A Orla revitalizada, o fim de tarde nos parques e o pôr do sol no Guaíba podem até não ser mais novidade para os porto-alegrenses, mas, junto com outros atrativos, têm colocado a capital gaúcha entre os principais destinos no Brasil e na América Latina para os chamados nômades digitais. Segundo sites especializados, o custo acessível em relação a outros locais, a qualidade de vida e a efervescência cultural estão entre os principais motivos.
A liberdade geográfica para trabalhar – e viver — ganhou novos contornos depois que a pandemia ampliou as possibilidades do trabalho remoto. Mas se tornou também estilo de vida para quem desejava conciliar a vida profissional com a vontade de explorar novos lugares. Foi assim que o nomadismo digital cresceu e tem ampliado a sua comunidade pelo mundo.
Conciliando trabalho e lazer sem endereço fixo há um ano, Beatriz Carvalho, 24 anos, é natural de Belém, no Pará, e começou a sua jornada no nomadismo pela costa litorânea brasileira. Mas desde março, depois de optar por uma experiência ao Sul, escolheu Porto Alegre como casa temporária.
Da Capital, com notebook em mãos e internet, ela trabalha como assistente de uma desenvolvedora de negócios que presta serviço para uma empresa norte-americana. A jornada remota funciona por tarefa executada e não por carga horária, outra facilidade que permite trabalhar de qualquer CEP.
— Eu gosto de pensar que eu sou um passarinho — diz a jovem, que até já arrisca um “bah” entre uma frase e outra.
Beatriz conta que antes de desembarcar em solo gaúcho tinha uma ideia de que os porto-alegrenses fossem “preconceituosos e muito fechados”. Mas a experiência mudou a percepção. Agora, considera que “são mais acolhedores do que imaginava”:
— Percebo que as pessoas, na verdade, são muito educadas, e isso cria uma barreira natural.
O ambiente receptivo é um dos pontos listados pelos nômades que já passaram pela Capital. As impressões são registradas em sites especializados como o Nomadlist, um dos principais utilizados pelos nômades para trocar impressões e dicas das cidades.
O site é colaborativo e dinâmico, por isso, o ranking varia conforme as novas avaliações dos usuários. Durante a produção da reportagem, a Capital apareceu em duas posições da listagem: primeiro em 11º e depois em 9º entre os principais destinos na América Latina. Entre as cidades brasileiras, era a 10º colocada entre escolhas dos nômades digitais.
Os pontos melhor avaliados incluem caminhabilidade (possibilidade de realizar trajetos a pé) e segurança sanitária alimentar. Porto Alegre também é avaliada como uma cidade divertida e de custo acessível. Já os itens qualidade de vida, comunidade e vida noturna são avaliados como "ok".
Nas avaliações negativas, segurança, criminalidade, disponibilidade de redes públicas de wi-fi e quantidade de pessoas que falam inglês despontam com notas de "ruim" ou "muito ruim".
Com duas passagens por Porto Alegre na bagagem, Dionata Camargo, 23 anos, compara a experiência na Capital com outros locais por onde andou. Natural de Paulínia, no Interior de São Paulo, diz que o custo de vida e a tranquilidade para transitar pelas ruas são “bem mais acessíveis” em Porto Alegre do que em outras cidades brasileiras.
O maior ponto positivo que aponta da cidade, no entanto, é, também, o negativo. Explica:
— A melhor parte daqui é a questão cultural. São muitos eventos e uma identidade regional muito forte. Mas o porto-alegrense em específico parece não perceber isso. É uma cidade que não se vende muito bem e explora muito pouco o seu turismo. É uma cidade que não reconhece que a sua melhor parte, na verdade, é a vida cultural — observa Camargo.
A experiência atual do paulista em Porto Alegre tem a ver com outra prática comum entre os nômades digitais, o voluntariado. Nesta modalidade, os viajantes trocam trabalho por moradia em hostels, enquanto mantêm outros trabalhos remotos paralelamente. Os voluntários costumam usar a plataforma brasileira World Packers para buscar acomodação em troca de trabalho e para se conectar com outros voluntários que passaram pelos mesmos locais.
Em Porto Alegre, o POA Eco Hostel, na Cidade Baixa, é um dos principais destinos deste público. O local é um point de nômades digitais e a procura de viajantes com este foco vem justamente da troca de dicas entre a comunidade. Felipe Conrad, um dos sócios do local, diz que a presença de hóspedes com este perfil é constante durante o ano todo nas acomodações do hostel.
Estímulo ao turismo
O potencial de Porto Alegre como destino convidativo para os nômades digitais tem sido percebido pelo poder público como uma oportunidade valiosa de estimular o turismo na capital gaúcha. Na avaliação do secretário de Turismo do Estado em exercício, Luiz Fernando Rodriguez Júnior, o governo tem obrigação de encarar o nomadismo digital como algo que veio para ficar. Para isso, é preciso desenvolver os atrativos que já são positivos e dar atenção ao que precisa ser melhorado.
