Depois da polêmica iniciada na quinta-feira (21) pela manhã com uma declaração do ministro da Saúde, Gilberto Occhi, ao programa Gaúcha Atualidade, apontando que a origem do surto de toxoplasmose em Santa Maria era a água, uma equipe de técnicos do ministério voltará à cidade no início da próxima semana para acertar os últimos detalhes da divulgação dos estudos que buscam identificar as causas de propagação da doença. A informação é do próprio ministro.
O comunicado está previsto para a manhã de terça-feira (26), no auditório do prédio da 4ª Coordenadoria de Saúde do Estado. A tendência é de que a pasta aponte a água como fator mais relevante para a propagação do protozoário causador.
Em entrevista por telefone no início da noite desta sexta-feira (22) – primeira manifestação do titular da pasta após a onda de protestos de autoridades e infectologistas locais pela sua declaração –, Occhi, no entanto, negou ter se precipitado. Mas admitiu que ainda não é possível ter certeza sobre o foco.
— A possibilidade da água é muito real. Pode ser uma precipitação, talvez, falar que é a água, apesar de não estar concluso, mas vamos eliminando todos os outros fatores que podem ser condutores do protozoário — disse Occhi, que não participará da divulgação das conclusões das análises.
A fala do ministro à Rádio Gaúcha – bem como a posterior coletiva de imprensa em que ele foi chamado de “extremamente irresponsável” pelo prefeito Jorge Pozzobom – foi contestada também pelo governo do Estado e pela Corsan, além de ter deixado os nervos à flor da pele na cidade. Em coletiva de imprensa, prefeito, procuradora e secretária da Saúde do município não escondiam a indignação, visível em falas com tom alterado e intensas gesticulações.
— Eu duvido que o ministro tenha conseguido pegar uma pilha desse tamanho (ele indica com as mãos o que seria uma grande quantidade de papéis) de documentos, de questionários que foram feitos, e dizer isso de um dia para o outro — bradou Pozzobom ao microfone.
Se a causa for apontada de fato e com precisão, será, pelo menos, um alento diante de uma série de contradições entre aqueles que deveriam convergir em busca de uma solução para um problema gravíssimo, de difícil diagnóstico, que pode levar pacientes à cegueira e tolhir o sonho da maternidade a moradoras da cidade por tempo indeterminado. Desencontros esses cujo resultado é uma população atônita e reticente em tomar medidas de prevenção frente a um surto que já chega a 569 casos confirmados – há outros 312 investigados. Na segunda-feira anterior, 18 de junho, técnicos do ministério haviam deixado Santa Maria com centenas de documentos, incluindo questionários feitos com pacientes e afirmando não ser possível, por ora, precisar a causa do surto.
Santa Maria relutou e ainda reluta em compreender a amplitude do problema que está vivendo. Além das versões oficiais confusas e conflitantes, a comunicação em relação à doença é quase inexistente nas ruas da cidade. Não houve investimento oficial em comunicação visual, como cartazes e panfletos. As informações sobre como se prevenir da doença e diante de quais sintomas procurar tratamento, hoje se limita a espaços comerciais cedidos por emissoras de rádio e TV.
Em parte, a dificuldade da população para compreender o surto e levá-lo a sério se dá pela própria complexidade da toxoplasmose. Além de ser uma doença que pode não apresentar sintomas e ser autoimune (ou seja, o organismo, na maioria dos casos, se cura por conta própria após um ciclo de quatro a oito semanas), ela demora a aparecer nos exames laboratoriais, o que faz com que muitas pessoas só descubram que tiveram tempos depois de terem passado por ela.
Outras chegam a receber um ou mais exames com resultados preliminares negativos antes da confirmação. E ainda há os que ignoram a causa de um período de mal-estar e jamais recebem o diagnóstico. Por isso, calcula-se que o número real de casos é bastante superior ao oficial.
Cegueira e pausa indeterminada no sonho da maternidade
Há dois riscos sérios em meio a esse cenário. O primeiro se refere às gestantes. Uma das únicas unanimidades entre os profissionais de saúde ouvidos pela reportagem é de que engravidar, hoje, em Santa Maria, é arriscado e desaconselhável. Quando a contaminação se dá a partir dos seis meses de gestação, é grande a chance de o protozoário se alojar no sistema nervoso do feto, o que pode causar graves sequelas ou morte.
