O reciclador Antônio Roberto Bombaxini, 57 anos, está acampado às margens da BR-116 desde 3 de maio, quando a enchente destruiu sua casa na Ilha das Flores, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre. O acampamento improvisado onde ele está abrigado com outros familiares pode ser visto pouco antes da ponte sobre o Rio Jacuí em direção à Zona Sul do Estado.
A fome, a sede e os ratos o incomodam, mas há algo ainda pior. O drama pessoal é não poder sorrir como desejaria.
— Estou esperando ajuda para colocar os dentes de novo. A enchente levou minha dentadura — revela Bombaxini, que senta a céu aberto em uma poltrona verde e surrada, onde tenta se conformar com o próprio infortúnio.
Mostrando onde dorme, Bombaxini conta que chegou a ficar um tempo em um abrigo no bairro Partenon. Não gostou, porém, do tratamento recebido e da rotina do lugar, onde precisava ir dormir às 22 horas.
Do acampamento onde vive, ele aponta para a sua casa, que não fica longe da rodovia. A água baixou, mas deixou como lembrança uma geladeira branca em cima do telhado. Ainda não conseguiu limpar a residência, porque "a água da torneira vem e vai embora" — a estação de tratamento das Ilhas foi ativada neste fim de semana. Além disso, reclama do fedor e do lodo.
— Aqui na barraca é horrível. Não consigo dormir direito e tivemos de alugar o banheiro químico — compartilha, sem ter certeza ainda do dia em que finalmente poderá dormir em uma cama de verdade e na segurança do lar.
Segurança ameaçada pelos veículos
Nesta quarta-feira (12), a reportagem de GZH visitou algumas famílias acampadas ao longo das BRs-116 e 290. A situação de todas é semelhante. Precisam de doações de alimentos, água e roupa para sobreviver. Não querem ir para abrigos ou se afastar de suas casas e animais.
O motorista de caminhão Milton Lemos do Nascimento, o Maneco, 58, montou acampamento às margens do km 100 da BR-290. No local, que fica logo depois da ponte do Saco da Alemoa, no sentido Interior-Capital, cones sinalizam para os motoristas diminuírem a velocidade.
O trecho oferece risco para o morador da Ilha Grande dos Marinheiros e sua família. Alguns veículos passam em alta velocidade, tirando fininho das barracas. Na primeira delas se vê a bandeira do Brasil.
— Nos primeiros cinco dias aqui não apareceu ninguém para nos ajudar. Depois vieram voluntários, que nos conseguiram banheiro químico, e bombeiros, de jet-skis — afirma Maneco, que se revolta quando os carros passam muito perto do acampamento.
Antes do banheiro químico chegar, Maneco ficou 22 dias sem sanitário, obrigado a fazer as necessidades no mato. Estima que perdeu toda a casa de madeira onde morava. Seu carro inundou e o caminhão que usava para trabalhar está atolado na propriedade. A cheia matou muitos de seus animais, como cabritos, porcos, coelhos, galinhas, pavões e até a calopsita de estimação. Todos morreram afogados durante a inundação do bairro Arquipélago. Alguns dos cães sobreviveram e o acompanham no acampamento, onde passa os dias desde 2 de maio.
— O que nos prejudicou nessa enchente foram os muros das marinas. Estão aterrando muito os banhados e desmatando — critica.
Maneco optou por não sair de perto da sua casa e pretende permanecer na estrada até quando puder. Ele reclama, também, das pessoas que querem levar seus animais para outros lugares, sob a alegação de maus-tratos.
— Os voluntários me convidaram para ir para um sítio deles, mas disse que não posso deixar meus bichos — recorda.
Nossa ilha é terra de ninguém.
GABRIELA SANTOS FREITAS
Dona de casa, 28 anos
A esposa e dona de casa Gabriela Santos Freitas, 28, assegura que nenhum representante da prefeitura ou do governo apareceu no acampamento da família. De chinelos, ela abraça a filha Natália, 10, e critica empresários que querem desmatar para construir sem limites.
A recicladora Eronice Pereira Ramos, 44, também vive na Ilha Grande dos Marinheiros. Mas agora precisa suportar o frio e o barulho dos carros embaixo de uma ponte no km 99 da BR-290. Nesta quarta, ao lado de outros familiares e vizinhos, a trabalhadora escolhia roupas que recebeu como doação. Segundo relata, foi convidada a ir para um abrigo. Porém, optou por permanecer onde se encontra em função dos cachorros de estimação.
— Perdemos tudo dentro de casa: geladeira, roupeiro, colchão. Não tem luz nem água — enumera.
Apesar da situação difícil, a recicladora afirma não ser incomodada por ninguém no acampamento. Pessoas da comunidade e voluntários solidários param no trecho da estrada e levam comida e água em garrafas.
— Preciso de colchão e fogão — pede.
Questionada se teve tempo hábil para sair de casa durante a enchente histórica, ela resume o que sentiu quando as águas chegaram ao telhado da residência:
— Se não saísse, eu ia morrer.
O que diz a prefeitura
A prefeitura de Porto Alegre afirma, por meio da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), que não pode obrigar as famílias a saírem das estradas. Também disse que a maioria das mulheres e crianças foram encaminhadas para abrigos temporários. E que os homens decidiram por conta própria que não iriam sair de perto das casas.
A Fasc menciona que foram solicitados banheiros químicos e donativos pelas famílias às margens da estrada. E assegura que as equipes do Centro de Referência de Assistência Social (Cras), do Registro Unificado e de outras secretarias se dirigem sistematicamente aos locais para realizar o cadastramento das pessoas, que estão sendo atendidas e recebendo orientações.
A Fundação compartilha que, neste momento, 2.838 pessoas estão abrigadas em 62 abrigos temporários. E que em torno de 100 famílias permanecem acampadas às margens da estrada.