No dia 18 de abril, a confeiteira Camila da Costa Leite, 29 anos, compareceu à uma consulta pré-natal acreditando que o filho já ia nascer. Descobriu que o menino estava morto. Ele foi a primeira vítima fatal do surto de toxoplasmose que atinge Santa Maria desde o início do ano, o maior já documentado no mundo.
Depois de gestar Rafael Calebe por 37 semanas, Camila passou mais de 24 horas recebendo medicação para induzir um parto normal e, como isso não funcionou, teve de submeter-se a uma cesariana para retirar do ventre o bebê sem vida. Antes de entrar na sala de parto, no dia 20 de abril, os médicos perguntaram se gostaria de ver a criança. Achava que sim, mas o marido, Neimar Luís da Silva, 32 anos, funcionário de um frigorífico, fez-lhe uma proposta:
— Eu vou olhar. Se eu achar que tu não não deves ver, tu te importas, ou tu queres olhar mesmo?
Camila deixou que ele decidisse. E nunca viu o filho.
— Ele não tinha deformidade nenhuma. Mas quando meu esposo viu, se abalou muito... Ele passou mal... E achou melhor eu não olhar. Acho que foi melhor assim. Às vezes eu penso: "Eu podia ter visto". Mas ao mesmo tempo sei que ia ser mais uma lembrança dolorosa dele — contou Camila.
A confeiteira recebeu a equipe de GaúchaZH na segunda-feira (28), em sua residência, no bairro Nova Santa Marta, um dos campeões de infecções por toxoplasmose em Santa Maria. Ali, acompanhada da filha e do marido, no terreno onde encontra-se interrompida a obra da casa nova, pensada para acolher uma família prestes a aumentar, ela vive a situação de estar em licença-maternidade, mas sem ter um bebê para cuidar. Trata de cuidar de si mesma, em busca de uma cura para o trauma.
— Em casa, tento pensar pelo lado melhor, não ficar pensando muito nessa parte de ter perdido. Porque a gente fica se perguntando... Imagina, foi uma gravidez toda boa, sem nada, sem complicação, tranquila, e, de repente, perder. Está muito difícil. Tenho uma cunhada que engravidou junto comigo. Uma semana depois de eu perder o Rafael, nasceu o menino dela, o Lucas. Às vezes, quando eu olho para ele, imagino que queria estar também com um bebezinho nos braços — diz.
Já tinha ouvido falar de toxoplasmose, mas não sabia que era assim, tão grave. O mais importante agora é descobrir qual é a causa, se ainda está contaminado. Comigo já aconteceu, mas tem tantas grávidas, tantos bebês...
Gabriela, 13 anos, a filha mais velha do casal, nasceu quando Camila tinha 15 anos. Com medo de ter outra gravidez não programada, caso se atrapalhasse com o anticoncepcional, ela passou a tomar injeções trimestrais, que eliminavam a menstruação. Mais tarde, trocou para a pílula. Em 2016, parou de se prevenir. Sentia-se mais madura, preparada para ter outro bebê, e queria um segundo filho enquanto ainda se sentia nova. Depois de um ano, em agosto passado, engravidou.
Até março, a gravidez de Rafael foi tranquila, sem enjoos, sem vômito, sem necessidade de reduzir o ritmo de trabalho. Os ultrassons indicavam que tudo estava perfeito. Na 31ª semana, o menino já tinha dois quilos. O único percalço eram os exames para toxoplasmose, que toda gestante deve fazer: Camila fez muitas vezes, mas o resultado não era conclusivo. O ideal é a mulher já ter tido a doença, o que reduz o risco de uma nova infecção, prejudicial ao feto. Depois de várias repetições, um veredito: ela ainda não tivera a doença.
No meio de março, Camila teve febre, tosse e dores pelo corpo. Sentia-se muito cansada. À noite, sofria de tremores e suadouros. Já era a toxoplasmose. Naquele momento, Santa Maria vivia o pico das infecções, mas as autoridades ainda não tinham detectado o surto. No posto de saúde, receitaram um antibiótico à gestante.
Em casa, tento pensar pelo lado melhor, não ficar pensando muito nessa parte de ter perdido. Porque a gente fica se perguntando... Imagina, foi uma gravidez toda boa, sem nada, sem complicação, tranquila, e, de repente, perder. Está muito difícil.
A febre passou, mas ela continuou a sentir-se mal. Tinha uma consulta de pré-natal na semana seguinte, mas deparou com o posto de saúde fechado, para dedetização. Resolveu ir ao Hospital Universitário (Husm).
— Foi no finzinho de março. Eles me examinaram, escutaram o coraçãozinho. Estava batendo, estava tudo bem. Voltei pra casa.
Camila conseguiu remarcar a consulta de pré-natal perdida apenas para 18 de abril. Uns dias antes, achou que o bebê não se mexia mais e que a barriga estava endurecendo. Preocupou-se, mas disseram-lhe que eram sinais de que a hora do parto se aproximava. Preparou a mala para o hospital, deixou tudo em casa pronto para receber o bebê (berço, roupas, fraldas) e, apesar do mal-estar, saiu de casa num sábado para fazer fotos de grávida em um estúdio fotográfico.
— Continuei me sentindo mal, cansada, mas como já estava entrando para o final da gravidez... Associei a isso e ao fato de trabalhar em pé. Ninguém falava em surto, em toxoplasmose, em nada.
