Nas comunidades, elas ouvem, apoiam e fazem a diferença. Um dado apresentado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) Contínua de 2022 mostra que as mulheres são maioria quando o assunto é trabalho voluntário. O número aponta que 7,3 milhões de pessoas (4,2%) exerceram algum voluntariado naquele ano, no Brasil. A taxa de realização é maior entre o público feminino, 4,9% contra 3,5% dos homens.
A professora do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Vanessa Marx acredita que esse índice é bastante positivo e deve refletir na diminuição da desigualdade de gênero:
– É importante que as mulheres ocupem essa posição de liderança. Dessa forma, podemos reverter esse pensamento de que só os homens podem liderar. Nós percebemos essa presença cada vez maior, desde as primeiras reuniões do Orçamento Participativo.
Essa visão também é compartilhada pela professora do Departamento de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Nilza Rogéria Nunes, autora do livro Mulher de Favela – Experiências Compartilhadas.
Em suas pesquisas, constatou que as mulheres trabalham em prol da comunidade de forma coletiva, buscando o engajamento cada vez maior do público feminino:
– Quando as mulheres ocupam esses espaços, querem trazer mais mulheres, aumentar essa representatividade. Juntas desenvolvem projetos para apoiar outras mulheres, sempre buscando contribuições para a sociedade, como a ampliação de vagas em creches, o acesso à saúde pública e o combate à violência. Elas não lutam por elas, lutam por muitas.
A seguir, GZH apresenta quatro mulheres que são referências na periferia de Porto Alegre.
Nidia, da Restinga
A Restinga ainda nem tinha se tornado oficialmente um bairro e Nidia Albuquerque, 70 anos, já construía sua vida no extremo-sul da Capital. Foi em 1979, há 45 anos, que ela passou a morar no bairro, que foi reconhecido apenas em 1990. Lá, criou os filhos, viu os netos crescerem e, hoje, conta com a companhia dos bisnetos.
A descrição que Nidia faz quando relembra o momento em que chegou na Restinga é bem diferente da paisagem atual. Hoje são mais de 60 mil pessoas vivendo no bairro, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
– Quando eu vim morar aqui (na Restinga) era um deserto, não tinha nem luz nem água. Naquele tempo não havia paradas de ônibus, as ruas não eram asfaltadas. Hoje, a Restinga é uma verdadeira cidade – conta.
Foi no bairro, também, que Nidia descobriu sua vontade de atuar em prol da comunidade. As condições precárias de moradia, a ausência de saneamento básico e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde fizeram com que a moradora começasse a questionar-se sobre a ausência de políticas públicas para a região.
Foi na Associação de Moradores da Vila Restinga (Amovir) que começou a sua atuação. Há oito anos, Nidia preside a instituição. Revela que são inúmeros os desafios, mas que, para ela, o principal compromisso é com a saúde pública e com a proteção às mulheres vítimas de violência. Essas, explica, são suas maiores batalhas:
– Ser uma mulher negra à frente de uma organização é uma tarefa difícil. Já sofri preconceitos, já ouvi palavras de baixo calão, mas nada disso me abala, porque a minha luta é maior que tudo.
Direitos
Pensando na proteção às mulheres da Restinga, Nidia participou da fundação do Serviço de Atendimento à Mulher (SIM), que existe há 10 anos na Amovir e oferece um auxílio a vítimas de violência doméstica. Cerca de 15 mulheres buscam atendimento toda semana. No local, recebem orientações, apoio psicológico e, também, quando necessário, um lugar para se abrigar.
Agora, o objetivo da associação é construir uma casa permanente para ampliar o serviço de acolhimento.
Outro importante apoio à comunidade é a Escola de Educação Infantil Amovir. Mais de 70 crianças de até cinco anos são atendidas no local, onde permanecem durante o dia e recebem as três refeições. A meta, segundo Nidia, é que até o final do ano sejam 150 educandos.
