De A a Z, as últimas gerações cresceram ouvindo que "enchente mesmo foi aquela de 41". E tinha sido mesmo. Porque o Guaíba extrapolou as suas margens e entrou cidade adentro, levando pânico aos moradores que se imaginavam a salvo do outro lado da Avenida Mauá. O vento sul impedia que a água escoasse para a Lagoa dos Patos na velocidade necessária e a cidade pagou caro para se reconstruir.
Em 1967, uma enchente alagou de novo o Centro Histórico. O Guaíba chegou a 3m13cm (a cota de inundação é de 3 metros). Não tendo como se afastar das margens, porque já estava consolidada, Porto Alegre se protegeu construindo uma trincheira de cimento, o tão odiado muro que a separou do seu rio (naquele tempo o Guaíba era chamado de rio e não de lago). Como as águas não voltaram a subir nas décadas seguintes, foi crescendo o clamor pela derrubada do muro, o que, felizmente, nunca ocorreu. E os portões permaneceram abertos, enquanto enferrujavam os trilhos e as roldanas.
Em 2015, o Guaíba subiu e invadiu o Cais Mauá. As comportas foram fechadas e a população voltou a lembrar do que lera ou ouvira sobre a enchente de 41. Entre essas duas datas, as ilhas do Guaíba, que deveriam ser uma reserva de proteção ambiental, foram ganhando moradores e estrutura de cidades, sem que os sucessivos prefeitos tentassem impedir as construções. Ao contrário: junto das casas improvisadas e construídas sem licença foram erguidas mansões com marinas e decks de acesso ao rio, que hoje estão alagadas.
A fúria da natureza igualou ricos e pobres na hora do alagamento. A diferença voltará a aparecer no momento da reconstrução ou na volta para casa daqueles que não tiveram a estrutura da moradia comprometida.
Nesta quarta-feira (27), eu vi o Guaíba bater no muro. Do restaurante que fica no sétimo andar do Palácio do Comércio, fotografei os armazéns alagados e a hidroviária de onde sai o catamarã também inundada. Sem "ó, de casa", com o vento soprando forte do sul e impedindo o escoamento, a enchente de 2023 está testando a resistência do muro. Se ele sobreviver e cumprir sua função de impedir o alagamento do Centro Histórico, o clamor pela sua derrubada deverá cair, e muito.
Dos andares mais altos do prédio da Secretaria Estadual da Fazenda é possível ter uma dimensão mais precisa do alagamento. A pedido da coluna, o servidor Robson Nunes Guedes fez imagens da região utilizando um drone:
No estudo que embasou o edital de concessão do Cais Mauá está prevista a substituição do muro por um sistema mais moderno de contenção, o mesmo adotado em New Orleans depois que o Katrina deixou a cidade toda alagada. A dúvida que se tem hoje vai além do destino do muro. É se haverá interessados em revitalizar os armazéns em troca dos terrenos que ficam na área das docas.
Um dos maiores atrativos é a possibilidade de construção de edifícios com mais de cem metros de altura, junto ao rio. Para proteger essas construções de uma possível nova enchente, será preciso reforçar o sistema de contenção, mas haverá interessados em adquirir imóveis com vista privilegiada para o pôr do sol ou as ilhas alagadas? Dessa resposta depende o sucesso ou o fracasso do leilão marcado para dezembro.
ALIÁS
Cientistas avisam que fenômenos climáticos extremos serão cada vez mais frequentes. Qualquer projeto que se construa à beira do Guaíba terá de levar em conta não apenas as leis municipais, estaduais e federais, mas também as implacáveis leis da natureza.