Enquanto o marido, Luiz Ernani Burin, toma mais de 10 medicamentos ao dia para tratamento do olho causado pela toxoplasmose, Graciela dos Santos se lamenta:
— Agora, está essa conversa de que não pode engravidar. Eu tenho 34 anos. Está no nosso horizonte (engravidar). Não pode até quando? Vou morar em uma cidade em que não se pode ter filhos?
O segundo risco é mais difuso e, por isso, exige atenção ainda maior do poder público e da população afetada. Em média, 15% dos portadores de toxoplasmose desenvolvem problemas oftalmológicos, que podem levar à cegueira e exigem monitoramento e tratamento prolongado. A manifestação oftalmológica pode acontecer até dois anos depois da contaminação.
— Considere que, para cada caso da doença, pode haver até três não notificados, então, está longe de ser simplesmente 15% do número oficial de casos — estima Paula Martinez, infectologista da prefeitura.
O caso de Burin, 33 anos, é emblemático em relação a quanto a toxoplasmose pode ser traiçoeira. Pecuarista em Itaara, descobriu ter tido a doença ao investigar uma semana de febre insistente no começo de abril. A data do exame que apontou a toxoplasmose, feito em um laboratório particular, é de 30 de abril, quando os sintomas já haviam desaparecido. A contaminação, provavelmente, deu-se em algum dos finais de semana em que visitou a mulher, moradora de Santa Maria. Graciela não contraiu a doença. Mais de 60 dias depois, na lida de campo, Burin percebeu uma espécie de risco no campo de visão.
Agora, está essa conversa de que não pode engravidar. Eu tenho 34 anos. Está no nosso horizonte (engravidar). Não pode até quando? Vou morar em uma cidade em que não se pode ter filhos?
GRACIELA DOS SANTOS
Moradora da cidade
Ao consultar um oftalmologista com o diagnóstico de toxoplasmose debaixo do braço, foi alertado de que poderia perder até 90% da visão de um olho caso não buscasse tratamento imediato.
— Fico pensando o que aconteceria se eu tivesse ignorado aquela febre. Eu poderia simplesmente não ter dado bola, sabe? Nem morador da cidade eu era. Se a gente, que é esclarecido, patina, imagina quem tem alguma dificuldade — pondera Burin, que saiu da Casa 13 de Maio, onde se concentram os atendimentos de toxoplasmose em Santa Maria, com receitas de 11 comprimidos ao dia por 45 dias.
Desentendimentos acirrados
Embora prefeitura e infectologistas finalmente trabalhem para ajustar os ponteiros e os discursos, nos corredores e gabinetes da rede pública, é nítida a mágoa entre eles. A briga que contaminou os humores em Santa Maria começou em 11 de maio, quando o prefeito Pozzobom postou em seu Facebook uma foto com documentos em mãos ao lado de dois servidores da Corsan. Na legenda, dizia: “Recebi hoje os exames que a Corsan fez para averiguar a presença ou não da toxoplasmose. Graças a Deus, por enquanto, na água não temos problemas”. O ato foi encarado pelos infectologistas como um desserviço, considerando que a água era – e ainda é – a causa mais provável do surto.
A resposta veio com uma nota técnica redigida pelo infectologista Fábio Lopes Pedro, do Hospital Universitário de Santa Maria, e assinada por outros 12 profissionais, três dias depois. “Não podem figuras públicas representantes da principal companhia de distribuição de água do Estado, e o principal gestor do município de Santa Maria divulgar que tais testes diagnósticos excluem cabalmente tal suspeita”, dizia o texto.
A população não consegue levar nada a sério quando as autoridades batem cabeça.
JOSÉ OTAVIO BINATO
Médico com formação em terapia da família
A nota foi uma hecatombe política, inclusive causando cisão entre alguns dos profissionais que a assinaram. Fábio Pedro trocou de telefone e fez voto de silêncio sobre o episódio. Mediante ameaças de processo pelo município, foi redigida uma nota de retratação.
— Nós iríamos ser processados como pessoas físicas. E nós achamos que a cidade não merece que paguemos advogados para nos defendermos da prefeitura, uma vez que estamos defendendo a coletividade — opina um dos infectologistas que assinou a nota.
— Eu poderia ter processado, ele me ofendeu pessoalmente. Mas eu não fiz isso porque, nesse momento difícil do município, eu preciso de todo mundo do meu lado, inclusive dele — disse o prefeito.