— Temos que entender como Porto Alegre se insere nesse contexto. É uma cidade que foi reposicionada para virar de frente para o rio, permitindo uma redescoberta de atrativos que antes estavam afastados. O nômade digital está buscando, ao mesmo tempo, estadia de longa duração, internet boa e estrutura mínima que permita usufruir além do hotel — diz Rodriguez.
Secretária de Desenvolvimento Econômico e Turismo de Porto Alegre, Júlia Evangelista Tavares diz que a cidade vem se posicionando aos poucos, mas sai na frente pela qualidade de vida, pela gastronomia farta e também pela conectividade. Pujante em startups e oportunidades profissionais neste meio, Porto Alegre tem um ecossistema digital reconhecido entre as capitais brasileiras.
Em estudo da Conexis Brasil Digital, Porto Alegre foi a capital mais bem colocada no ranking de Cidades Amigas do 5G. Entre os critérios avaliados, a lista reconhece ações dos municípios para incentivar a implantação de infraestruturas de telecomunicação e a expansão da conectividade. Segundo Júlia, apesar da internet “bem-servida” em pontos públicos como praças e locais no Centro, o desafio é expandir as redes nas periferias.
A secretária acrescenta que a prefeitura está trabalhando maneiras de melhor vender a cidade. Não só pelas belas paisagens que ela oferece, mas também pela sua posição estratégica de ligação com outras regiões e países vizinhos via transporte aéreo ou terrestre.
— O nosso grande desafio é divulgar a cidade até para o porto-alegrense, para que os próprios cidadãos a vejam — diz Júlia.
RS terá selo de boa receptividade
Expandindo o potencial receptivo para outras regiões, o Rio Grande do Sul deve lançar um selo desenvolvido junto aos municípios que identifique locais que bem recebem os nômades. Cidades do Interior, a exemplo da serra gaúcha, tornaram-se grandes destinos para o trabalho remoto durante a pandemia de covid-19.
Segundo o secretário em exercício no Turismo, o selo deve estar disponível até o fim deste ano. Um aplicativo está em elaboração para identificar visualmente os locais reconhecidos.
— Agora vamos mais fortes pela compreensão de que esta é uma demanda que veio para ficar. Queremos que as pessoas abram o mapa do RS e reconheçam quem bem recebe o nômade. É um recurso que vem de fora para a nossa economia e que acrescenta muito se redistribuída aqui dentro. Queremos mostrar que o Rio Grande do Sul quer receber o nômade digital — diz Rodriguez.
Ponto de chegadas e partidas
Enquanto desponta como destino, Porto Alegre também é ponto de partida para outros locais. Nômade digital há pelo menos três anos e meio, o espírito viajante sempre acompanhou a porto-alegrense Fernanda Kayser, 32 anos, que já há alguns anos vive distante da Capital.
Advogada e empreendedora, foi na pandemia que a profissional descobriu a possibilidade de levar o trabalho junto nas suas andanças. No decorrer da jornada, criou a sua própria empresa e atualmente ajuda mulheres que querem viajar por meio de curso e mentorias. Mais de 200 mulheres já passaram pela preparação batizada Mulheres que Voam. Outro curso, voltado para o público geral viajante, está previsto para ser lançado em novembro.
— Quem viaja acaba adquirindo outras habilidades, o que é essencial para um mundo em constante mudança. Viver assim desenvolve melhor comunicação, negociação, criatividade e adaptabilidade — diz.
A empreendedora falou com a reportagem durante uma passagem por Porto Alegre. Ainda sem definir seu próximo destino, disse que a escolha da cidade também depende do momento de cada nômade. Mas sempre prioriza locais que ainda não conhece ou que possa acrescentar algo novo.
Com a experiência de quem já rodou 65 países pelo mundo, Fernanda diz que o planejamento depende muito do estilo de viagem — pode durar 15 dias ou vários meses. O item primordial é a previsão da internet. Antes de alugar qualquer acomodação, Fernanda diz que busca se certificar com o anfitrião de que a conexão está garantida. Plataformas de hospedagem como Airbnb, por exemplo, têm opções de estadias longas em que um dos quesitos é a garantia da internet.
Saiba mais sobre os nômades digitais
- São profissionais que trabalham remotamente de qualquer lugar do mundo
- Estima-se que sejam 35 milhões pelo mundo. Expectativa é de que cheguem a 1 bilhão até 2035
- Desde janeiro de 2022, o Ministério das Relações Exteriores emite um visto específico para estrangeiros que venham ao Brasil viver nesta modalidade
- A política migratória já emitiu 649 vistos para nômades digitais. As nacionalidades com maiores números de solicitantes são estadunidenses, alemães, ingleses, franceses e suíços
- Para que os nômades digitais estrangeiros possam adquirir o visto, é necessário comprovar vínculo empregatício no Exterior com renda mensal de, pelo menos, US$ 1,5 mil ou US$ 18 mil em fundos bancários. Também são exigidos passaporte válido, seguro de saúde e certidão de antecedentes criminais
- Para estadas de até 90 dias, o nômade digital pode ingressar no país como turista, sem o visto específico