No dia 18, uma quarta-feira, Camila saiu de casa às 7h, acompanhada de Gabriela, e foi a pé ao posto de saúde. Entrou para a consulta às 7h30min.
— Quando cheguei ao consultório, disse à médica: "Não vejo a hora de escutar o coraçãozinho, porque ele não está mexendo mais como se mexia". Eu estava me sentindo apreensiva. Sabe quando a gente fica com aquela angústia, não sabe o que está acontecendo?
Depois de fazer o exame de toque, a ginecologista começou a verificar os batimentos do feto. Colocou o aparelho de um lado da barriga, depois do outro.
— Não estou conseguindo escutar. Pode ser que não seja nada. Dependendo da posição, pode ser difícil de ouvir. Mas tu tens de ir ao Husm — falou a médica.
Camila recebeu um encaminhamento de urgência, mandou a filha para casa e embarcou em um ônibus. Fez a viagem aos prantos. Telefonou para Neimar e disse que tinha sido mandada ao hospital, mas não teve coragem de falar sobre a ausência de batimentos. Ele percebeu o nervosismo da mulher e avisou que estava indo encontrá-la.
Na recepção do Centro Obstétrico do hospital, pediram para Camila aguardar, mas ela disse que não conseguia, contou que estava com medo. Demonstrava tanta aflição que passaram-na imediatamente para a sala de triagem. A funcionária que a atendeu também não localizou os batimentos cardíacos e encaminhou-a de imediato para o médico. Em instantes, havia uma equipe em volta da confeiteira.
— Quando veio a equipe toda, eu já senti que... Aí a doutora foi olhar o ultrassom e virou a câmera para mim. "Olha, está sem batimento o coração, não está batendo", ela disse. Daí, eu entendi.
Camila telefonou para Neimar:
— Perdemos o Rafa.
Ela foi enviada para um quarto separado, afastado do local onde estão as mulheres à espera de dar à luz. Os médicos disseram que o melhor era tentar induzir um parto normal e, ao meio-dia, começaram a dar medicação com esse fim. Na tarde seguinte, Camila seguia sem dilatação ou contrações. Neimar pediu que parassem com os remédios e fizessem uma cesariana.
No mesmo dia, chegaram os resultados dos exames de sangue. Eles confirmavam a toxoplasmose. Análises posteriores revelaram que foi isso que levou o bebê à morte. No hospital, perguntaram a ela se tinha notado nódulos no pescoço. Foi então que ela lembrou que a filha estava repleta deles. Examinaram Gabriela e constataram que a adolescente também tinha sido infectada.
A cesariana ocorreu às 9h de sexta-feira, 20 de abril. É um momento que Camila não gosta de recordar.
— É uma sensação horrível, horrível. Toda essa parte lá era horrível. Porque, ao mesmo tempo que eu estava com a barriga, meu filho estava sem vida. Sabia que ele ia sair dali e não ia ficar comigo. A hora do parto é para ser uma hora alegre e feliz, de vida, mas não foi isso que aconteceu. Foi um momento ruim, triste — revelou.
Rafael estava com 3,4 quilos. Se a gestação tivesse seguido até a 41ª semana, teria nascido com quatro quilos. No sábado, Neimar fez o registro do óbito e providenciou o sepultamento. Também pediu para a mãe dele retirar de casa todo o enxoval do bebê. Quando Camila teve alta e voltou, no domingo, não havia nada para lembrar que o casal estava à espera de um filho.
— Seria pior chegar e ver as coisinhas dele. Voltar para casa já foi uma sensação péssima, muito estranha. Eu estava preparada para uma coisa, esperando um nenê, e de repente não tem — desabafou Camila.
A hora do parto é para ser uma hora alegre e feliz, de vida, mas não foi isso que aconteceu. Foi um momento ruim, triste.
O que ela encontrou de novo, na volta ao lar, foram seis coelhinhos. Neimar adora criar bichos, e havia programado o cruzamento de um macho e de uma fêmea para que a ninhada coincidisse com o nascimento do filho. Seriam os coelhinhos dele. Durante a gestação, o pai, faceiro, falava do plano de tirar uma foto do bebê com os animaizinhos em volta. Os seis filhotes nasceram no dia 20 de abril, enquanto Camila e Neimar estavam no hospital, retirando o filho morto do útero.
A família vive em uma casa apertada, com um único quarto, dividido ao meio para separar o casal da filha. Quando Camila engravidou de Rafael, Neimar começou a construir com as próprias mãos um sobrado, com previsão de três quartos no andar superior. A obra agora está parada. Mas, ainda no hospital, ele abordou a mulher e disse que quer tentar uma nova gravidez.
— Vamos passar por isso e vamos ter nosso filho — assegurou.
Em casa, esperando os quatro meses da licença-maternidade passarem, Camila fica sabendo de outras pessoas que adoecem no bairro e especula qual a causa:
— Como é uma coisa generalizada, a gente fica pensando que é da água. Mas não mudei hábitos, porque agora o pior já aconteceu. Já tinha ouvido falar de toxoplasmose, mas não sabia que era assim, tão grave. O mais importante agora é descobrir qual é a causa, se ainda está contaminado. Comigo já aconteceu, mas tem tantas grávidas, tantos bebês... Se as pessoas não sabem de onde vem isso, fica mais difícil se cuidar. Quantas pessoas ainda vão adoecer?
Dois meses depois de os casos explodirem, com 460 doentes já confirmados, autoridades de saúde municipais, estaduais e federais ainda não ofereceram respostas para as dúvidas de Camila.