José Otavio Binato, médico com formação em terapia da família, lamenta mais um baque na autoestima da cidade. Passados cinco anos do incêndio da boate Kiss, toda má-notícia nova ainda é automaticamente associada ao episódio:
— O sujeito perde um pouco a vontade de ser santa-mariense, de defender a sua cidade. No sentido emocional, pode se ter um sentimento de desistência.
Binato enxerga semelhança entre os episódios da Kiss e da toxoplasmose na rejeição ao discurso desencontrado:
— A população não consegue levar nada a sério quando as autoridades batem cabeça.
Futuro dos medicamentos é incerto
Em meio ao surto, a rede pública está bem abastecida de medicamentos. O receio dos infectologistas é se estará ao longo dos mais de dois anos em que aparecerão novos pacientes com problemas oftalmológicos.
Segundo a 4ª Coordenadoria Regional de Saúde, há estoque de medicamentos para três meses. A garantia do repasse foi motivo de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal de Santa Maria contra a União – responsável pelo fornecimento de três medicamentos estratégicos.
O Poder Judiciário intimou o Estado e o município a apresentarem novo relatório detalhando o estoque atual e a estimativa da quantidade necessária para o futuro. O prazo termina segunda-feira.
A rede pública de saúde ainda trabalha para zerar a fila de atendimentos. O Hospital Universitário restringiu seus atendimentos a gestantes. Os demais pacientes com sintomas são cadastrados para acompanhamento e encaminhados à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e à Casa de 13 Maio para consulta com infectologista. Hoje, o tempo entre o atendimento no posto da saúde e a consulta com os especialistas é de poucos dias, mas alguns dos primeiros pacientes do surto ainda estão vendo um infectologista pela primeira vez. Muitos, aliás, desistem mesmo do diagnóstico em meio à demora.
Elisane Nascimento da Silva, 41 anos, é outra que precisou de insistência. Com sintomas da toxoplasmose desde o final de abril, ela fez quatro consultas e recebeu três diagnósticos negativos antes da confirmação.
— Aí, um belo dia, eu estou fervendo água para beber, olho para a televisão e vejo o prefeito dizendo que está tudo bem com a água. Morri de raiva, sabe? — indagou, descrente.
Diagnóstico e pânico
No início de abril, a professora de Educação Física Daniela Visintainer, 41 anos, recebeu a notícia mais temida pelas grávidas de Santa Maria, o diagnóstico de toxoplasmose. Dias depois, quando o surto da doença foi anunciado publicamente, Daniela já vivenciava a apreensão sobre a gestação do primeiro filho:
— Em fevereiro, comecei a acordar com dor de cabeça e cansada. Como era um sintoma comum na gravidez, não me preocupei muito. Em abril, quando fiz o pré-natal, no final da consulta, relatei por acaso que havia sentido uma bolinha perto do pescoço. Era um linfonódulo aumentado, e a médica percebeu outros. Repetimos todos os exames de sorologia. Deu positivo para toxoplasmose. Eu me apavorei.
O mês seguinte é classificado por Daniela como um “pesadelo”. Além do risco de vida do feto, o próprio exame necessário para examinar se ele contraíra a doença, a aminiocentese, era uma preocupação:
— Digo que eu voltei a ter fé, porque a gente fica tão desesperada que a única coisa que conforta é rezar. Foi horrível. Eu já tinha tido dois abortos anteriores, de início de trimestre. Temi demais passar por isso novamente quando já me achava segura.
Com o resultado negativo do exame, veio o alívio. O ciclo da toxoplasmose, sempre detectado tardiamente pelos exames, deixou o organismo de Daniela antes de contaminar seu primogênito. Provavelmente Daniela não teria a mesma sorte se houvesse contraído a doença em estágio mais avançado da gestação, dois meses depois. Mais tranquila em relação à saúde de Lucas, que nasce em agosto, resta a culpa:
— Eu moro no Centro, tomava água de filtro. Filtro não adianta. Sempre comia bastante salada, deixava de molho no hipoclorito, mas se a causa da doença for a água, isso também não adianta. Eu fiquei me culpando muito, pensando onde tinha errado, o que poderia ter comido de errado. Fica a preocupação com o futuro. Fico pensando se até a água do banho do bebê não teria de ser fervida, já que ele tem contato com ela.
As dúvidas permanecem.