Entre os objetivos, projeta o acolhimento de crianças e adolescentes que estão em idade escolar. Assim, elas receberiam aulas no contraturno. Ela considera esse serviço fundamental para que as crianças possam ter uma ocupação fora da sala de aula:
– Elas vão para a escola, estudam em um turno e, no outro, as mães não têm com quem deixar. Por isso eu quero que elas possam vir para a associação no turno inverso, ter um educador, um lanche, um ensino de qualidade, para que a criança não fique na rua, porque quando a criança fica à mercê, o tráfico vem e abraça.
Jéssica, da Cruzeiro
Foi em casa que Jéssica Soares Cardoso, 36 anos, aprendeu sobre a importância da organização dos moradores. Seus pais, Paulo Jorge Amaral Cardoso e Geneci Soares Cardoso, foram importantes lideranças na Vila Cruzeiro, localizada na zona sul da Capital. Eles foram os fundadores da Associação dos Moradores e Amigos da Vila Tronco (Amavtron), que nasceu em 1987 na residência da família.
Jéssica é a atual vice-presidente da instituição, que surgiu a partir da necessidade de melhores condições de moradia e saneamento básico na região. No início, os pais organizavam reuniões com os moradores dentro da casa da família Cardoso para discutir melhorias.
Um ano após a fundação, as mulheres que integravam a Amavtron perceberam a necessidade de se ter um local seguro para deixar os filhos enquanto as mães pudessem trabalhar. Em 1988, ano de nascimento de Jéssica, a associação passou a oferecer um atendimento educacional às crianças da comunidade – sendo a sua mãe, Geneci, a primeira diretora da escola de Educação Infantil.
– Eu venho de uma referência feminina muito forte, que é a minha mãe. Ela ia trabalhar, chegava tarde, mas mesmo assim acompanhava o meu pai nas reuniões. Minha mãe era uma mulher de luta e de batalha – orgulha-se.
Atuação
Mãe de dois filhos, Jéssica enxerga a educação como um motor de desenvolvimento social. Atualmente, a instituição atende 411 crianças e adolescentes. São oferecidas atividades como aulas de teatro, música e cursos profissionalizantes.
Além de práticas multidisciplinares, discutem temas sociais relevantes. Assuntos que envolvem negritude, direitos constitucionais e emancipação feminina são debatidos com os educandos:
– A Amavtron faz uma transformação social dentro da Cruzeiro que é gigantesca. Trabalhamos estimulando o protagonismo da criança e do adolescente. Aqui, eles estão longe da criminalidade e tendo contato com debates muito importantes.
A organização, conforme explica Jéssica, também é formada em sua maioria por mulheres. De acordo com a moradora, ao menos 95% da Amavtron é composta pelo público feminino.
– Isso reflete muito na Cruzeiro, porque muitas vezes as mulheres tentam se colocar como liderança dentro da comunidade, mas ainda são vistas como frágeis. E quando falam mais alto, são tidas como loucas – conclui.
Sandra, da Ilha do Pavão
“A revolução começou em mim”. É assim que a presidente da Associação de Moradores da Ilha do Pavão, Sandra Ferreira, 56 anos, começa contando a sua história.
Casada aos 16 anos, se viu tendo que deixar os estudos de lado para cuidar da casa, do marido e da filha. Por um tempo, abandonou o sonho de cursar o Ensino Superior. Até que, aos 32 anos, com a filha já criada, pôde retornar aos estudos.
Foi por meio da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que Sandra concluiu o Ensino Médio. Logo, ingressou na graduação e realizou seu maior desejo: tornar-se pedagoga. Hoje, ela é referência na comunidade e incentiva mulheres a seguirem pelo mesmo caminho.
– Eu perdi muito tempo achando que só precisava me casar. Eu fui criada com esse pensamento. Mas, depois, entendi que eu queria muito mais do que só cuidar da casa – conta.
Apoio
Sandra gosta de definir a si mesma como uma pessoa inconformada. Moradora há 10 anos da Ilha do Pavão, já presenciou diversas situações em que direitos básicos previstos na Constituição Brasileira foram violados. Foi com essa vontade de transformar que ela fundou, há sete anos, a Associação de Moradores da Ilha do Pavão. A instituição surgiu em resposta a uma tentativa do poder público de retirar famílias da região.
