.
— Os médicos, como todas as pessoas, em geral, buscam viver e trabalhar onde há melhores condições de infraestrutura urbana, incluindo habitação, saneamento, escola, lazer, segurança pública etc. — disse. — No Brasil, como em muitos países do mundo, as melhores condições de vida se concentram nos centros das grandes cidades.
O Amazonas tem diversos municípios em áreas consideradas vulneráveis. Ao Comprova, o presidente do Conselho de Secretários Municipais de Saúde do Estado (Cosems), Januário Neto, disse que o último edital do programa preencheu 40 vagas para 23 municípios no Estado. Neto ressaltou que as vagas que ainda precisam ser preenchidas no Amazonas são em territórios indígenas, onde os médicos ainda não se apresentaram. Segundo ele, cerca de 95% das vagas foram ocupadas por médicos brasileiros, a maioria com formação fora do Brasil.
Mais Médicos foi criado para enfrentar dificuldade em municípios afastados
O programa Mais Médicos foi criado em 2013, ainda no governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), tendo como um dos objetivos suprir a carência desses profissionais nos municípios do interior e nas periferias das grandes cidades. Além de cubanos, o programa ainda contava, desde o início, com profissionais brasileiros e de outros países que se inscreveram.
De acordo com um levantamento do Sistema Integrado de Informação Mais Médicos (SIMM), mantido pelo Ministério da Saúde e pela Organização Panamericana de Saúde (Opas), o número de médicos cubanos no Brasil, em dezembro de 2014, chegou a 11.185 profissionais.
Desde dezembro de 2015, a quantidade de médicos no programa vem caindo gradativamente. O último levantamento, compilado em dezembro de 2018, contabilizava 8.222 médicos cubanos no país, que se dividiam em 2.818 municípios e em 34 Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI).
Segundo a Opas, três eixos compõem o Mais Médicos: o primeiro prevê a melhoria da infraestrutura nos serviços de saúde; o segundo se refere ao provimento emergencial de médicos, tanto brasileiros (formados dentro ou fora do país) quanto estrangeiros (intercambistas individuais ou mobilizados por meio dos acordos com a Opas); e o terceiro eixo é direcionado à ampliação de vagas nos cursos de Medicina e nas residências médicas, com mudança nos currículos de formação para melhorar a qualidade da atenção à saúde.
O salário bruto (pago como uma bolsa, sem descontos) inicialmente era de R$ 11.865,60 e o líquido de R$ 11.244,56. Contudo, no caso dos médicos cubanos, o valor era repassado para a Opas, que o distribuía: 75% eram retidos pela Opas (dessa parte, 10% ficavam com a organização e 90% iam para o governo de Cuba), e apenas 25% retornavam para os profissionais, o que se repetia em outras missões. O contrato de trabalho tinha duração de 36 meses, com possibilidade de prolongamento.
Participação de estrangeiros no Mais Médicos provoca embates desde o início
O programa, que foi considerado a maior bandeira política para a reeleição de Dilma (PT) em 2014, foi implantado em agosto de 2013, dias depois de o país viver o ápice das manifestações contra o governo, que tomaram as ruas entre junho e julho, motivadas, inicialmente, pelo aumento na tarifa das passagens de ônibus.
Desde o início da implantação do Mais Médicos, governo e oposição divergiram quanto à forma de registro provisório dos profissionais vindos do exterior para o programa. Na forma como foi aprovado pela Câmara dos Deputados, o texto do projeto (PLV 26/2013) transferia ao Ministério da Saúde a incumbência de fazer o registro dos médicos estrangeiros inscritos. Apenas a fiscalização do trabalho dos participantes continuaria sendo feita pelos CRMs, e os profissionais estrangeiros não poderiam exercer a medicina fora das atividades do Mais Médicos.
Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a ausência de revalidação de diplomas no programa é constitucional.
Bolsonaro criou um novo programa, o Médicos pelo Brasil
Em agosto deste ano, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciaram um novo programa para substituir o Mais Médicos, após o fim dos contratos da política atual. Batizado de Médicos pelo Brasil, o projeto traz novo critério para distribuição de vagas entre os municípios e novas regras para seleção dos profissionais. A principal mudança é a contratação de médicos pelo regime de Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).
Na época do anúncio, o governo disse que o programa teria 18 mil vagas, das quais cerca de 13 mil em cidades com dificuldade de acesso a médicos. A proposta, definida por Medida Provisória e que dependerá de aval do Congresso, prevê a criação de uma carreira e uma agência reguladora, além de salários de até R$ 31 mil no futuro, graças a bonificações.
O projeto, que está em discussão na Comissão Mista da Medida Provisória n° 890, de 2019, precisa ser aprovado pelo Congresso até 28 de novembro — data em que a MP perde a validade — e, posteriormente, sancionado pelo presidente da República.
Sobre a permanência de profissionais estrangeiros do Mais Médicos, o ministro explicou que, neste momento, só trabalharão aqueles que revalidaram diploma.
Repercussão nas redes
O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.
O texto verificado foi publicado no Twitter pela conta @orlandoguerreir em 12 de outubro e, até o dia 21, o conteúdo tinha mais de 2 mil interações.
O Comprova identificou, ainda, outras publicações de menor viralização fazendo a mesma afirmação. Os boatos circulam desde novembro de 2018. Um dos tuítes, da conta @VictorNassif, recebeu mais de 500 interações e foi publicado no dia 4 de maio.
O Estadão Verifica, que faz parte do Comprova, e o Boatos.org também realizaram verificações sobre boatos envolvendo o Mais Médicos.
Projeto Comprova
A verificação exposta nesta reportagem foi conduzida pelo Projeto Comprova, uma coalizão formada por 24 veículos de mídia, incluindo GaúchaZH, para combater a desinformação sobre políticas públicas federais. A apuração deste texto foi feita por Band, Jornal do Commercio, A Gazeta e SBT, e verificada, por meio do processo de rechecagem, por outros sete veículos: GaúchaZH, Estadão, UOL, Poder360, O Povo e Correio da Bahia.