Tantas vezes acusada de dar as costas ao Guaíba, Porto Alegre sofreu nesta quarta-feira (27) o açoite implacável de suas águas justamente na face mais vibrante da cidade. Empurrado pelo vento sudoeste, o inédito acúmulo de 446,1 milímetros de chuva no mês fez o lago avançar sobre o parque urbano da orla, tomando praças, quadras, decks e passarelas. O cenário onde antes milhares de pessoas praticavam esportes e contemplavam o pôr do sol se transformou em um pântano, submergindo em ondas barrentas o principal ponto turístico da Capital.
No Cais Mauá, referência para medição de alagamentos, o Guaíba atingiu 3m18cm às 15h15min, maior marca em 82 anos. Registro acima desse nível só havia ocorrido em 1941, na maior enchente já enfrentada pelos porto-alegrenses. Desta vez, porém, a água só não invadiu as ruas do Centro graças ao infame muro que protege a cidade. Com três metros de altura, o dique concluído em 1974 e desde então difamado por conta da feiura arquitetônica segurou a correnteza que espreitava a entrada do município.
Assustada com o volume de água que desembocava no Guaíba vindo dos rios Jacuí, Caí, Gravataí e dos Sinos, a prefeitura fechou as 14 comportas da cidade. Ressabiados, 80 técnicos do Dmae espalharam até cinco camadas de sacos de areia nos dois principais pórticos do cais, reforçando os bloqueios. Esgueirando-se pelas frestas, uma lâmina d’água chegou à Avenida Mauá, mas impotente para atrapalhar o trânsito.
Mais adiante, o trecho 1 da orla não teve a mesma sorte. Enquanto helicópteros cruzavam o céu em missão de socorro rumo à região das ilhas, as ondas acossavam a Usina do Gasômetro. Dez metros à frente, os decks que avançavam em direção à praia foram tomados pela água, deixando visíveis apenas as cabeceiras dos bancos de madeira.
Detrás das vitrinas envidraçadas do bar Sunset Poa, a permissionária Tatiane Oliveira, 49 anos, olhava desolada para o lago cada vez mais perto. Desde 2018 à frente do quiosque, Tatiane foi acordada às 7h15min pelos administradores da orla. O aviso era assustador: o Guaíba represou e a água está chegando nos bares. A comerciante disparou para o quiosque, usando as bases de guarda-sóis para levantar a mobília.
— Diz que na sexta-feira a água vai baixar, mas a previsão tá dando que também começa a chover de novo. A gente não sabe o que fazer — suspira Tatiane.
Inclemente, a enxurrada avançou por toda a costa da Avenida Edvaldo Pereira Paiva. Derrubou lixeiras, arrastou espessos troncos de árvores com até três metros de comprimento e cobriu com uma nata de sujeira a borda dos barrancos. Nas pontes suspensas, onde antes a água ficava um metro abaixo dos pés dos caminhantes, agora chegava na cintura de quem se aventurasse na correnteza.
Praticamente nada escapou ao avanço do Guaíba. Nas academias públicas, os equipamentos tiveram as bases submersas. Nos playgrounds, os balanços eram sacudidos pelas ondas e a caixa de areia dos escorregadores virou piscina de água barrenta.
No trecho 3, nenhuma quadra esportiva restou incólume. A borracha preta dos pisos de grama sintética foi arrancada do chão, se acumulando à beira das telas. Balançando ao vento sobre a água, as redes de vôlei mais pareciam malhas de pesca esperando a hora do mergulho.
— Faz 30 anos que moro por aqui e jamais vi algo assim. É muito triste ver um lugar que era tão bonito, colorido e cheio de gente, agora destruído desse jeito — comenta a aposentada Geisa Silveira, 62 anos.
O lago que encanta os olhos dos porto-alegrenses é também o que sustenta a família do pescador Jair José Bernardes, 68 anos. Morador do bairro Vila Assunção, ele mora à beira do Guaíba, com o barco ancorado nos fundos de casa. Por volta das 3h da madrugada, Bernardes ouviu o vento soprar mais forte, num prenúncio da invasão lacustre.
Ao lado da esposa, correu para levantar os móveis e improvisar poleiros mais altos para as galinhas. Não deu tempo. Em poucas horas, a água subiu mais de metro, tomando o galinheiro e as demais peças dos fundos. O casal se refugiou no segundo pavimento, onde o filho mora com a família. Para chegar lá, só passando por uma passarela improvisada com uma ripa de madeira.
— A gente tinha uma prainha aqui nos fundos de casa. Agora está assim, uma lagoa. Até os botijões de gás saíram boiando — conta a nora, Daniela.
Quanto mais ao sul da Capital, maior a violência da água. Em Ipanema, as ondas que batiam no calçadão da Avenida Guaíba espalhavam espuma acima de dois metros de altura. Parte da pista de caminhada desabou e o lago tomou conta da via, chegando às moradias do outro lado da rua. A correnteza espalhou sujeira, entulhos e até restos de animais. O restaurante Pérola Negra, que funciona sobre uma plataforma flutuante, foi arrastado por cerca de 20 metros, parando apenas após ser amparado pelos bancos da beira da praia.
Exaltado em prosa e verso, fotografado à exaustão pelos admiradores que circulam em multidões pela orla, mesmo em fúria o Guaíba seguiu atraindo os porto-alegrenses. Nas avenidas, marcha lenta e celular em punho, motoristas atrasavam o tráfego para registrar as ondas que assomavam às calçadas. De capa de chuva ou malha de ginástica, pedestres sorriam em selfies diante das praças enlameadas. Sempre apressados em pedaladas incontinentes, os ciclistas repousavam as bicicletas para mirar a aguaceira do horizonte.
Para que o magnetismo exercido pelo Guaíba sobre moradores da Capital volte a ser motivado por sua beleza, e não por sua natureza destruidora, é preciso uma virada no vento, empurrando o excesso de água para a Lagoa dos Patos e, na sequência, para o mar. Às 20h33min, o Centro Integrado de Comando de Porto Alegre registrou 3m10cm na cota medida no Cais Mauá – uma queda de oito centímetros em três horas e meia.