– Foi um episódio muito difícil. Tivemos que ocupar as ruas para não deixar aquilo acontecer. Queriam acabar com a Ilha do Pavão, porque aqui não temos mansões nem casa de material. Não queriam ver a pobreza extrema de catadores e de pescadores que vivem aqui – lamenta.
Cerca de 150 famílias recebem ajuda da instituição. Além de cestas básicas que são distribuídas no local, é ofertada capacitação para mulheres, maioria na região:
– A Ilha do Pavão é um lugar muito feminino. Composta, em sua maioria, por mães que criam os filhos sozinhas, sem ter muito com quem contar. Às vezes, nem trabalho conseguem, já que quem vive aqui sofre muito preconceito.
Percebendo essa realidade, Sandra entendeu que era necessário levar oportunidades a essas mulheres. Por meio da associação, passou a oferecer cursos de costura e produção de itens de higiene. No local, produzem bolsas, panos de prato, sabonetes ecológicos, entre outros. Depois de prontos, tudo é vendido no centro da Capital. Sandra revela que a intenção é estimular as mulheres a conquistarem independência financeira:
– Os direitos femininos ainda são muito violados. Eu acho que o direito da mulher ainda está muito no papel e só na fala. Mas aqui na Ilha vejo mulheres muito corajosas e que têm muito potencial para ir além.
Nira, do Morro da Cruz
Nascida e criada no pé do Morro da Cruz, comunidade localizada na zona leste da Capital, Nira Martins Pereira, 63 anos, é uma importante referência na região. É a sua casa que as famílias procuram quando falta um pacote de arroz, de feijão ou uma mistura para complementar o prato.
Filha de metalúrgico e lavadeira, os pais trabalharam muito para criar ela e os cinco irmãos. Apesar disso, Nira relembra as dificuldades da infância, como o dia em que encontrou no lixão o primeiro par de sapatos.
Seu envolvimento com projetos sociais iniciou quando ainda era muito jovem, aos 18 anos. Enumera conquistas importantes que foram possíveis graças à organização popular. É o caso da pavimentação da Rua Vidal de Negreiros e de uma mobilização para impedir que o posto de saúde da Vila Vargas fosse fechado.
Foi em 2008, junto à amiga Lucia Scalco, antropóloga, que fundaram o Coletivo Autônomo Morro da Cruz. O objetivo era levar educação de qualidade para as crianças da comunidade. A instituição começou com 20 educandos. Hoje, são mais de 300 jovens atendidos pelo espaço.
– Cada criança, cada adolescente que a gente consegue colocar em um curso de qualificação, eu tenho um resgate da minha infância – afirma.
No Dia Internacional da Mulher, em 8 de março, a ONG lançou o Núcleo de Atendimento às Mulheres do Morro da Cruz (Naam). O objetivo é oferecer um atendimento psicológico às mulheres da comunidade, bem como orientá-las sobre seus direitos e capacitá-las para o mercado de trabalho.
Um grupo de mulheres que compõem o Naam estará presente todas as sextas-feiras à tarde na Travessa 25 de Julho para atuar em oficinas do projeto.
– Percebemos que as mulheres precisavam desse atendimento. Muitas delas sofrem violência dentro de casa, mas não conseguem sair, porque dependem financeiramente do marido. Por isso, queremos que elas consigam ter uma profissão e conquistar sua independência – explica.
Nira relata que a instituição é composta por maioria de mulheres. Esse protagonismo feminino é refletido nas políticas desenvolvidas pela ONG. Os projetos são pensados com a intenção de apoiar, em especial, as mães.
– Queremos mostrar um outro lado do Morro da Cruz. As nossas crianças são como qualquer outra criança, as mulheres são trabalhadoras. Eu tenho 63 anos, me levanto todo dia às sete da manhã. Sou a vice-presidente da ONG, mas eu sou a tia que ajuda no lanche, faço a limpeza quando precisa. Não importa a hierarquia, eu sou só a Nira – finaliza.
*Produção: Nikelly de Souza